18 setembro 2025

"Utah"

 


Ontem, o tema do dia na Enciclopédia Ilustrada era #Utah. Decidi falar sobre úm fenómeno central desse Estado - os mórmones - e um fenómeno menos central, mas muito inesperado, dessa forma de cristianismo: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi fundada por Joseph Smith, o cidadão que recebeu várias revelações divinas, e entre elas uma com a ordem de praticar um "casamento plural".
Ora bem: ordens são ordens, e estas eram realmente ordens superiores. Joseph Smith apressou-se a obedecer e a convencer os seus amigos a serem igualmente obedientes.

(Por sorte, a nossa Nossa Senhora não se lembrou de fazer aos três pastorinhos de Fátima revelações desse tipo. Livra! Ainda dava uma coisinha má ao padre lá da terra.)

A princípio, as pessoas da comunidade mostraram-se reticentes. A prática do casamento plural, prevista na Bíblia, parecia-lhes um terrível teste à sua fé. Mas o Deus daquela revelação veio também em auxílio dos hesitantes, e deu-lhes a viver fortes experiências espirituais, das quais brotou a coragem para aceitar a novidade e dar o passo em frente. Os passos, melhor dizendo: uma e outra e outra vez.

De onde se conclui que a Igreja dos Santos dos Últimos Dias era antes de mais uma Igreja de Santas dos Primeiros Dias. Porque só com uma paciência de santa se aguentava estes broncos alucinados.

Durante quase quatro décadas, esse Deus terá andado a observar a experiência e a fazer umas contas de cabeça, ou se calhar fartou-se de repetir todos os dias o milagre de fazer nascer muitas mais mulheres que homens, para nenhum homem ter de ficar, digamos, descalço. Por isso, um dia apanhou a jeito Wilford Woodruff, que era na altura o líder da comunidade, e fez-lhe nova revelação: voltem à monogamia, até revelação em contrário!

Se calhar é por medo de nova viragem nestas revelações que no Utah é dificílimo comprar bebidas alcoólicas. Nos supermercados encontra-se, no máximo, uma cervejita deslavada. Coisas mais a sério, como uma cerveja de jeito ou uma garrafa de vinho, só nas lojas de liquor, e são caríssimas. Mas ao menos desde 1889 que não houve mais revelações sobre aquele tal assunto.

No entanto, consta que ainda há no Utah alguns homens de muita fé, que vivem com as suas famílias de numerosa prole por cantos e recantos daquela terra.

À parte estas histórias que são testemunho da profunda religiosidade da sua população masculina, Utah tem parques nacionais belíssimos. É difícil dizer qual deles o mais espectacular. Bryce, Arches e Monument Valley estão entre os mais famosos. Quando lá estive em 2009, escrevi sobre a nossa passagem por Monument Valley e Arches. Sobre Bryce já não consegui, porque meteu-se o Natal e...

17 setembro 2025

o trigo e o joio

 

Há aí um partido que tem andado a vender a ideia de que os políticos do sistema só querem poleiro e encher-se de dinheiro à custa do povo, e promete que vai pôr fim a estes abusos.
Mais de um milhão de portugueses acreditou, e votou neles.

Curiosamente, o país assiste agora à passagem de políticos de outros partidos para este. Tendo em conta a diferença flagrante de princípios básicos de uns e do outro, a única explicação que encontro para essas transferências é a fase de franca ascensão em que este partido se encontra. Ou seja: para quem anda na política por causa do poleiro, este é o partido que dá mais hipóteses de arranjar um cargo político com excelente salário (e pouco trabalho, como ficou evidente no episódio dos hambúrgueres).
O chamado "tachinho de sonho".

Sim: há aqui uma contradição. E pergunto: será que ninguém desse partido se sente incomodado por prometerem limpar o país e simultaneamente darem bons empregos justamente aos políticos do tipo que mais criticam?

Mas nem tudo é mau. Para quem está de fora a observar o comportamento dos actores políticos, este processo tem ao menos uma vantagem: permite distinguir mais facilmente entre quem está na política para servir o país e quem está na política para se servir do país.
Separa-se o trigo do joio, e até se sabe qual é o partido onde o joio medra melhor.

16 setembro 2025

factos sobre a "Burgerfest"

 


A confusão entre "cidadãos" e "hambúrgueres" tem sido acompanhada por muita informação, contra-informação e mentiras descaradas. Deixo aqui uma compilação dos factos, para memória futura.


1. O projecto de resolução que foi votado no Parlamento português no dia 9.9.2025 falava em "deslocação à Alemanha a convite do presidente alemão, incluindo a participação na Burgerfest".

É verdade que estava escrito "Burgerfest" e não "Bürgerfest". Mas a redacção do texto deixa claro que se está a responder a um convite oficial do presidente alemão, e atribui um lugar subsidiário à festa. A posteriori, comprova-se que a proposta de resolução descrevia de forma directa e concisa o que estava em causa: primeiro, o presidente da República português foi recebido com todas as honras no palácio presidencial. Os dois presidentes tiveram oportunidade de conversar a sós, e seguidamente houve uma reunião alargada com a comitiva presidencial. Pelas seis da tarde, os dois presidentes vieram para o jardim, discursaram perante os convidados daquela festa, e visitaram os stands. Os stands alemães apresentavam o trabalho de organizações de voluntariado, que são o elemento central desta festa. Na área de Portugal, o país convidado, apresentava-se a língua portuguesa, a inovação científica na área dos têxteis, os oceanos, o turismo, a gastronomia, os vinhos e uma grande conquista do futebol português.

Na realidade, para o caso pouco importa se a festa era de cidadãos ou de hambúrgueres. O mais importante desta deslocação - e isso foi formulado com clareza na proposta apresentada à Assembleia Parlamentar - era o convite oficial feito pelo presidente alemão.


2. Se, no dia 9 de Setembro, quando a proposta foi votada na Assembleia, houvesse dúvidas sobre esta festa, seria possível informar-se no site da Embaixada de Portugal na Alemanha. A notícia estava em lugar de destaque desde o dia 1 de Setembro. O próprio título já revelava algo muito importante: "Portugal é o País Convidado da Bürgerfest 2025"



3. O partido que votou contra a deslocação do presidente da República português à Alemanha, a convite do seu homólogo alemão, tem sessenta deputados. Não consegui apurar quantos assessores trabalham de momento para esses sessenta deputados, mas na legislatura anterior, quando o partido tinha menos dez deputados do que actualmente, já empregava trinta assessores e quatro secretárias. Depreendo, assim, que este partido tem pelo menos noventa e quatro pessoas pagas pelos nossos impostos, que auferem de salários superiores à média dos trabalhadores portugueses, uma vez que o Estado reconhece a grande responsabilidade do cargo que ocupam.


4. Destas cerca de cem pessoas, não houve uma única que lesse as poucas linhas da proposta com atenção, se desse conta do logro e alertasse o grupo parlamentar: "atenção, a proposta que vai ser votada é sobre um convite oficial do presidente da República alemão!". E muito menos que se fosse informar e acrescentasse: "incluindo a participação num evento importante que tem Portugal como país convidado. Atenção, que isto não é sobre beber umas cervejolas num festival gastronómico".

Em suma: o grupo parlamentar deste partido deixou-se confundir com uma questão acessória no texto da proposta e votou contra uma visita oficial a convite do presidente alemão sem que alguém daquela centena de pessoas remuneradas pelo Estado português se tivesse dado ao trabalho de recolher mais informações sobre o que ia a votação.

Fica a pergunta: é assim que os deputados deste partido trabalham no Parlamento português? É com este fraco sentido de responsabilidade e esta falta de seriedade no cumprimento das suas funções que vão "limpar Portugal"? Fica uma hipótese: de tanto repetirem os seus chavões populistas contra os políticos e o sistema, acabam por acreditar que o sistema político português é realmente como eles dizem, e que seria natural um presidente da República deslocar-se a outro país com todo o aparato de Estado apenas para beber umas cervejas. De tanto repetirem os seus chavões, perderam a noção da realidade.


12 setembro 2025

era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto

 

O cancelamento do maestro Lahav Shani, por parte da direcção do Flanders Festival Ghent, é o escândalo do dia na Alemanha.
O texto que justifica a decisão encontra-se aqui. As passagens que mais questões me levantam são:

- "we have chosen to refrain from collaboration with partners who have not distanced themselves unequivocally from that regime".

Não basta este músico israelita, e director da Orquestra Nacional de Israel, ter feito repetidamente apelos à paz e à reconciliação, não basta que trabalhe com Barenboim e a sua East West Divan Orchestra. Tem de se demarcar "inequivocamente".

Pergunto: o que é "inequivocamente"? Para os grupos de pressão que desejam a extinção de Israel, que haja discurso e trabalho feito a favor da paz, da reconciliação e do diálogo entre os dois povos ficará naturalmente sempre aquém do "exigível".


- "Given the inhumanity of the current situation, which is also leading to emotional reactions in our own society, we believe it is undesirable to allow this concert to go ahead. We have chosen to maintain the serenity of our festival and safeguard the concert experience for our visitors and musicians."

Desde quando é que a cultura se tornou um espaço de serenidade?
Desde quando é que a cultura se deve ajoelhar para evitar "reacções emocionais"?


Uma nota final: têm sido feitas comparações com o maestro Valery Gergiev. O que é, a todos os títulos, abusivo. Valery Gergiev não é um simples maestro russo, é uma peça importante na máquina de propaganda do regime russo, põe deliberadamente a sua música ao serviço do imperialismo de Putin (mais detalhes: aqui). Quanto a Lahav Shani: se fala e trabalha a favor da paz e da reconciliação, não o podem acusar de defender a política e a ideologia genocida do governo de Netanyahu.
E não o acusam disso, de facto. O problema é outro: se não mostrar de forma "inequívoca" (seja lá o que isso for) que é um "judeu dos bons", não pode subir ao palco. Já tivemos esse tique em relação a artistas russos, após a invasão da Ucrânia. Pensava que tínhamos aprendido alguma coisa desde então.

11 setembro 2025

saber distinguir entre cidadãos e carne picada

 



Mais perigoso que um burro é um manhoso que se faz de burro: o mentiroso compulsivo conseguiu agora pôr a correr a mentira de que o presidente da República português vai a um festival de hamburgueres na Alemanha, e apela à revolta.

Acontece que, em 2025, Portugal é o país convidado para a Bürgerfest, a "festa dos cidadãos". Esta iniciativa do presidente da República alemã é um evento muito importante e simbólico da Democracia alemã, porque abre as portas e os jardins do palácio presidencial a todos os cidadãos, independentemente da classe social ou da nacionalidade.

Na sexta-feira, o presidente da República portuguesa será recebido com todas as honras pelo seu homólogo alemão. Seguir-se-á uma recepção no palácio, com quatro mil convidados escolhidos a dedo.

No sábado, as portas abrem-se para toda a cidade: muitos milhares de pessoas terão oportunidade de passear pelos jardins do palácio e visitar os stands portugueses (Camões, Turismo, Ciência Viva, etc.), comer petiscos preparados por excelentes cozinheiros portugueses (o slogan que inventaram tem muita graça: "taste the Tasca"), assistir a concertos de artistas portugueses e à actuação do grupo folclórico, e até participar num workshop de bombos.

Ontem fui entregar os bombos da nossa associação cultural, e senti-me esmagada com o esforço logístico necessário à realização desta festa. É uma coisa descomunal! E uma oportunidade excelente para Portugal mostrar à sociedade alemã algumas das suas facetas mais positivas.

São estes os factos. Como decorre da lei, o Parlamento português votou sobre a autorização desta viagem do presidente da República. O partido do Aldrabé votou contra, e o líder da matilha publicou um vídeo a congratular-se por esse voto. Portanto: por terem votado contra a deslocação do presidente da República portuguesa a Berlim, a convite do seu homólogo alemão, para ser a figura central numa festa organizada ao mais alto nível da política alemã, que este ano honra Portugal e os portugueses.

Segundo parece, votaram contra porque achavam que era um festival de hamburgueres... - o que mostra que os deputados daquela seita não se informam minimamente sobre os assuntos antes de darem o seu voto no Parlamento. E nem sequer se abstiveram por terem consciência da sua ignorância sobre o assunto - votaram contra! Mostraram que têm opiniões muito assertivas sobre assuntos que não estudaram minimamente.

Repito então a pergunta que o chunga-mor gosta de fazer para agitar as massas: os portugueses não se revoltam ao saber que o dinheiro dos seus impostos paga salários chorudos a deputados que votam sem saberem em que estão a votar?

É o salário chorudo dos sessenta deputados, é o salário dos trinta assessores e das quatro secretárias, é as ajudas de custo para todos os que vêm de fora de Lisboa: milhões e milhões de euros dos nossos impostos, e para quê? Entre aquelas 94 pessoas, não houve uma única que se desse ao trabalho de ler com atenção o que estava a ser votado!

É assim que tencionam "limpar Portugal"? ---
Antes de terminar, um detalhe sobre o nome "Bürgerfest":
- Bürger = cidadão
- Burger (sem trema no u) = hamburguer

Bem vistas as coisas, não admira nada que o Vintruja não saiba distinguir entre cidadãos e bocados de carne picada... Para ele é tudo a mesma coisa. E nós? Cidadãos ou bifes de carne picada, é tudo o mesmo: estamos fritos. (Agora estou muito curiosa para ver que cambalhota o Aldrabé vai dar para se safar desta como se tem safado de todas as outras.)


09 setembro 2025

o ponto de viragem no retrovisor

 



Fim das férias, e regresso a Berlim e aos noticiários alemães. O primeiro que vi, o Heute Journal de domingo, dia 7.9., analisava a actual situação política nos EUA. Partilho o filme, com esta tradução rapidíssima:

0:00 -- Um rei - é assim que Trump se apresenta - publica esta imagem nas redes sociais. "Long live the king", um rei que governa como lhe apetece. Trump: "Tenho o direito de fazer o que quiser, sou o presidente dos Estados Unidos." Na realidade, a Constituição impõe limites ao poder do presidente, prevê a separação de poderes. O presidente está sob o controlo do Parlamento e da Justiça. Mas Trump estica os limites até um ponto de ruptura. Será que a América chegou a um ponto de viragem? 0:31 -- Prof. Laurence Tribe, antigo professor de Direito Constitucional em Harvard: "Penso que já chegámos ao principal ponto de viragem, e já fomos além dele. Falo do sistema de checks and balances. Já não dispomos dele, as barreiras de protecção estão a ceder. A Democracia não morre num momento preciso. Não faz sentido procurar um ponto de viragem, como se em algum momento houvesse uma linha vermelha a atravessar. É mais uma zona vermelha que uma linha vermelha. E já nos encontramos em plena zona vermelha.

1:09 -- Para contornar a Constituição e o Parlamento, Donald Trump decreta estados de emergência que lhe permitem alargar os poderes presidenciais. Quando os juízes declaram a ilegalidade das medidas, já estas foram postas em prática há muito. Exemplo: militarização. Trump envia soldados para o território nacional - até agora, apenas em cidades governadas pelo Partido Democrata. A National Guard em Los Angeles, agentes de uniforme a ajudar facínoras mascarados a capturar nas ruas imigrantes sem documentos, para os deportar com um processo sumário. A desculpa para a presença dos soldados nas ruas? Um suposto estado de emergência ligado a imigrantes, um suposto estado de emergência criminal. 1:45 -- A secretária de Segurança Interna, muito incisiva, refere um outro objectivo: uma tomada do poder: "Continuamos aqui para libertar Los Angeles da sua liderança socialista e opressiva."

2:00 -- A separação de poderes deixou de funcionar. O Parlamento não controla o presidente. Os democratas, sem uma liderança clara, vagueiam sem rumo a reboque dos acontecimentos. A maioria republicana entende ser sua tarefa seguir Trump cegamente. Troy Nehls, republicano, membro da Câmara de Representantes: "Ele lidera. Se nos mandar saltar e coçar a cabeça, é o que faremos. That's it."

2:26 -- O aparelho governamental foi metido na linha: quem discorda vai para o olho da rua. Os elementos leais a Trump usam as instituições governamentais para perseguir adversários que desagradam ao presidente. Exemplo: John Bolton, antigo consultor de segurança e agora crítico de Trump. O FBI foi lançado no seu encalço com base em acusações que já tinham sido esclarecidas há anos. As investigações não revelaram nenhuma anomalia. Destinavam-se apenas a intimidar e calar esta voz crítica, tal como muitas outras, nomeadamente: os media, a ciência, a cultura e a oposição.

3:00 -- Stephen Miller, o homem por trás de Trump e seu mentor, emite um aviso drástico: "O Partido Democrata não representa os cidadãos da América, nem luta por eles. É uma organização que se dedica unica e exclusivamente à defesa de criminosos, violadores, e também assassinos e terroristas que entram ilegalnmente no país. O Partido Democrata não é um partido político, é uma organização extremista interna." Se a oposição, o Parlamento e os media falham, a última instância é o Tribunal Constitucional. Mas, na sua maioria, os juízes deste tribunal seguem a linha de Trump e já ampliaram os seus poderes.

3:46 -- Prof. Laurence Tribe: "Seria errado dizer que os tribunais falharam no seu conjunto. Mas também seria errado dizer que os tribunais nos podem salvar. No fundo, o que é necessário agora é a mobilização de todos os americanos que ao menos parcialmente percebem o que significaria viver inteiramente sujeitos a uma ditadura autoritária e déspota. É preciso que se unam e se ergam em protestos generalizados."

4:20 -- Mas não há sinal de protestos generalizados. Em seu lugar, faixas sinistras do presidente nos edifícios ministeriais. O povo está demasiado exausto para se erguer. Uma e outra vez, o governo responde às questões críticas com uma frase simples: "confiem em Trump."

4:40 -- Que rumo levam os EUA? Fiz esta pergunta a um dos filósofos americanos mais famosos da actualidade, Jason Stanley. O fascismo é um dos temas que mais estuda. Até este ano, era professor em Yale, mas decidiu sair dos EUA devido ao clima político, e é agora professor no Canadá, na Universidade de Toronto. 5:06 -- Entrevista: - Vendo estas cenas dos EUA, estes memes, estas faixas com o retrato de Trump e também estes apelos "confiem em Trump!", ficamos com a sensação de estarmos perante um culto do líder, o que é uma das caracteríristicas do fascismo. Ou será que estamos a exagerar? - Não. Essa é a designação correcta. O nosso país tem a sua própria história de fascismo. Hitler elogiou os Estados Unidos no Mein Kampf. Não é novidade para nós. Este culto do líder está mais próximo do fascismo europeu. Jim Crow, o nosso sistema racista nos Estados do Sul, só terminou em 1965. O que foi descrito como fascismo por americanos negros. - Está, então, a afirmar que a Democracia norte-americana não é tão antiga quanto se pensa na Europa, que vê nela um modelo?

- Exactamente. Somos uma Democracia jovem. Só desde 1965, com o nosso Voting Rights Act, nos tornamos democráticos. Até então, éramos uma Democracia da "raça superior". E mesmo no presente: o sistema prisional norte-americano é o maior do mundo. A percentagem de prisioneiros em West Virginia é dez vezes maior que na Alemanha. No Ohio, nove vezes maior. O nosso sistema era, é democrático? No presente, é óbvio que não é um sistema democrático. Mas será que os EUA foram alguma vez uma Democracia? Certamente não foram uma Democracia saudável.

- Diria que os Estados Unidos já não são uma Democracia? Ainda há eleições, ainda há liberdade de imprensa, ainda não assistimos à prisão massiva de membros da oposição, e tudo o mais que associamos ao fascismo.

- Temos de parar de falar sobre o possível fim da Democracia norte-americana. Já passámos esse ponto há muito. Neste momento, os Estados Unidos têm um regime autoritário. Podemos discutir se é fascista ou não, mas já não há limites. Diz que os políticos da oposição não estão a ser enviados para Sachsenhausen ou algo assim, mas estão a ser atacados pelo nosso sistema de Justiça, o nosso "sistema de Justiça". Vemos que Trump processou o senador californiano Adam Shift, bem como outros políticos do Partido Democrata. Já está a começar. Não é ainda 1938 na Alemanha, mas já é 1933.

- Ou seja: um clima de medo, no qual todos temem perder o seu emprego, ou pagar um preço muito alto se, por exemplo, criticarem Trump ou tomarem uma posição pública contra algo.

- Sim. Vemos isso por exemplo no jantar dos Tech-CEOs com Trump e a sua mulher, na semana passada. Parecia uma cena da China, ou da Coreia do Norte, e não de uma Democracia. Todos lhe teceram enormes elogios. Os próprios líderes europeus fizeram o mesmo. É a maneira de se relacionar com ele agora, o que está longe de ser o normal num sistema democrático.

- A ausência de reacção por parte dos democratas, da oposição, surpreende. Como a explica?

- Vejamos: a Alemanha também tem um partido fascista, a AfD, ao qual o regime norte-americano está intimamente ligado. O nosso State Department foi reorganizado, e recebeu um novo elemento: o departamento da remigração. Vemos que as ligações são muito fortes. Mas na Alemanha há uma resistência clara a este partido anti-democrático. Algo que não acontece entre nós. Porquê? Talvez porque a nossa Democracia já não estava saudável há muito tempo.

- Um cenário muito sombrio. Prof. Stanley, obrigada pela entrevista.

08 setembro 2025

um pouco de beleza

 


Venho cá deixar alguma beleza, para fazer um intervalinho da maldade do mundo, que tem andado a rebentar pelas costuras.
Foi o facebook que me lembrou hoje, e me devolveu este bocadinho da história de Lisa Della Casa, que escrevi na altura:
O Strauss adorava-a. O marido dela também: deixou a sua própria carreira para cuidar da família, de modo a que ela pudesse entregar-se inteiramente ao canto. Quando lhe perguntavam "e o seu marido, o que faz?" ela respondia "ama-me". Mas depois aconteceu algo trágico: a filha de uns vinte anos teve de ser operada ao cérebro. Safou-se, mas ficou paralizada de um lado. E nessa altura ela tinha um concerto, uma ópera pouco conhecida de Haendel. Não tinha substituta. Cantou a ópera, e nunca mais cantou, nem sequer entre amigos.

11 agosto 2025

feirão

 

Por estes dias, há Feirão em Viana do Castelo: os ranchos da região alegram algumas praças da cidade com as suas danças, a música e os petiscos minhotos. Pataniscas fritas no momento. Vinho verde na malga. Bolos caseiros daqueles que parecem Páscoa. Rissóis de chouriça de sangue.
(Ide para o Algarve, ide. 😉 )







05 agosto 2025

hoje mesmo, no inferno de Gaza

 

Gaza hoje mesmo, pelos olhos e pelo coração de Raul Manarte.
Ele está a arriscar a vida para ajudar as vítimas daquele horror.
O mínimo que podemos fazer é ler e partilhar o seu testemunho. [ O texto e a foto de Raul Manarte podem ser encontrados aqui ]


Gaza, 5 de Agosto de 2025

Hoje acordamos com bombas (como sempre), mas com a notícia que Netanyahu vai invadir toda a faixa de Gaza. As pessoas estão com muito medo.

Quando as crianças vêm para ser amputadas ou para mudar as ligaduras das queimaduras também estão cheias de medo. Depois vejo os meus colegas: pessoas sem casa, a viver em tendas, com familiares mortos, com fome, sem certeza se vão estar cá amanhã - e vejo-os a serem os seres humanos mais gentis e pacientes que já vi com estas crianças…

A forma meiga como falam com elas, como as preparam, como usam os fantoches, como as deixam brincar com a gaze e o desinfetante para perderem o medo, como as distraem com bolhas de sabão ou vídeo enquanto gritam com a dor da pele queimada… e não entendo… começo a chorar sozinho. É sempre esta gentileza que me arrasa. A luz mexe mais comigo do que a escuridão. E quanto mais perdidos no escuro estamos, mais bonita é a luz deles.

Hoje fiz a estrada para Norte. Neste mundo estranho tenho de dizer que é uma estrada “Mad Max” para que outros possam ter uma ideia do que quero dizer. Não há um prédio inteiro, quase não há carros e os que existem estão adulterados, batidos e baleados.

Há pessoas a queimar pneus à beira da estrada para fazer combustível. Quando cheguei a Gaza city tive de tirar uma foto: vi uma árvore! Já não me lembrava de árvores… E eles? Será que se lembram do toque das flores? Do som das folhas? Do cheiro das marés seguras?

Vamos começar a dar apoio também aos condutores dos camiões de comida que entram. São parados durante até 36 horas na fronteira sem comer, obrigados a despir e a estarem de joelhos por horas, são ameaçados, humilhados e agredidos.
Quando finalmente saem da fronteira têm ordens para andar depressa, se abrandam recebem um tiro de aviso - são obrigados a atropelar as pessoas que tentam parar o camião.

Quando a multidão é imensa, têm de parar. São arrastados para fora e novamente espancados.
São os únicos que não podem levar nenhuma da comida que trazem porque se não são despedidos. São obrigados a levar os corpos cheios de sangue no próprio camião, alguns deles foram eles que atropelaram...
Precisamos de um psicólogo homem porque não vão dizer a uma mulher que defecaram nas calças.

Há gente que tenta convencer-nos que estamos divididos em duas equipas: uma que vê os reféns e outra que vê os palestinianos.

Malditos sejam. Conseguiram.

Se me conseguires ouvir: nós estamos todos do mesmo lado. O da humanidade.
Eles, os que criam esses grupos, eles que se fodam…

Hoje acordámos com a notícia de que Gaza será tomada.
Mas também com a de que 6 dos nossos pacientes vão ser evacuados deste inferno amanhã.

Decidi focar-me na última. 

vá para fora cá dentro

 


Uma das coisas boas de receber amigos em Berlim é sair com eles a redescobrir a cidade. Como por estes dias: uma velha amiga veio visitar-nos, e andámos a dar na boa vida à grande e à francesa (e à alemã, e à cingalesa, e à australiana, e a todas as nacionalidades que calha, que a vida, quanto mais se mistura melhor fica).





Começámos por ir à exposição de Pissarro no Barberini. Excelente, como é habitual neste museu.

Apesar de já estarmos cansadas no fim da exposição temporária, não nos fomos embora sem ver também a colecção de impressionistas de Hasso Plattner. E ainda bem, por todos os motivos, e também porque nos cruzámos com um senhor sentado em frente ao "Chemin Montant", de Caillebotte, mortinho por ter alguém com quem se maravilhar. De modo que ficámos a conversar com ele e a ajudá-lo a matar saudades daquele quadro que andou em digressão dois anos e meio e só agora regressou a casa.


Depois fomos almoçar numa casa de madeira do princípio do século XIX, na colónia russa Alexandrovka (será que já contei a história do czar que ofereceu um coro cossaco ao seu novo cunhado, e simplesmente mandou essa gente toda para a Prússia?).
Antes de regressar a Berlim ainda fomos visitar o palácio do velho Fritz. Continua lindo.







Conhecemos dois novos restaurantes: o alemão Engelbecken e o de inspiração cingalesa Sathutu (muito bom, mas se forem tão pelintras como eu é melhor comerem um kebab ou uma salsicha antes de ir ao restaurante, porque se calha de entrarem lá com fome levam um rombozito nas finanças domésticas). Também nos deram uma lista de outros restaurantes a explorar, que aqui deixo a quem interessar possa: Otto e Wen Cheng.


Ao anoitecer, fomos ao Chamäleon ver A Simple Space, o primeiro show da companhia australiana Gravity and Other Myths, que já caminha para uns 20 anos de existência mas continua fresco e adorável. Gostei muito da abertura: o anúncio "I'm falling!", o deixar-se cair, o confiar que alguém vai parar a queda. Gostei muito do humor do show.




E ainda nos rimos imenso com a nossa amiga, lembrando o dia em que chegámos em cima da hora e nos mandaram ir pelas traseiras, Mal nós sabíamos que nos punham a entrar directamente para o palco: o show passava-se num apartamento, e nós chegámos pela porta do frigorífico. A ideia seria talvez envergonhar os que chegavam por último, mas a nossa amiga não se atrapalhou. É mãe de um artista desses circos, conhecia metade das pessoas que estavam em palco, tudo a postos para começar e ela ali parada a conversar com eles animadamente: "olá, como estás? que giro encontrar-te aqui!"




Depois voltámos para casa, pelo centro da Berlim nocturna, e tirei uma fotografia à torre da televisão à maneira de um quadro que vi no Barberini: com uma ponte a atravessar a imagem separando motivos completamente diferentes. Acho que era uma ideia de Pissarro, mas não tenho a certeza. De modo que agora vou esperar pacientemente por algum outro amigo que nos venha visitar, para voltar lá e confirmar quem é o autor que plagiei. É isto a minha vida... Note to self: nunca, nunca, nunca! sair de casa sem a câmara fotográfica. Estas fotos de telemóvel ficam muito aquém.

04 agosto 2025

ou Deus ou Newton

Apontamento de umas férias do ano passado: Fui a última a entrar no autocarro. O meu lugar à janela estava ocupado por um belo moçoilo muito musculoso, de pernas escanchadas tipo: a ocupar o lugar dele e metade do meu. “Pick your fights”, pensei eu, e sentei-me no lugar do corredor.

Mas depois - não sei se foi Deus, ou Newton - ao deixar cair a mochila pesadíssima para o chão ela resvalou um bocado para cima da coxa dele, e pedi muita desculpa. Agora aqui vou eu no meu lugar inteiro, em vez de ir toda torta em meio lugar, e não sei se agradeça a Deus ou ao Newton.

02 agosto 2025

jeans e genes, publicidade e "wokes"

1. A American Eagle fez um anúncio com o trocadilho jeans/genes. A branquíssima actriz diz: "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." O anúncio termina com a frase: "Sydney Sweeney has great jeans." (Pode ver-se aqui)


2. E pronto: está instalada a polémica (tal como os autores do anúncio desejavam). Uns protestam porque vêem ali um piscar de olhos às ideias da supremacia branca ("Sydney Sweeney has great genes") e à herança ideológica do nazismo, e apelam ao cancelamento da American Eagle. Outros criticam os primeiros. Como não podia deixar de ser, o pessoal da agenda ideológica radical de direita aproveita a situação, chama-lhe um figo. E os choramingas do "já não se pode dizer nada..." vêm dizer que "os woke, fanáticos como são, é que têm a culpa de a direita radical chegar ao poder".


3. Esqueceram-se que um dia é da caça e o outro é do caçador, e que "woke" somos nós todos quando nos pisam os calos. Mais ainda: os conservadores são bem capazes de dar dez a zero ao pessoal de esquerda.

Pelos vistos já ninguém se lembra do escândalo que foi quando a Zippy fez roupa infantil unisexo - a reacção do bloco "menino veste azul, menina veste rosa" foi de tal modo brutal que a Zippy nunca mais se atreveu a repetir a gracinha.

Também não se lembram da fortíssima reacção de sectores da Igreja Católica quando a Benetton fez publicidade com um padre e uma freira a beijarem-se. E que dizer dos protestos quando a IKEA começou a fazer catálogos com casais de etnias/cores diferentes ou do mesmo sexo?

Acontece nos EUA, acontece na Europa, acontece até na Austrália: foi grande o escândalo quando um anúncio sobre doação de órgãos mostrou um filme de Jesus já na cruz a conversar sobre o assunto e a tirar selfies com os soldados romanos. Como sempre, em publicidade, a ideia do filme era pôr as pessoas a falar do assunto.






Em 2022, a Volkswagen apareceu nas redes sociais com uma mensagem de aceitação da homosexualidade para publicitar o novo Polo. Levou com milhares de reacções homofóbicas.

Há tempos, a Budweiser lançou uma campanha de publicidade com uma influenciadora famosa, a trans Dylan Mulvaney. Mais uma vez, os "woke" que se sentem muito ameaçados por aquilo a que chamam "ideologia de género" não se ficaram: conseguiram baixar as vendas da Budweiser em 17%, e o valor de mercado da empresa desceu seis mil milhões de dólares. Alguém me consegue dar um exemplo de campanha de cancelamento, por parte dos "woke" de esquerda, com iguais resultados?

Muitos mais exemplos de episódios de publicidade que lançaram os "woke" conservadores numa fúria de cancelamento haveria para dar. E também os há em grande número para além da publicidade. Só em Portugal, e sem pensar muito, lembro vários casos de a Igreja Católica tentar cancelar filmes ("Je vous salue, Marie", por exemplo: desde ameaças aos cinemas por parte do presidente da Câmara, Nuno Abecassis, até uma multidão a invadir a sala, a gritar e a rezar o terço, que acabou por ser dispersada pela polícia) e penso na vaga de críticas escandalizadas a Herman José devido ao seu humor sem respeitinho pelos valores, pela História e pela cultura do nosso país.


4. A ideia central da publicidade é provocar, para pôr as pessoas a repetir o nome do produto. A American Eagle decidiu fazer esta publicidade assim, justamente agora quando as ideias de supremacia branca estão a reconquistar terreno, porque sabia que era a polémica mais eficaz do momento.

Se me deixassem mandar, preferia que os críticos fossem capazes de algum recuo, e se limitassem a chamar a atenção para os factos: a American Eagle escolheu fazer trocadilhos com genes de miúdas loiras de olhos azuis neste tempo em que estamos cada vez mais polarizados entre apologistas da supremacia branca versus defesa dos direitos humanos. Interessante...


5. O trocadilho jeans/genes não obriga necessariamente a usar uma jovem branca. Se a empresa American Eagle tivesse alguma consciência social e responsabilidade democrática, nesta altura da História podia mostrar mulheres de diferentes nacionalidades e etnias (especialmente aquelas que têm sido raptadas e deportadas por tipos mascarados que dizem ser polícia): "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." - e rematar com a frase: "We all have great jeans".

(Senhores da Levi's, ou outra marca qualquer de jeans: se quiserem aproveitar a ideia, estejam à vontade.)

31 julho 2025

*Pandora*

Ao ler "Pandora" na lista de temas do nosso Largo da escrita, pensei imediatamente na famosa caixa. A terrível caixa de Pandora, o risco de a abrir, e os seus dois primos: o Rubicão e o Plano Inclinado.

Pensei também numa entrevista de Zizek em 2016, pouco antes das primeiras eleições que levaram Trump à Casa Branca. Nessa altura, Zizek pensava que uma vitória de Trump seria positiva, porque viria sacudir profundamente todo o sistema, obrigando-o a repensar-se e a limpar-se dos muitos vícios acumulados.

É uma questão interessante: que fazer quando tudo parece estar a desmoronar-se? Acelerar o processo para chegar o mais depressa possível a algum outro lado? Abrir a caixa de Pandora, atravessar o Rubicão, meter-se pelo Plano Inclinado a duzentos à hora? Atirar gasolina ao fogo, na esperança de que uma fénix renasça das cinzas, purificada e liberta?

Sinto-me nos antípodas dessa afirmação de Zizek em 2016, e 2025 confirma os meus temores: acelerar deliberadamente processos históricos de retrocesso civilizacional não nos leva a fénix alguma.

Porque, quando a caixa de Pandora se abre, não há consenso sobre o seu conteúdo: para uns, é o mal que se espalha pelo mundo; para outros, é o início de um tempo novo, em que sentem que são compreendidos, podem enfim dizer livremente o que lhes vai na alma, e recuperam tudo aquilo a que sempre tiveram direito. Atravessa-se o Rubicão para chegar à terra prometida, essa que é só para os nossos. Acentua-se o declive do Plano Inclinado para mais rapidamente separar o trigo do joio. Os outros? Que se lixem.

A fénix purificada pelo fogo é uma ilusão. Do outro lado do fogo, o que nos espera não é a fénix, mas as ruínas do bem que, com gestos frágeis e incertos, tentámos inscrever na História.

E teremos apenas as nossas mãos, feridas e nuas, para recomeçar penosamente o caminho rumo a mais humanidade. E trabalharemos nos escombros. E teremos por companhia aqueles que a caixa de Pandora envenenou. --- Outras companheiras deste Largo: A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra