2 Dedos de Conversa
... sobre o que nos desaquieta
18 setembro 2025
"Utah"
17 setembro 2025
o trigo e o joio
16 setembro 2025
factos sobre a "Burgerfest"
A confusão entre "cidadãos" e "hambúrgueres" tem sido acompanhada por muita informação, contra-informação e mentiras descaradas. Deixo aqui uma compilação dos factos, para memória futura.
1. O projecto de resolução que foi votado no Parlamento português no dia 9.9.2025 falava em "deslocação à Alemanha a convite do presidente alemão, incluindo a participação na Burgerfest".
É verdade que estava escrito "Burgerfest" e não "Bürgerfest". Mas a redacção do texto deixa claro que se está a responder a um convite oficial do presidente alemão, e atribui um lugar subsidiário à festa. A posteriori, comprova-se que a proposta de resolução descrevia de forma directa e concisa o que estava em causa: primeiro, o presidente da República português foi recebido com todas as honras no palácio presidencial. Os dois presidentes tiveram oportunidade de conversar a sós, e seguidamente houve uma reunião alargada com a comitiva presidencial. Pelas seis da tarde, os dois presidentes vieram para o jardim, discursaram perante os convidados daquela festa, e visitaram os stands. Os stands alemães apresentavam o trabalho de organizações de voluntariado, que são o elemento central desta festa. Na área de Portugal, o país convidado, apresentava-se a língua portuguesa, a inovação científica na área dos têxteis, os oceanos, o turismo, a gastronomia, os vinhos e uma grande conquista do futebol português.
Na realidade, para o caso pouco importa se a festa era de cidadãos ou de hambúrgueres. O mais importante desta deslocação - e isso foi formulado com clareza na proposta apresentada à Assembleia Parlamentar - era o convite oficial feito pelo presidente alemão.
2. Se, no dia 9 de Setembro, quando a proposta foi votada na Assembleia, houvesse dúvidas sobre esta festa, seria possível informar-se no site da Embaixada de Portugal na Alemanha. A notícia estava em lugar de destaque desde o dia 1 de Setembro. O próprio título já revelava algo muito importante: "Portugal é o País Convidado da Bürgerfest 2025"
3. O partido que votou contra a deslocação do presidente da República português à Alemanha, a convite do seu homólogo alemão, tem sessenta deputados. Não consegui apurar quantos assessores trabalham de momento para esses sessenta deputados, mas na legislatura anterior, quando o partido tinha menos dez deputados do que actualmente, já empregava trinta assessores e quatro secretárias. Depreendo, assim, que este partido tem pelo menos noventa e quatro pessoas pagas pelos nossos impostos, que auferem de salários superiores à média dos trabalhadores portugueses, uma vez que o Estado reconhece a grande responsabilidade do cargo que ocupam.
4. Destas cerca de cem pessoas, não houve uma única que lesse as poucas linhas da proposta com atenção, se desse conta do logro e alertasse o grupo parlamentar: "atenção, a proposta que vai ser votada é sobre um convite oficial do presidente da República alemão!". E muito menos que se fosse informar e acrescentasse: "incluindo a participação num evento importante que tem Portugal como país convidado. Atenção, que isto não é sobre beber umas cervejolas num festival gastronómico".
Em suma: o grupo parlamentar deste partido deixou-se confundir com uma questão acessória no texto da proposta e votou contra uma visita oficial a convite do presidente alemão sem que alguém daquela centena de pessoas remuneradas pelo Estado português se tivesse dado ao trabalho de recolher mais informações sobre o que ia a votação.
Fica a pergunta: é assim que os deputados deste partido trabalham no Parlamento português? É com este fraco sentido de responsabilidade e esta falta de seriedade no cumprimento das suas funções que vão "limpar Portugal"? Fica uma hipótese: de tanto repetirem os seus chavões populistas contra os políticos e o sistema, acabam por acreditar que o sistema político português é realmente como eles dizem, e que seria natural um presidente da República deslocar-se a outro país com todo o aparato de Estado apenas para beber umas cervejas. De tanto repetirem os seus chavões, perderam a noção da realidade.
12 setembro 2025
era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
11 setembro 2025
saber distinguir entre cidadãos e carne picada
09 setembro 2025
o ponto de viragem no retrovisor
Fim das férias, e regresso a Berlim e aos noticiários alemães. O primeiro que vi, o Heute Journal de domingo, dia 7.9., analisava a actual situação política nos EUA. Partilho o filme, com esta tradução rapidíssima:
0:00 -- Um rei - é assim que Trump se apresenta - publica esta imagem nas redes sociais. "Long live the king", um rei que governa como lhe apetece. Trump: "Tenho o direito de fazer o que quiser, sou o presidente dos Estados Unidos." Na realidade, a Constituição impõe limites ao poder do presidente, prevê a separação de poderes. O presidente está sob o controlo do Parlamento e da Justiça. Mas Trump estica os limites até um ponto de ruptura. Será que a América chegou a um ponto de viragem? 0:31 -- Prof. Laurence Tribe, antigo professor de Direito Constitucional em Harvard: "Penso que já chegámos ao principal ponto de viragem, e já fomos além dele. Falo do sistema de checks and balances. Já não dispomos dele, as barreiras de protecção estão a ceder. A Democracia não morre num momento preciso. Não faz sentido procurar um ponto de viragem, como se em algum momento houvesse uma linha vermelha a atravessar. É mais uma zona vermelha que uma linha vermelha. E já nos encontramos em plena zona vermelha.
1:09 -- Para contornar a Constituição e o Parlamento, Donald Trump decreta estados de emergência que lhe permitem alargar os poderes presidenciais. Quando os juízes declaram a ilegalidade das medidas, já estas foram postas em prática há muito. Exemplo: militarização. Trump envia soldados para o território nacional - até agora, apenas em cidades governadas pelo Partido Democrata. A National Guard em Los Angeles, agentes de uniforme a ajudar facínoras mascarados a capturar nas ruas imigrantes sem documentos, para os deportar com um processo sumário. A desculpa para a presença dos soldados nas ruas? Um suposto estado de emergência ligado a imigrantes, um suposto estado de emergência criminal. 1:45 -- A secretária de Segurança Interna, muito incisiva, refere um outro objectivo: uma tomada do poder: "Continuamos aqui para libertar Los Angeles da sua liderança socialista e opressiva."
2:00 -- A separação de poderes deixou de funcionar. O Parlamento não controla o presidente. Os democratas, sem uma liderança clara, vagueiam sem rumo a reboque dos acontecimentos. A maioria republicana entende ser sua tarefa seguir Trump cegamente. Troy Nehls, republicano, membro da Câmara de Representantes: "Ele lidera. Se nos mandar saltar e coçar a cabeça, é o que faremos. That's it."
2:26 -- O aparelho governamental foi metido na linha: quem discorda vai para o olho da rua. Os elementos leais a Trump usam as instituições governamentais para perseguir adversários que desagradam ao presidente. Exemplo: John Bolton, antigo consultor de segurança e agora crítico de Trump. O FBI foi lançado no seu encalço com base em acusações que já tinham sido esclarecidas há anos. As investigações não revelaram nenhuma anomalia. Destinavam-se apenas a intimidar e calar esta voz crítica, tal como muitas outras, nomeadamente: os media, a ciência, a cultura e a oposição.
3:00 -- Stephen Miller, o homem por trás de Trump e seu mentor, emite um aviso drástico: "O Partido Democrata não representa os cidadãos da América, nem luta por eles. É uma organização que se dedica unica e exclusivamente à defesa de criminosos, violadores, e também assassinos e terroristas que entram ilegalnmente no país. O Partido Democrata não é um partido político, é uma organização extremista interna." Se a oposição, o Parlamento e os media falham, a última instância é o Tribunal Constitucional. Mas, na sua maioria, os juízes deste tribunal seguem a linha de Trump e já ampliaram os seus poderes.
3:46 -- Prof. Laurence Tribe: "Seria errado dizer que os tribunais falharam no seu conjunto. Mas também seria errado dizer que os tribunais nos podem salvar. No fundo, o que é necessário agora é a mobilização de todos os americanos que ao menos parcialmente percebem o que significaria viver inteiramente sujeitos a uma ditadura autoritária e déspota. É preciso que se unam e se ergam em protestos generalizados."
4:20 -- Mas não há sinal de protestos generalizados. Em seu lugar, faixas sinistras do presidente nos edifícios ministeriais. O povo está demasiado exausto para se erguer. Uma e outra vez, o governo responde às questões críticas com uma frase simples: "confiem em Trump."
4:40 -- Que rumo levam os EUA? Fiz esta pergunta a um dos filósofos americanos mais famosos da actualidade, Jason Stanley. O fascismo é um dos temas que mais estuda. Até este ano, era professor em Yale, mas decidiu sair dos EUA devido ao clima político, e é agora professor no Canadá, na Universidade de Toronto. 5:06 -- Entrevista: - Vendo estas cenas dos EUA, estes memes, estas faixas com o retrato de Trump e também estes apelos "confiem em Trump!", ficamos com a sensação de estarmos perante um culto do líder, o que é uma das caracteríristicas do fascismo. Ou será que estamos a exagerar? - Não. Essa é a designação correcta. O nosso país tem a sua própria história de fascismo. Hitler elogiou os Estados Unidos no Mein Kampf. Não é novidade para nós. Este culto do líder está mais próximo do fascismo europeu. Jim Crow, o nosso sistema racista nos Estados do Sul, só terminou em 1965. O que foi descrito como fascismo por americanos negros. - Está, então, a afirmar que a Democracia norte-americana não é tão antiga quanto se pensa na Europa, que vê nela um modelo?
- Exactamente. Somos uma Democracia jovem. Só desde 1965, com o nosso Voting Rights Act, nos tornamos democráticos. Até então, éramos uma Democracia da "raça superior". E mesmo no presente: o sistema prisional norte-americano é o maior do mundo. A percentagem de prisioneiros em West Virginia é dez vezes maior que na Alemanha. No Ohio, nove vezes maior. O nosso sistema era, é democrático? No presente, é óbvio que não é um sistema democrático. Mas será que os EUA foram alguma vez uma Democracia? Certamente não foram uma Democracia saudável.
- Diria que os Estados Unidos já não são uma Democracia? Ainda há eleições, ainda há liberdade de imprensa, ainda não assistimos à prisão massiva de membros da oposição, e tudo o mais que associamos ao fascismo.
- Temos de parar de falar sobre o possível fim da Democracia norte-americana. Já passámos esse ponto há muito. Neste momento, os Estados Unidos têm um regime autoritário. Podemos discutir se é fascista ou não, mas já não há limites. Diz que os políticos da oposição não estão a ser enviados para Sachsenhausen ou algo assim, mas estão a ser atacados pelo nosso sistema de Justiça, o nosso "sistema de Justiça". Vemos que Trump processou o senador californiano Adam Shift, bem como outros políticos do Partido Democrata. Já está a começar. Não é ainda 1938 na Alemanha, mas já é 1933.
- Ou seja: um clima de medo, no qual todos temem perder o seu emprego, ou pagar um preço muito alto se, por exemplo, criticarem Trump ou tomarem uma posição pública contra algo.
- Sim. Vemos isso por exemplo no jantar dos Tech-CEOs com Trump e a sua mulher, na semana passada. Parecia uma cena da China, ou da Coreia do Norte, e não de uma Democracia. Todos lhe teceram enormes elogios. Os próprios líderes europeus fizeram o mesmo. É a maneira de se relacionar com ele agora, o que está longe de ser o normal num sistema democrático.
- A ausência de reacção por parte dos democratas, da oposição, surpreende. Como a explica?
- Vejamos: a Alemanha também tem um partido fascista, a AfD, ao qual o regime norte-americano está intimamente ligado. O nosso State Department foi reorganizado, e recebeu um novo elemento: o departamento da remigração. Vemos que as ligações são muito fortes. Mas na Alemanha há uma resistência clara a este partido anti-democrático. Algo que não acontece entre nós. Porquê? Talvez porque a nossa Democracia já não estava saudável há muito tempo.
- Um cenário muito sombrio. Prof. Stanley, obrigada pela entrevista.
08 setembro 2025
um pouco de beleza
11 agosto 2025
feirão

05 agosto 2025
hoje mesmo, no inferno de Gaza
Hoje acordamos com bombas (como sempre), mas com a notícia que Netanyahu vai invadir toda a faixa de Gaza. As pessoas estão com muito medo.
Quando as crianças vêm para ser amputadas ou para mudar as ligaduras das queimaduras também estão cheias de medo. Depois vejo os meus colegas: pessoas sem casa, a viver em tendas, com familiares mortos, com fome, sem certeza se vão estar cá amanhã - e vejo-os a serem os seres humanos mais gentis e pacientes que já vi com estas crianças…
A forma meiga como falam com elas, como as preparam, como usam os fantoches, como as deixam brincar com a gaze e o desinfetante para perderem o medo, como as distraem com bolhas de sabão ou vídeo enquanto gritam com a dor da pele queimada… e não entendo… começo a chorar sozinho. É sempre esta gentileza que me arrasa. A luz mexe mais comigo do que a escuridão. E quanto mais perdidos no escuro estamos, mais bonita é a luz deles.
Hoje fiz a estrada para Norte. Neste mundo estranho tenho de dizer que é uma estrada “Mad Max” para que outros possam ter uma ideia do que quero dizer. Não há um prédio inteiro, quase não há carros e os que existem estão adulterados, batidos e baleados.
Há pessoas a queimar pneus à beira da estrada para fazer combustível. Quando cheguei a Gaza city tive de tirar uma foto: vi uma árvore! Já não me lembrava de árvores… E eles? Será que se lembram do toque das flores? Do som das folhas? Do cheiro das marés seguras?
Vamos começar a dar apoio também aos condutores dos camiões de comida que entram. São parados durante até 36 horas na fronteira sem comer, obrigados a despir e a estarem de joelhos por horas, são ameaçados, humilhados e agredidos.
Quando finalmente saem da fronteira têm ordens para andar depressa, se abrandam recebem um tiro de aviso - são obrigados a atropelar as pessoas que tentam parar o camião.
Quando a multidão é imensa, têm de parar. São arrastados para fora e novamente espancados.
São os únicos que não podem levar nenhuma da comida que trazem porque se não são despedidos. São obrigados a levar os corpos cheios de sangue no próprio camião, alguns deles foram eles que atropelaram...
Precisamos de um psicólogo homem porque não vão dizer a uma mulher que defecaram nas calças.
Há gente que tenta convencer-nos que estamos divididos em duas equipas: uma que vê os reféns e outra que vê os palestinianos.
Malditos sejam. Conseguiram.
Se me conseguires ouvir: nós estamos todos do mesmo lado. O da humanidade.
Eles, os que criam esses grupos, eles que se fodam…
Hoje acordámos com a notícia de que Gaza será tomada.
Mas também com a de que 6 dos nossos pacientes vão ser evacuados deste inferno amanhã.
Decidi focar-me na última.
vá para fora cá dentro
04 agosto 2025
ou Deus ou Newton
Apontamento de umas férias do ano passado: Fui a última a entrar no autocarro. O meu lugar à janela estava ocupado por um belo moçoilo muito musculoso, de pernas escanchadas tipo: a ocupar o lugar dele e metade do meu. “Pick your fights”, pensei eu, e sentei-me no lugar do corredor.
02 agosto 2025
jeans e genes, publicidade e "wokes"
1. A American Eagle fez um anúncio com o trocadilho jeans/genes. A branquíssima actriz diz: "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." O anúncio termina com a frase: "Sydney Sweeney has great jeans." (Pode ver-se aqui)
2. E pronto: está instalada a polémica (tal como os autores do anúncio desejavam). Uns protestam porque vêem ali um piscar de olhos às ideias da supremacia branca ("Sydney Sweeney has great genes") e à herança ideológica do nazismo, e apelam ao cancelamento da American Eagle. Outros criticam os primeiros. Como não podia deixar de ser, o pessoal da agenda ideológica radical de direita aproveita a situação, chama-lhe um figo. E os choramingas do "já não se pode dizer nada..." vêm dizer que "os woke, fanáticos como são, é que têm a culpa de a direita radical chegar ao poder".
3. Esqueceram-se que um dia é da caça e o outro é do caçador, e que "woke" somos nós todos quando nos pisam os calos. Mais ainda: os conservadores são bem capazes de dar dez a zero ao pessoal de esquerda.
Pelos vistos já ninguém se lembra do escândalo que foi quando a Zippy fez roupa infantil unisexo - a reacção do bloco "menino veste azul, menina veste rosa" foi de tal modo brutal que a Zippy nunca mais se atreveu a repetir a gracinha.
Também não se lembram da fortíssima reacção de sectores da Igreja Católica quando a Benetton fez publicidade com um padre e uma freira a beijarem-se. E que dizer dos protestos quando a IKEA começou a fazer catálogos com casais de etnias/cores diferentes ou do mesmo sexo?
Acontece nos EUA, acontece na Europa, acontece até na Austrália: foi grande o escândalo quando um anúncio sobre doação de órgãos mostrou um filme de Jesus já na cruz a conversar sobre o assunto e a tirar selfies com os soldados romanos. Como sempre, em publicidade, a ideia do filme era pôr as pessoas a falar do assunto.
Em 2022, a Volkswagen apareceu nas redes sociais com uma mensagem de aceitação da homosexualidade para publicitar o novo Polo. Levou com milhares de reacções homofóbicas.
Há tempos, a Budweiser lançou uma campanha de publicidade com uma influenciadora famosa, a trans Dylan Mulvaney. Mais uma vez, os "woke" que se sentem muito ameaçados por aquilo a que chamam "ideologia de género" não se ficaram: conseguiram baixar as vendas da Budweiser em 17%, e o valor de mercado da empresa desceu seis mil milhões de dólares. Alguém me consegue dar um exemplo de campanha de cancelamento, por parte dos "woke" de esquerda, com iguais resultados?Muitos mais exemplos de episódios de publicidade que lançaram os "woke" conservadores numa fúria de cancelamento haveria para dar. E também os há em grande número para além da publicidade. Só em Portugal, e sem pensar muito, lembro vários casos de a Igreja Católica tentar cancelar filmes ("Je vous salue, Marie", por exemplo: desde ameaças aos cinemas por parte do presidente da Câmara, Nuno Abecassis, até uma multidão a invadir a sala, a gritar e a rezar o terço, que acabou por ser dispersada pela polícia) e penso na vaga de críticas escandalizadas a Herman José devido ao seu humor sem respeitinho pelos valores, pela História e pela cultura do nosso país.
4. A ideia central da publicidade é provocar, para pôr as pessoas a repetir o nome do produto. A American Eagle decidiu fazer esta publicidade assim, justamente agora quando as ideias de supremacia branca estão a reconquistar terreno, porque sabia que era a polémica mais eficaz do momento.
Se me deixassem mandar, preferia que os críticos fossem capazes de algum recuo, e se limitassem a chamar a atenção para os factos: a American Eagle escolheu fazer trocadilhos com genes de miúdas loiras de olhos azuis neste tempo em que estamos cada vez mais polarizados entre apologistas da supremacia branca versus defesa dos direitos humanos. Interessante...
5. O trocadilho jeans/genes não obriga necessariamente a usar uma jovem branca. Se a empresa American Eagle tivesse alguma consciência social e responsabilidade democrática, nesta altura da História podia mostrar mulheres de diferentes nacionalidades e etnias (especialmente aquelas que têm sido raptadas e deportadas por tipos mascarados que dizem ser polícia): "Os genes passam dos pais à sua descendência e determinam muitas vezes características como a cor do cabelo, a personalidade e até a cor dos olhos. Os meus jeans são azuis." - e rematar com a frase: "We all have great jeans".
(Senhores da Levi's, ou outra marca qualquer de jeans: se quiserem aproveitar a ideia, estejam à vontade.)
31 julho 2025
*Pandora*
Ao ler "Pandora" na lista de temas do nosso Largo da escrita, pensei imediatamente na famosa caixa. A terrível caixa de Pandora, o risco de a abrir, e os seus dois primos: o Rubicão e o Plano Inclinado.
Pensei também numa entrevista de Zizek em 2016, pouco antes das primeiras eleições que levaram Trump à Casa Branca. Nessa altura, Zizek pensava que uma vitória de Trump seria positiva, porque viria sacudir profundamente todo o sistema, obrigando-o a repensar-se e a limpar-se dos muitos vícios acumulados.
É uma questão interessante: que fazer quando tudo parece estar a desmoronar-se? Acelerar o processo para chegar o mais depressa possível a algum outro lado? Abrir a caixa de Pandora, atravessar o Rubicão, meter-se pelo Plano Inclinado a duzentos à hora? Atirar gasolina ao fogo, na esperança de que uma fénix renasça das cinzas, purificada e liberta?
Sinto-me nos antípodas dessa afirmação de Zizek em 2016, e 2025 confirma os meus temores: acelerar deliberadamente processos históricos de retrocesso civilizacional não nos leva a fénix alguma.
Porque, quando a caixa de Pandora se abre, não há consenso sobre o seu conteúdo: para uns, é o mal que se espalha pelo mundo; para outros, é o início de um tempo novo, em que sentem que são compreendidos, podem enfim dizer livremente o que lhes vai na alma, e recuperam tudo aquilo a que sempre tiveram direito. Atravessa-se o Rubicão para chegar à terra prometida, essa que é só para os nossos. Acentua-se o declive do Plano Inclinado para mais rapidamente separar o trigo do joio. Os outros? Que se lixem.
A fénix purificada pelo fogo é uma ilusão. Do outro lado do fogo, o que nos espera não é a fénix, mas as ruínas do bem que, com gestos frágeis e incertos, tentámos inscrever na História.
E teremos apenas as nossas mãos, feridas e nuas, para recomeçar penosamente o caminho rumo a mais humanidade. E trabalharemos nos escombros. E teremos por companhia aqueles que a caixa de Pandora envenenou.
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Outras companheiras deste Largo:
A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra