29 outubro 2025

como quem diz "boa noite"

 



Para acompanhar o momento de pura beleza, copio este comentário que estava na página de youtube do vídeo:
"From Jeff's manager Dave Lory's new book "Jeff Buckley: from Hallelujah to Last Goodbye" regarding this performance:
'We had a small shopping list of stuff Jeff had asked us to pick up: peppermint tea, black hair dye, and a CD of “Dido’s Lament.” The week after Glastonbury, Jeff had been booked to appear at Meltdown, another prestigious annual event, held in London at the Royal Festival Hall. Each year an artist known for being eclectic was made guest curator of a week of genre-crossing concerts, and that year’s curator was Elvis Costello, who had invited Jeff to sing with an orchestra. After discussing singing some Mahler in the original German, Jeff decided he wanted to try “Dido’s Lament.” Sam had located a music shop in Bath where we could pick up the CD. It was a tiny place up a steep hill, so small that six skinny people would fill it. There were no racks; you just asked at the counter for what you wanted. An old guy was serving, and when I asked for a copy of “Dido’s Lament” for one of my male artists, he laughed and told me no man could sing it. The only other person in the store was a young dude, around eighteen years old, who asked which artist it was for. “Jeff Buckley,” I said. He turned to the shopkeeper and said, “Jeff Buckley can sing it.” I laughed, tickled that word about Jeff had reached out here ...
The show was a few days later and, although not quite a black-tie event, the atmosphere was very formal—the crowd was seemingly classical music fans having a daring night out. There were some priceless looks on their faces when this rumpled dude came out and started singing. It was so much fun watching their reaction that I hardly watched Jeff. But he sounded incredible. That kid in the Bath music store knew what he was talking about. I got chills. Elvis Costello: “When he started singing ‘Dido’s Lament,’ there were all these classical musicians who could not believe it. Here’s a guy shuffling up onstage and singing a piece of music normally thought to be the property of certain types of a specifically developed voice, and he’s just singing, not doing it like a party piece but doing something with it.” “That’s an understatement,” says cellist Philip Sheppard, who was in the orchestra. “I remember the silhouette of his frame as he bent almost double to wrench every ounce of meaning from a song written three hundred years ago. Better than any classical musician I’ve ever heard. It’s probably the greatest musical experience of my life; it turned my world inside out…made me realize I was a musician who played through study rather than played through feel, an incredibly pivotal moment for me. I think about him nearly every day, which is quite strange really, because I only met him for about half an hour.”
I wish Jeff could have done more of that kind of thing. When you saw how he shone in those unique environments, there was definitely a conversation to be had about whether alternative rock was a big enough playground for him.' "

27 outubro 2025

"quem segue o seu caminho nunca ficará atrás de ninguém"

 


Vi uma vez o Zambujo a cantar com o Milton, tentando o registo do Milton, e parecia uma maldade que lhe fizeram, porque ficou aquém Milton e até aquém Zambujo.
Vejo agora a Carminho a seguir o seu caminho, ombro a ombro com o Milton. Maravilha.


prá terra deles...


 

As pessoas que concordam com um cartaz onde se lê "isto não é o Bangladesh" concordarão certamente que na Alemanha se escrevam cartazes onde se lê "Isto não é Portugal".

Em Roma, sê romano! Se as procissões nas ruas não são uma tradição alemã, os portugueses não podem fazer uma procissão de Nossa Senhora de Fátima no espaço público das cidades onde vivem como imigrantes! Vão fazer as procissões prá terra deles - certo?!

Errado. É bom viver num país onde as pessoas podem exprimir a sua religião também nas ruas.

E não é só procissões religiosas. Há tempos, os portugueses de Hamburgo ocuparam o parque maior de Hamburgo com o seu folclore, as suas músicas e as suas comidas. A reportagem da RTP diz abertamente ao que vêm: "Mais do que uma festa, a celebração representou uma afirmação de identidade, um reencontro com as raízes, e um abraço colectivo à saudade e ao orgulho de ser português além fronteiras."

Pus o link da reportagem no primeiro comentário. Escusado será dizer que gostei imenso da iniciativa e fico muito feliz pelos portugueses e demais população de Hamburgo que por lá passaram. Mas experimentem trocar "Portugal" e "portugueses" por Bangladesh, e tirem conclusões.

(Sugiro que as pessoas com vontade de argumentar "Ai, mas os portugueses sabem comportar-se bem na terra dos outros! Não respeitarão todos os costumes, mas cumprem a lei!" vão consultar as estatísticas dos sistemas prisionais dos países onde há comunidades portuguesas imprtantes. Só em 2024, houve 387 portugueses expulsos dos países onde viviam, devido ao seu comportamento criminoso. Nesse ano, a França e o Reino Unido, por exemplo, deportaram pelo menos 69 portugueses culpados de roubo, assalto e violência doméstica. Mas nem todos são "mandados prá terra deles". No ano passado havia quase 1300 portugueses nas prisões europeias (exceptuando Portugal). 1300 portugueses "a comer e a beber e a serem tratados com dignidade nas prisões, a viver à custa dos impostos dos nacionais honestos, bla bla bla..."
Ai se a AfD, a RN, o Vox, o Reform UK e todos os outros sabem disto!)

26 outubro 2025

*máscara*




"How are you today?"

A primeira vez que ouvi esta pergunta, na caixa de uma loja em Boston, pensei maravilhada que aquilo sim, era um país fantástico: com serviço de psicólogo em cada caixa. Hesitei sobre o que queria responder, e quanto iria custar, mas por sorte estava a sentir-me bem e optei por dar uma resposta curta. Ainda não foi nesse dia que a caixeira teve de ir ela própria ao psicólogo para se aliviar dos meus problemas.

Que seria de nós - que seria das conversas, que seria das relações - se respondêssemos sempre com seriedade à pergunta "olá, tudo bem?"

Não sei. Mas estou em crer que seria um mundo com mais empatia. Porque quem vê caras não vê corações, e muitas vezes reagimos à flor da pele da cara, completamente alheios ao que vai por dentro daquela pessoa.

--- As outras máscaras do Largo, na semana passada: - Carla - Mariana - Marisa - Rita



24 outubro 2025

e vocês, como foi o vosso lançamento do Astérix na Lusitânia?

 




E como foi o vosso lançamento de Astérix na Lusitânia?

O meu foi bom.
O Obélix é um doce (e não é nada tão gordo como dizem!) e o tradutor, que me autografou o livro, é outro doce. Andou vários meses a traduzir, depois o trabalho dele foi retraduzido para francês, para os autores reverem e aprovarem.
E tanto trabalho para quê?, perguntarão.
Bem… 1,8 milhões de exemplares chegaram hoje às livrarias alemãs.

Diz-se que há muito tempo não havia um Astérix tão bom. Diz-se que os autores quiseram pôr no livro o ambiente ensolarado de Portugal. Eu cá, a julgar pela amostra das pessoas com quem falei no lançamento, digo apenas isto: vão vir charters de turistas.




"sabe com quem está a falar?"


#Sabe_com_quem_está_a_falar? é uma pergunta que não vale a pena fazerem-me a mim. Nunca sei. Assim sem pensar muito:
- A passear por Lisboa, quase atropelei a Catarina Martins e mais uns tantos do Bloco que se cruzaram comigo no passeio apertado, e não a reconheci.
- Há tempos, o Pedro Nuno Santos estava a almoçar numa mesa ao lado da minha. Se a amiga com quem eu estava não tivesse desatado a bater com o pé na minha perna, teria pensado que era, sei lá, um contabilista lisboeta a almoçar com amigos.
- A mesma amiga que uma vez, num café em Paris, me disse "está ali a Natalie Portman (eu já estava a olhar para ela há muito, e a achar que as parisienses são giras como tudo).
- Aqui em Berlim, uma vez fui falar com o José Eduardo Agualusa convencidíssima de que era o Luiz Ruffato.
- Também já me aconteceu de estar a dançar com o Joaquim de Almeida e a pensar "conheço esta cara... será o Antonio Banderas?"
- Num restaurante na Borgonha, consegui confundir o dono, que servia às mesas, com o filho do François Miterrand, que estava a almoçar na mesa ao lado com a mãe e demais família. Só porque o Joachim me agarrou a tempo é que não disse ao filho do Miterrand, num momento em que ele provavelmente estaria a regressar da casa de banho, que a comida estava deliciosa e que bem podia dar os parabéns à cozinheira.
- O Facebook sabe, porque pus a fotografia e perguntei quem era, que já estive frente a frente com Benedict Cumberbatch sem o reconhecer.
(Espero nunca ser roubada na rua, ou pior ainda, porque se a polícia me pedir para descrever a pessoa, vou fazer uma tristíssima figura.)
- Mais recentemente, no "festival dos hambúrgueres", calhou de a delegação da Federação Portuguesa de Futebol ter vindo comer para a nossa mesa. A princípio, eram apenas uns portugueses simpáticos que ali estavam, mas o Joachim meteu conversa, "ai, com esses pins na lapela e com esse ar, devem ser pessoas importantes...", e daí a nada estava a queixar-se "ai aquele golo do Madjer em 1987 ainda me está aqui atravessado!" Um deles sorriu, e comentou "eu estava lá; por acaso nesse dia não joguei, mas estava lá". Outro, um mais velho, de bigode, começou a debitar nomes dos jogadores históricos alemães contra os quais já tinha jogado. O terceiro só sorria. Ao fim de meia hora, enchi-me de coragem e perguntei-lhes os nomes. Domingos Paciência, disse um. Maniche, disse outro. Quando me virei para o terceiro, houve um sobressalto e todos fizeram uma cara chocadíssima de "não sabe com quem está a falar?????"
Era o Toni.
Cai o pano, e eu desapareço para debaixo da cama.
Outra vez.

22 outubro 2025

em todas as ruas te encontro

 


Esta linda frase até me lembra daquela vez que andava a apanhar lenha com os miúdos no Golden Gate Park, para fazermos uma fogueirinha na praia, e apareceram uns polícias a cavalo. O mais disfarçadamente que pude, meti os miúdos no carro e ala que se faz tarde para outro lado do parque, onde recomeçámos a labuta. Daí a nada os polícias apareceram, e ao passar por mim comentaram: "you are everywhere!" E eu: "you too!" - mas não fui presa.

19 outubro 2025

entardecer

 

Lembra-me o facebook que neste dia, em 2013, parei encantada junto a um canal perto do antigo aeroporto de Tegel. Apesar de ter fotografado com o meu telemóvel jurássico, ainda agora consigo sentir a paz daquele momento.
Entardecer junto ao aeroporto de Tegel
(ou: das vantagens de fazer biscates de taxista)










quem sobrecarrega o parlamento a esta hora tardia?

 


A propósito do pacto de Estado de que falava no post anterior, aqui deixo um pequeno episódio da vida do Parlamento Federal alemão. Às quintas-feiras, dia de plenário, é habitual a AfD acrescentar no final da sessão novos temas para debate, preparados sem a menor seriedade, para poder depois ir queixar-se de que é boicotada pelos outros partidos.
A sessão de plenário já está a ficar cada vez mais longa devido ao modo como a AfD debate no Parlamento, e estas propostas disparatadas de última hora, que aparecem quando já se caminha a passos largos para a meia-noite, são obviamente muito irritantes.
Há tempos, um deputado dos Verdes reagiu a um desses truques com um poema, adaptando os versos do Earlkönig, de Goethe:
"Quem sobrecarrega o Bundestag a esta hora tardia?
É o grupo parlamentar do qual ninguém gosta.
Apresenta uma proposta a que não se pode escapar
- nós rejeitamo-la. O que mais se poderia esperar?"
A vice-presidente do Parlamento que presidia à sessão comentou, divertida: "Não posso comentar o conteúdo, mas deu-nos um exemplo excelente de que é possível tomar a palavra sem exceder a duração prevista."

a perfeita golpada

 

Esta semana assistimos à perfeita golpada:

1. Depois de perder 800.000 votos (*), o tumor maligno da Democracia portuguesa pôs toda a gente a falar das burcas, e a discutir em termos de "eles que respeitem as nossas leis, que nós também respeitamos quando vamos à terra deles".
Facto é que a esmagadora maioria dos muçulmanos residentes em Portugal respeitam as nossas leis, e que o desrespeito, quando ocorre, é transversal às religiões (basta ir contar o número de cristãos que estão nas prisões, nomeadamente por femicídio). Mas o modo como o debate decorreu leva a crer que "eles", os imigrantes muçulmanos, são uma massa uniforme de abusadores e transgressores.

2. A proposta levada a Parlamento sobre a proibição de ocultar o rosto em espaços públicos tem uma longa introdução focada inteiramente na religião, nos direitos das mulheres, e no que outros países têm feito para combater símbolos religiosos no espaço público. Refere-se concretamente à "utilização de burcas, niqabs, demais trajes religiosos islâmicos e outras roupas que culminem em tal impedimento à exibição".

3. Três alíneas a destacar, no diploma:
"Art.2º, 1 - É proibida a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto.
Art.2º, 2 - É proibido forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião.
Art.3º, 2 - A proibição referida no número anterior é extensível em eventos ou práticas desportivas e manifestações."

4. Cada um tire as suas conclusões sobre este facto: na semana em que o seu partido perdeu 800.000 votos, e nos distraiu do desaire pondo o país a fazer discurso de ódio contra os muçulmanos, Pedro Frazão rejubila com a proibição de máscaras em manifestações da extrema-esquerda.

5. Pessoalmente, parece-me muito bem que se discuta o uso de máscaras no espaço público. E chamo pérfida à estratégia de discutir burcas e niqabs praticamente inexistentes na nossa sociedade quando o que se quer discutir são as máscaras nas manifestações de extrema-esquerda.

6. A única questão realmente interessante neste diploma é a proibição de forçar alguém a vestir o que não quer por motivos de género ou religião. Essa sim, valia a pena trabalhar a fundo - o que não será certamente feito pelo partido dos machos inseguros.

7. Pergunta para as pessoas preocupadas com a subjugação da mulher: se for proibido uma mulher sair para a rua de niqab, o que acham mais provável acontecer: (1) passa a sair à rua de rosto descoberto, ou (2) deixa de sair à rua?

8. Moral da história: infelizmente, é tarde para um pacto de Estado em Portugal. Na Alemanha, por enquanto, ainda existe esse esforço institucional de proteger a ordem democrática contra o avanço de forças consideradas antidemocráticas. Quando a AfD apresenta uma proposta de lei no Bundestag, seguem-se os trâmites legais habituais, mas a proposta nunca é aprovada (mesmo sendo sobre um tema neutro ou tendo algum mérito), para isolar politicamente este partido. Em certos casos, outros partidos apresentam uma proposta semelhante, e é esta que é discutida com seriedade e aprovada.



(*) Muito curioso: há 800.000 eleitores portugueses que se orgulham de ter metido no Parlamento português ladrões de malas, caloteiros, agressores de árbitros, pessoas que apagam mails oficiais e outras que mentem em tribunal - mas quando se trata da sua terrinha, já não querem lá especialistas da peixeirada, nem pessoas que pagam para ter sexo com menores, nem ladrões de caixas de esmolas... Odeiam "Lisboa", mas não se aperceberam que o que acontece em "Lisboa" lhes afecta ainda mais a vida do que as decisões do seu presidente da Câmara ou da Junta de Freguesia.

18 outubro 2025

encontrar a palavra certa

Por causa do girino do post anterior, fui confirmar a tradução de "frog", que é uma dúvida recorrente, porque anda meio mundo a trocar sapo por rã, e outro meio a trocar coelho por lebre (*), e uma pessoa até sabia distinguir uns dos outros mas, desde que a terra ficou plana, acaba por não ter bem a certeza.

A busca levou-me a uma página do reddit onde, a propósito da diferença entre rã, sapo e perereca, alguém começou a contar uma anedota:

"Sabe quantos anos vive uma perereca?"

E outra pessoa respondeu (até vou sublinhar, porque é mesmo todo um tratado de comunicação):

"Se a piada for meio pedófila fala baixinho aqui no ouvido pra eu não passar vergonha!"

E a primeira:

"Bom, eu ia dizer 15 anos. Agora acho que você tem um ponto. Melhor mudar de assunto."


Em tempos de terrível polarização, uma frase como estas é um bálsamo: afirma sem ostracizar. 


(*) Foi também nesta página que aprendi que o coelhinho de Páscoa começou por ser lebre: 

"
Dentro da própria língua inglesa tem muita coisa do avesso. Exemplo: o famoso coelhinho da páscoa (easter bunny) na verdade era originalmente "easter hare" (lebre da páscoa), mas com o tempo começaram a trocar os nomes e virou bunny (rabbit). E a língua portuguesa embarcou nessa, copiando a troca. Mas o animal da páscoa continua sendo a lebre e sempre vai ser, porque a época da páscoa (primavera no hemisfério norte) é justamente quando bandos de lebres saem de suas tocas, representando a renovaçao, o renascimento." 

(Poroutroladomente, pergunto agora: e os coelhos, ficam na toca até ao verão, ou quê?)



  

girinos

 


Encontrei esta imagem no Facebook, no mural de Steve Cousineau, que escreve:

 My Original Sketch. It isn't without a small amount of irony that one frog (Portland frog) is a symbol of anti-authoritarianism, while a right-wing frog meme (Pepe the frog) became a white supremacist favorite. Symbols are important...so are flies.


Esta evolução díspar dos girinos lembrou-me uma história que aqui publiquei há muitos anos:

Um casal, a quem nascera um filho, desentendeu-se quanto ao nome a dar à criança, e foi falar com o rabino.
- Qual é o vosso problema?, perguntou o rabino.
- A minha mulher quer dar ao nosso filho o nome do pai dela, e eu quero que ele receba o nome do meu pai, respondeu o marido.
- Qual é o nome do seu pai?
- Abia.
- E o nome do seu sogro?
- Abia.
- Então qual é o vosso problema?, perguntou o rabino, surpreendido.
- Sabe, disse a mulher, o meu pai era um doutor, enquanto que o pai do meu marido era um ladrão de cavalos. E eu não quero que o meu filho tenha o nome de um ladrão de cavalos!
Desesperado, mas incapaz de os deixar sem uma resposta, o rabino disse-lhes:
- Dêem ao vosso filho o nome Abia. Depois deixem-no crescer, começar a andar e a falar. Ouçam os seus sonhos, vejam como luta pelo seu futuro, observem como se realiza. E só depois saberão se ele recebeu o nome do doutor ou o do ladrão de cavalos.



17 outubro 2025

*pulso*

Ontem fui à zona comercial do meu bairro comprar um rato novo para o computador, e ao sair da loja vi uma ambulância parada junto ao passeio, um homem deitado no chão, alguém a tentar reanimá-lo - e um semi-círculo de mirones.

O corpo no chão tinha uma barriga grande, que, a cada massagem cardíaca, estremecia e rolava como uma onda. Desviei o olhar. Estava ali um homem a morrer, e os esforços para o salvar expunham-no ainda mais na sua trágica vulnerabilidade.

Afastei-me. Fui comprar pão, e ervas, e legumes. A senhora da padaria não atinava com nada do que era preciso - nem o preço do kg, nem a largura das fatias -, mas ali ao lado estava um homem a morrer, e de repente nada era preciso excepto que conseguissem salvá-lo.

Ao sair da loja de produtos biológicos ouvi sirenes várias - polícia, mais ambulâncias, médico. Segui caminho na direcção oposta, resistindo à vontade de ir saber daquele homem deitado no passeio, tão perto de mim e talvez já irremediavelmente longe.

O nosso pulso a bater tranquilamente enquanto atravessamos o quotidiano: raramente temos consciência do privilégio e do risco.

--- "Pulso" era o tema desta semana no Largo. Se quiserem ler como elas pulsam:

- Gralha dixit

- A curva



evergreen

 


13 outubro 2025

antifascimo


A frase do dia: "antifascismo é a continuação do amor à sua própria terra com outros meios"
(em alemão soa ainda melhor: "Antifaschismus ist die Fortsetzung der Heimatliebe mit anderen Mitteln.")
(a frase original, de Carl von Clausewitz, é: "Guerra é a continuação da política com outros meios")

10 outubro 2025

o Fox a fazer de arminho


Esta fotografia tem mais de dez anos, e a legenda que lhe inventei continua a fazer-me rir: "o Fox a fazer de arminho"

(O Da Vinci que não saiba)



 

*como cão e gato*

No Largo, todas as semanas se escreve sobre um tema diferente. Criei o péssimo hábito de escrever sempre sobre o tema da semana anterior. Hoje (alguém faça o favorzinho de ir espreitar a ver se a torre de Pisa se endireitou) decidi mudar de vida: logo depois de ter escrito sobre o tema da semana passada, publico o post desta semana.

Em dez minutos passo de *quando até ao apocalipse* para *como cão e gato*, e ocorre-me que os dois temas se podem ligar numa sequência lógica de combate ao pessimismo: desde que a internet (e a nossa própria vida) se começou a encher de imagens de cães e gatos a conviver em boa paz, a expressão "como cão e gato", que imediatamente identificávamos como algo impossível de conciliar, esvaziou-se. Pufffff. Como cão e gato: abraçadinhos, a brincar um com o outro.

Talvez, afinal, não haja nada de irrevogável (outra expressão que se esvaziou, curiosamente) no nosso destino. Se foi possível que cães e gatos se entendessem, talvez nos seja possível também parar o relógio que tiquetiqueteia em direcção ao apocalipse.

Vamos?


***

As amigas que se encontram neste Largo: A Curva 
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit 
O blog azul turquesa 
Quinta da Cruz de Pedra

*quanto até ao apocalipse?*


Foi em Setembro de 2018, lembro-me perfeitamente. Estávamos a descer a Serra da Arrábida, minúsculos naquela imensidão de verde e de mar, e uma ideia tomou conta de mim com a simplicidade do muito óbvio:

A Natureza subtrai e segue sem sequer pestanejar. Os humanos podem desaparecer com a mesma simplicidade com que todos os dias desaparecem silenciosamente várias espécies.

E depois, uma angústia:

"Que vai ser de Bach sem nós?"

Bach, como quem diz:

Não somos apenas anões avançando sobre os ombros de gigantes, somos responsáveis pela herança que nos deixaram e temos o dever de a transmitir aos vindouros.

Mas não é no futuro de Bach que penso quando reservo mais uma passagem de avião, quando compro um bom bife ou vários queijos, quando vou de carro em vez de transportes públicos, quando compro coisas de usar e deitar fora. "Uma vez não são vezes", e, além disso, "por muito que renuncie a estes prazeres da vida, isso não tem qualquer peso no conjunto do planeta..."

O capitalismo corre-nos nos sangue: a busca do máximo ganho pessoal é uma forma legitimada de estar na vida. Esquecemos que aqui ao leme sou mais do que eu. Em vez de nos unirmos numa radical mudança de rumo, cada um de nós ajuda a conduzir o navio na direcção dos monstros que já se avistam no horizonte.


*** No nosso Largo, por incrível que me pareça, nem todas falaram do mesmo apocalipse:

Rita Maria 

Carla R.