
... sobre o que nos desaquieta
Apontamento de umas férias do ano passado: Fui a última a entrar no autocarro. O meu lugar à janela estava ocupado por um belo moçoilo muito musculoso, de pernas escanchadas tipo: a ocupar o lugar dele e metade do meu. “Pick your fights”, pensei eu, e sentei-me no lugar do corredor.
1. A American Eagle fez um anúncio com o trocadilho jeans/genes. A branquíssima actriz diz: "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." O anúncio termina com a frase: "Sydney Sweeney has great jeans." (Pode ver-se aqui)
2. E pronto: está instalada a polémica (tal como os autores do anúncio desejavam). Uns protestam porque vêem ali um piscar de olhos às ideias da supremacia branca ("Sydney Sweeney has great genes") e à herança ideológica do nazismo, e apelam ao cancelamento da American Eagle. Outros criticam os primeiros. Como não podia deixar de ser, o pessoal da agenda ideológica radical de direita aproveita a situação, chama-lhe um figo. E os choramingas do "já não se pode dizer nada..." vêm dizer que "os woke, fanáticos como são, é que têm a culpa de a direita radical chegar ao poder".
3. Esqueceram-se que um dia é da caça e o outro é do caçador, e que "woke" somos nós todos quando nos pisam os calos. Mais ainda: os conservadores são bem capazes de dar dez a zero ao pessoal de esquerda.
Pelos vistos já ninguém se lembra do escândalo que foi quando a Zippy fez roupa infantil unisexo - a reacção do bloco "menino veste azul, menina veste rosa" foi de tal modo brutal que a Zippy nunca mais se atreveu a repetir a gracinha.
Também não se lembram da fortíssima reacção de sectores da Igreja Católica quando a Benetton fez publicidade com um padre e uma freira a beijarem-se. E que dizer dos protestos quando a IKEA começou a fazer catálogos com casais de etnias/cores diferentes ou do mesmo sexo?
Acontece nos EUA, acontece na Europa, acontece até na Austrália: foi grande o escândalo quando um anúncio sobre doação de órgãos mostrou um filme de Jesus já na cruz a conversar sobre o assunto e a tirar selfies com os soldados romanos. Como sempre, em publicidade, a ideia do filme era pôr as pessoas a falar do assunto.
Em 2022, a Volkswagen apareceu nas redes sociais com uma mensagem de aceitação da homosexualidade para publicitar o novo Polo. Levou com milhares de reacções homofóbicas.
Há tempos, a Budweiser lançou uma campanha de publicidade com uma influenciadora famosa, a trans Dylan Mulvaney. Mais uma vez, os "woke" que se sentem muito ameaçados por aquilo a que chamam "ideologia de género" não se ficaram: conseguiram baixar as vendas da Budweiser em 17%, e o valor de mercado da empresa desceu seis mil milhões de dólares. Alguém me consegue dar um exemplo de campanha de cancelamento, por parte dos "woke" de esquerda, com iguais resultados?Muitos mais exemplos de episódios de publicidade que lançaram os "woke" conservadores numa fúria de cancelamento haveria para dar. E também os há em grande número para além da publicidade. Só em Portugal, e sem pensar muito, lembro vários casos de a Igreja Católica tentar cancelar filmes ("Je vous salue, Marie", por exemplo: desde ameaças aos cinemas por parte do presidente da Câmara, Nuno Abecassis, até uma multidão a invadir a sala, a gritar e a rezar o terço, que acabou por ser dispersada pela polícia) e penso na vaga de críticas escandalizadas a Herman José devido ao seu humor sem respeitinho pelos valores, pela História e pela cultura do nosso país.
4. A ideia central da publicidade é provocar, para pôr as pessoas a repetir o nome do produto. A American Eagle decidiu fazer esta publicidade assim, justamente agora quando as ideias de supremacia branca estão a reconquistar terreno, porque sabia que era a polémica mais eficaz do momento.
Se me deixassem mandar, preferia que os críticos fossem capazes de algum recuo, e se limitassem a chamar a atenção para os factos: a American Eagle escolheu fazer trocadilhos com genes de miúdas loiras de olhos azuis neste tempo em que estamos cada vez mais polarizados entre apologistas da supremacia branca versus defesa dos direitos humanos. Interessante...
5. O trocadilho jeans/genes não obriga necessariamente a usar uma jovem branca. Se a empresa American Eagle tivesse alguma consciência social e responsabilidade democrática, nesta altura da História podia mostrar mulheres de diferentes nacionalidades e etnias (especialmente aquelas que têm sido raptadas e deportadas por tipos mascarados que dizem ser polícia): "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." - e rematar com a frase: "We all have great jeans".
(Senhores da Levi's, ou outra marca qualquer de jeans: se quiserem aproveitar a ideia, estejam à vontade.)
Ao ler "Pandora" na lista de temas do nosso Largo da escrita, pensei imediatamente na famosa caixa. A terrível caixa de Pandora, o risco de a abrir, e os seus dois primos: o Rubicão e o Plano Inclinado.
Pensei também numa entrevista de Zizek em 2016, pouco antes das primeiras eleições que levaram Trump à Casa Branca. Nessa altura, Zizek pensava que uma vitória de Trump seria positiva, porque viria sacudir profundamente todo o sistema, obrigando-o a repensar-se e a limpar-se dos muitos vícios acumulados.
É uma questão interessante: que fazer quando tudo parece estar a desmoronar-se? Acelerar o processo para chegar o mais depressa possível a algum outro lado? Abrir a caixa de Pandora, atravessar o Rubicão, meter-se pelo Plano Inclinado a duzentos à hora? Atirar gasolina ao fogo, na esperança de que uma fénix renasça das cinzas, purificada e liberta?
Sinto-me nos antípodas dessa afirmação de Zizek em 2016, e 2025 confirma os meus temores: acelerar deliberadamente processos históricos de retrocesso civilizacional não nos leva a fénix alguma.
Porque, quando a caixa de Pandora se abre, não há consenso sobre o seu conteúdo: para uns, é o mal que se espalha pelo mundo; para outros, é o início de um tempo novo, em que sentem que são compreendidos, podem enfim dizer livremente o que lhes vai na alma, e recuperam tudo aquilo a que sempre tiveram direito. Atravessa-se o Rubicão para chegar à terra prometida, essa que é só para os nossos. Acentua-se o declive do Plano Inclinado para mais rapidamente separar o trigo do joio. Os outros? Que se lixem.
A fénix purificada pelo fogo é uma ilusão. Do outro lado do fogo, o que nos espera não é a fénix, mas as ruínas do bem que, com gestos frágeis e incertos, tentámos inscrever na História.
E teremos apenas as nossas mãos, feridas e nuas, para recomeçar penosamente o caminho rumo a mais humanidade. E trabalharemos nos escombros. E teremos por companhia aqueles que a caixa de Pandora envenenou.
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Outras companheiras deste Largo:
A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra
Nos meus apontamentos de viagens no Facebook repete-se muito a palavra "paraíso". Das duas, uma: ou aprendo outras palavras, ou começo a frequentar sítios menos, lá está, paradisíacos... Há cinco anos, foi assim:
Almoço no paraíso. Depois os rapazes mergulharam, e vieram à tona a gritar que estamos numa corrente fria. Lembrei-me logo que os portugueses têm digestão, e nem entrei na água. Estou a vê-los chegar à ilha.
Lembra-me o facebook que por esta altura, em 2011, estava a trabalhar arduamente...