16 fevereiro 2025

Berlinale 2025 - dia 1


1. Kaj ti je deklica (Little trouble girls), de Urška Djukić

Não consegui evitar os paralelos com o Gloria, de Margherita Vicario, que vi também na Berlinale no ano passado: primeira longa da realizadora, música, jovens mulheres ou adolescentes a cantar. Mas no Gloria a alegria e o prazer da música estão no centro; neste Kaj ti je deklica, a música é apenas a moldura que enquadra as tensões e a descoberta da sexualidade.


2. Minden Rendben (Growing Down), de Bálint Dániel Sós

Um filme bem feito, com bom ritmo, bons actores, e a pergunta que angustia: pode um pai obrigar o filho a mentir para escapar às consequências dos seus actos?


3. El Diablo Fuma (y guarda las cabezas de los cerillos quemados en la misma caja), de Ernesto Martínez Bucio

Também primeira longa metragem do realizador, tinha tudo para me conquistar: um título muito promissor, um bando de crianças. Digamos assim: não conquistou.


4. Das Licht (The Light), de Tom Tykwer

À saída da exibição, ouvi um jornalista a comentar com outro: "mas que foi isto?!" Isto é uma vertigem berlinense neste princípio do século XXI, com uma mensagem simples (estamos todos perdidos, cada um no seu próprio labirinto; só nos salvamos se tocarmos o essencial de mãos dadas com os outros. É isto, mas na forma de sopa da pedra cinematográfica: um pouco de tudo, e tudo e excesso. Ainda estou a decidir se gostei ou não, mas há duas cenas que não esqueço: o modo como filma o primeiro date de um adolescente (lindo!!!) e o comentário de uma vizinha perante a discussão do casal no patamar das escadas (não conto, mas: adoro os berlinenses!)




15 fevereiro 2025

Berlinale 2025 - sessão de abertura

A Berlinale continua política, e não é só nos temas de muitos dos filmes que exibe. Na abertura do festival, os carros dos VIP passavam por manifestantes com uma bandeira da Palestina e um cartaz a acusar a Alemanha de ser cúmplice do genocídio. Do outro lado das barreiras, no tapete vermelho, lembraram David Cunio, que há alguns anos veio a este festival apresentar o filme "Youth", onde teve o papel principal - e agora é um dos reféns do Hamas. 

Muita política, e o seu quê de provinciana, nomeadamente em certos vestidos: a boa, velha Berlinale!

Como sempre, as actrizes já consagradas vieram agasalhadinhas, e as que ainda andam a lutar pela vida passaram um frio dos diabos. Fan Bingbing, a actriz chinesa que faz parte do júri do concurso, veio agasalhada num braço e a passar frio no outro. Talvez falsa modéstia...

Infelizmente não consegui bilhete para a sessão de abertura. Por isso, tirei uma fotografias do povo de pé à neve, ainda passei pelo stand da Armani, onde insistiram muito para me fazer o make up (a mim! coitados, sabem lá eles com quem se meteram...) e fui cedo para casa, que não convém rebentar os foguetes todos logo no primeiro dia. 







 

Berlinale 2025 - cá vamos nós outra vez


 Cá vamos nós outra vez! Até 23 de Fevereiro: correria, correria, correria. Mas quem corre por gosto...

A Berlinale está cada vez mais pobre. Perderam patrocinadores poderosos, e nota-se: até nas flores do tapete vermelho poupam. Mas é bem verdade que quando se fecha uma porta… o São Pedro abriu as comportas do céu e pôs a cidade mágica de neve. E termos de efeitos especiais: um luxo!









10 cm de neve nos passeios.
Sim, antes de sair para os cinemas, tenho de limpar a neve em frente à minha casa antes das sete da manhã. Esta minha Berlinale é glamour puro…

Como ia dizendo: 10 cm de neve nos passeios. Adeus, "escolhi o caminho menos percorrido", adeus "a distância mais rápida entre A e B é uma recta". É que nos dois primeiros dias fui para lá com as minhas botas favoritas, por serem as mais confortáveis, e por serem as favoritas estão com as solas muito lisas. Normalmente ando em cima da neve para evitar escorregar, mas com a neve tão alta não dá, porque fico com as calças ensopadas. Por isso ando aos ziguezagues na rua, pelos sítios que me parecem menos escorregadios, e como na velha anedota: sigo o caminho das pedrinhas.
Ao terceiro dia: levei uma botas com uma sola que deixa mosquinhas na neve. (Já falei do outlet desta fábrica? Noutro dia conto. Mas, para já, falemos da Berlinale.)








12 fevereiro 2025

o meu sofá começa a fumegar...


Trump ameaçou o rei da Jordânia: se não aceitar colaborar na limpeza étnica de Gaza, acolhendo no seu país muitas centenas de milhares de palestinianos (e sabe-se lá quantos membros e simpatizantes do Hamas, que é mesmo o maior sonho de qualquer país...), então adeus apoios da USAID, adeus aos 1.450 milhões de dólares anuais que os contribuintes norte-americanos pagam à Jordânia.

Parece simples. Mas esquece que a ajuda humanitária é mais do que pura generosidade e esmola dos ricos para os pobres: é uma ferramenta importante de soft power. Esquece que um país que "não deve nada" aos EUA está mais à vontade para procurar novos aliados. Esquece que os EUA têm meia dúzia de bases americanas na Jordânia. Esquece que é tão fácil rasgar os acordos de paz entre vários países árabes e Israel como lhe tem sido fácil a ele rasgar os acordos internacionais dos EUA.

Trump só tem força suficiente para tentar mandar nos outros enquanto é da boca para fora. Porque quando for a sério, a China terá o maior prazer em vir ocupar o espaço que os EUA deixam vazio ao recusar dar ajuda humanitária aos países pobres, terá todo o gosto em importar as matérias primas até agora reservadas ao mercado norte-americano. Quando for a sério, talvez a Rússia consiga instalar bases militares em países que até agora eram aliados dos EUA.

Quando for a sério, ver-se-á que o presidente dos EUA ofereceu de bandeja os países da sua esfera de influência aos seus maiores inimigos ou concorrentes.

Por esta altura, o sofá de onde atiro estas ideias ao mundo já começa a fumegar. E sinto uma espécie de empolgamento, aquele momento épico dos filmes quando uma multidão de pessoas sem poder se ergue contra o tirano.

Mas depois caio em mim: isto não é um sofá e não é um filme. Isto é o nosso mundo - tão complexo, em equilíbrio imperfeito e permanentemente precário - a perder todas as amarras e a mergulhar no caos. É a economia dos países (nomeadamente: os nossos) a entrar em recessão profunda, são as convulsões sociais, é o fim da paz social e da Democracia.

Espero que o Trump se aperceba em breve que o mundo é bem diferente do filme que ele vê a partir do seu sofá na Casa Branca.

(Se calhar uma pequena avaria no fornecimento de água ou electricidade a todas as bases militares norte-americanas no Médio Oriente, uma estranha avaria simultânea em todas elas, duas ou três horas apenas, era coisa para fazer mudar ligeiramente os contornos do mundo que se avista a partir do sofá do Trump.)


11 fevereiro 2025

ou a nado...

 

O mistério do dia nos dai hoje...

Andei à procura de uma passagem de avião em várias plataformas diferentes, para comprar a mais barata. A mais barata era a da TAP. Comprei. Quando chegámos a vias de facto (eu pagar), disseram-me que aquele voo já não estava disponível. Tentei várias vezes, sempre a mesma coisa: na hora H, não há voo.

Fui comprar à Opodo, 5 euros mais caro.

Passados dois dias, a TAP manda-me um mail: o voo que eu queria comprar ainda está disponível. Fui lá ver: estava 30 euros mais barato.

Pessoal, assim não há condições. Já é suficientemente complicado gerir que o preço dos voos aumente de dia para dia. Mas se agora tanto podem aumentar como reduzir, eu... eu... eu...
...agarrem-me, que só me apetece ir a pé!

trabalho de casa

 


São "portugueses de bem" que querem conquistar poder político para "limpar Portugal". E o cabecilha já se veio vangloriar de que o seu partido actua imediatamente. Diz que "não quer bandidos no partido" e "não é como os outros partidos, que encobrem em vez de agir". Mas deve andar distraído, porque até agora ainda só afastou dois. Talvez ande demasiado ocupado a produzir mentiras, porque essas coisas também dão trabalho, pelo que decidi dar uma ajudinha e fazer o seu trabalho de casa: aqui deixo afixado o "quadro de honra" do partido dos "portugueses de bem", e aqui uma lista detalhada relativa às suas figuras de topo.

Repare-se que um em cada cinco deputados do partido do Vintruja está a ser ou foi investigado pela polícia. O que dá uma percentagem muito superior à taxa de criminalidade dos imigrantes.

Com o trabalho de casa feito, com as "maçãs podres" identificadas, só me ocorre perguntar: se é realmente "diferente dos outros", se se gaba de actuar imediatamente - de que está à espera para fazer a purga?



10 fevereiro 2025

em que nos estamos a tornar?

 


https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/afegao-que-matou-2-pessoas-alemanha-seguia-no-pais-devido-erro-administrativo/

Em finais de Janeiro, uma tragédia atingiu a Alemanha em cheio: um refugiado afegão, conhecido por ser violento e por ter problemas psíquicos, e que já devia ter saído do país há vários meses, atacou um grupo de crianças de uma creche que iam a caminho de um parque. Matou um menino marroquino e feriu uma menina síria. Também matou o homem alemão de 41 anos que tentou defender as crianças.

Três dias mais tarde, numa sessão pública em memória das vítimas, Fátima, uma menina afegã de 12 anos insistiu muito com a organização para a deixarem dizer algumas palavras aos presentes. Tradução do que é dito no filme: Fátima: "Peço desculpa às mães das crianças." Organizadora: "Não tens de pedir desculpa. Não tens culpa." Fátima: "Mas há pessoas que pensam que eu, por ser afegã, sou uma pessoa má." Organizadora: "Tens à tua frente muitas pessoas, e não há uma única que pense isso de ti." Mais tarde, Fátima explica a uma equipa do canal BR (vídeo completo aqui) que depois daquele crime as crianças da escola começaram a olhar para ela de soslaio e a evitá-la, por pensarem que ela era perigosa e má.

A tragédia de Aschaffenburg pôs a questão da migração ainda mais no centro da campanha eleitoral que está em curso. Apesar de ser um resultado directo da ineficiência dos serviços, que naquele caso demoraram demasiado tempo a reagir, a passar informações e a fazer avançar o processo de saída do país que já estava decidido há muito, alguns partidos apressaram-se disparar numa direcção mais conveniente para os seus objectivos de curto prazo, exigindo mais dureza nas regras de entrada de refugiados.

A sociedade vai atrás. Não adianta um Scholz e um Habeck chamarem a atenção para os factos, o erro dos serviços, e a necessidade de melhorar os processos burocráticos para os tornar muito mais velozes e eficientes. O que dá votos é prometer mão forte, portas fechadas, controlo apertadíssimo das fronteiras, centros de refugiados fora da Europa. E os partidos da direita, mais a esquerda radical populista da Sahra Wagenknecht e a direita fascistóide da AfD atiram-se sem quaisquer escrúpulos a esse veio de ouro.

Um pequeno detalhe da hipocrisia: as crianças vítimas, que tanta comoção provocaram, pertenciam ao grupo dos indesejados, dos que é preciso "repatriar". São todos os "perigosos", os "maus" - para usar o vocabulário da jovem Fátima. Nenhuma criança síria ou marroquina se pode sentir em segurança num país que desconfia liminarmente de todos os seus compatriotas. E um dos partidos que mais cavalga o escândalo da morte destes pequeninos não se importa nada que outros pequeninos como estes morram no Mediterrâneo ou que os seus pais sejam assassinados por guardas da fronteira (sim, a Beatrix von Storch já sugeriu que se defendam as fronteiras alemãs a tiro). É nisto que nos estamos a tornar.

falando do tempo

 


Falando do tempo: aqui está um sol radioso, que quase faz esquecer a temperatura perto do zero. (do zero graus negativos...)

Informa-me o facebook que há 4 anos saí para passear em Grunewald, e estava um dia igualmente bonito. Publiquei esta foto, e o texto que se segue. 
(Sim, ando a trazer para o blogue as memórias do facebook, para o dia em que deixar de frequentar aquela casa.)


Vou confessar: estou tão orgullhosa desta fotografia!

🙂
(5 graus negativos e os dedos dormentes de frio, mas valeu a pena)


"quinta do Carmo"

 

Ontem, a palavra mágica da Enciclopédia ilustrada era #Quinta_do_Carmo. Arquivo aqui o que escrevi lá:
(fonte: http://www.bacalhoaasia.com/index.php/pt/quinta-do-carmo)
Consta que na capela da #Quinta_do_Carmo há uma porta secreta que permitia ao rei fazer de conta que ia à missa para se pisgar para a alcova da sua amada, que vivia na casa ao lado.

Esta história da porta secreta sempre me intrigou. Ele deixava lá o padre a falar sozinho e ia dar uma rapidinha entre o acto penitencial ("confesso a Deus, e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes") e a comunhão? E o padre ia nisso? E ninguém reparava? E se reparavam todos, porque se davam ao trabalho da encenação?

E porque precisava aquele rei de uma passagem secreta, quando todos os outros faziam o que queriam às claras?

E o rei ia todos os dias à missa?

E como ia de Vila Viçosa para Estremoz? Para ganhar tempo, ia a cavalo? Chegava à sua dama todo suado, a cheirar a estrebaria?

E antes de partir, que anunciava a si próprio: "hoje vou à missa", ou "hoje vou à moça"?

09 fevereiro 2025

ver menos

 



Estava a ler o texto da Luísa Sobral neste reel, e fiquei parada naquele "ver menos", no final. Já não fazia parte do texto (é o "ver mais" para mostrar o texto todo e o "ver menos" para reduzir a parte de texto e deixar ver mais imagem) mas...

..."ver menos" como lema para as férias é muito bom!

(Só não sei se consigo interiorizar e fazer isso mesmo, com alegria e desprendimento. Pode alguém ser quem não é?)


08 fevereiro 2025

*espelho meu*

 

Mais uma semana, mais um tema proposto ao grupo de gente da antiga bloga (contei aqui). Depois de "espalhar-se ao comprido", é a vez de "espelho meu". Um espelho para vermos bem a figura que fizemos quando nos espalhámos ao comprido? Na próxima semana, talvez fosse boa ideia ter como tema "Juliana Saavedra - a psicanalista que deixa os pacientes na merda"...

Ora então, espelho meu: o meu espelho. Provavelmente o espelho mais invejado do planeta. Foi uma amiga quem me abriu os olhos: "o teu espelho da casa de banho põe-nos muito mais magras! Será que mo queres dar?"

Nunca tinha reparado. E, de facto, continuo sem reparar. O meu espelho põe-me como sou! O problema é mais com a câmara fotográfica, que tem a lente avariada. E aquela balança da Ikea, que comprei no fim das férias em Portugal, também tinha uma versão muito surpreendente da minha realidade. Claro que a fui devolver, só podia estar avariada - e regressei com alegria ao meu espelho berlinense.

Amigas amigas, espelhos à parte. Não dei o espelho da casa de banho a essa amiga, lamento. Preciso muito dele: é o antídoto para um mundo que me impõe miragens como meta. Respondo-lhe alegremente com outra miragem.

Parece-me um expediente legítimo: as miragens que se entendam, que eu cá tenho uma vida para viver.

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Os espelhos delas:

Boas Intenções

A Gata Christie

O Blog Azul Turquesa


07 fevereiro 2025

fazê-lo pagar


O facebook, que se gabava de me conhecer melhor que os meus próprios pais, agora pespega-me com "sugestões" de tipos e partidos que considero inaceitáveis. O instagram ainda está pior: às vezes até com a página do coelho do Vintruja vem invadir o meu espaço pessoal.
Agora estava aqui a pensar: é o Vintruja que paga às redes sociais para invadir o meu espaço pessoal, ou são elas que decidem que eu devia alargar os meus horizontes políticos até à cloaca? E se é o sistema Vintruja que paga: paga mais se eu clicar, ou se ficar mais tempo a olhar para aquele lixo? Digam-me o que lhe custa mais dinheiro, que eu faço tudo! Não é que me agrade dá-lo a aganhar ao Zuckerberg, mas uma pessoa tem de conhecer as suas prioridades.
ADENDA: A Rita Dantas explicou no facebook como é que isto funciona. Partilho convosco, que eu cá não sou de sonegar informação importante:
Quando ele paga publicidade, em princípio tu consegues ver essa indicação. O problema é que ele pode pagar para a Manuela ver, ela vê e presta atenção e depois o algoritmo mostra-to a ti, de graça, porque costumas ter o mesmo gosto que a Manuela e ele deseja ter o mesmo resultado – que tu passes o máximo de tempo na rede. Se tu ainda por cima confirmares o interesse, ele vai de seguida mostrar o mesmo ao teu amigo João, para além claro de continuar a mostrar-te outras coisas da mesma índole.
Acho que ganhas mais em sinalizar que não estás interessada.

06 fevereiro 2025

reconstruir Gaza


Não é preciso pôr ninguém para fora de Gaza para reconstruir as casas.

Basta virem a Berlim perguntar aos que ainda viveram essa época: como foi possível continuar numa cidade brutalmente destruída?
Uma amiga contou-me que quando se mudou para Berlim, uma dúzia de anos depois da guerra, muitos edifícios do Ku'damm só tinham o rés-do-chão. O resto tinha caído nos bombardeamentos. Faziam um telhado provisório, e tinham lojas, cafés e restaurantes na mesma. Se já foi possível em Berlim, será certamente possível em Gaza. Mas se querem mesmo pôr os palestinianos fora de Gaza, a única solução aceitável é criar campos de refugiados em Israel, à responsabilidade da ONU. Assim, tem-se a certeza de que essas pessoas regressarão a Gaza, e o mais cedo possível, porque Israel não quererá ter refugiados palestinianos no seu território durante muito tempo
Pronto, era apenas uma ideia. De sofá para sofá, como tudo o que diz respeito à nossa opinião sobre israelitas e palestinianos.

04 fevereiro 2025

Maria Teresa Horta

 



No ano passado, em frente ao mar, em conversa com duas amigas - daquelas amizades tão antigas que já posso dizer "de sempre" - chegámos à Maria Teresa Horta e à sua poesia de mulher inteira. "Tinha certamente uma relação muito completa", comentou uma das minhas amigas, e alguns dias depois ofereceu-me As Palavras do Corpo. Em Novembro, a Luísa Sequeira e o Alexandre Sama trouxeram a Berlim o documentário O Que Podem as Palavras. Falaram do projecto longamente interrompido depois das primeiras entrevistas preparatórias, de como durante esse compasso de espera elas foram morrendo, uma após outra. Ficou a Teresa Horta. A morte do marido deixou-a desamparadamente mais só, tristíssima - contou a Luísa Sequeira, e contou dessa ligação especial que transparecia no modo como se olhavam, nos gestos, na cor da voz.

Pode dizer-se tanta coisa sobre esta mulher que morreu hoje, mas é só isto que me ocorre: foi tocada pela plenitude do amor. E por isso pode partir em paz.


01 fevereiro 2025

*espalhar-se ao comprido*

Na semana passada aconteceu um pequeno milagre, e poucos repararam: juntou-se um grupo de resistentes do tempo dos blogues, com o projecto de escrever todas as semanas sobre um tema predefinido - os mais cuscos, que gostam histórias de bastidores, podem espreitar aqui.
Ainda não temos casa nem nada, mas já começámos a escrever. 

O tema desta semana era “espalhar-se ao comprido”, e eu, que devia ter publicado ontem, só tratei do caso hoje. Vou-lhes sugerir que um dos próximos temas seja “atraso de vida”, sobre esse assunto posso escrever vários compêndios.

Espalhar ao comprido não é bem a minha especialidade. Eu sou mais meter o pé na poça. Em termos de quedas, sobretudo metafóricas, na maior parte dos casos salva-me um estranho reflexo condicionado que me mantém sempre em pé. Tenho andado a pensar neste fenómeno (na verdade, foi esta manhã, no duche), e parece-me que começa por isto: não fazer planos sérios para nada. Deixar que a vida vá decidindo. Se o rumo muda, olha, tanto melhor. Estava a caminho de Munique quando descobri que o comboio ia para Hamburgo? Ainda bem: sempre quis ir conhecer Hamburgo, e vai ser hoje!

É por isso que, nas entrevistas para emprego, a pergunta que mais odeio é “onde se vê daqui a cinco anos?” Uma vez, quando estava a concorrer a um trabalho na Lufthansa, respondi: “aonde as minhas capacidades me levarem, sem perder de vista o risco do princípio de Peter”. O entrevistador riu-se, e deixou-me passar à segunda fase. Nessa, meti o pé na poça e espalhei-me ao comprido: não consegui aquele emprego. Mas não se perdeu tudo porque na entrevista seguinte, para a Bosch, quando me perguntaram quanto queria ganhar (outro tópico que adoro...) respondi desajeitadamente “não sei, mas na Lufthansa ia receber x”. Os entrevistadores entreolharam-se, surpreendidos, e acabei a receber esse montante. Para fazer um trabalho desagradável num lugar horroroso. E ainda bem, porque tornou mais fácil a decisão de ir à minha vida, e o emprego que encontrei a seguir me pagou tão bem que ao fim de alguns anos me despedi e fui gastar o superavit em San Francisco com a família toda. Nunca sonhara viver dois anos em San Francisco, mas fui, e adorei.

Talvez a imagem do sempre-em-pé não seja a adequada: é mais um saltitar, aceitando alegre e irresponsavelmente os convites da vida, e servindo-me das contrariedades para mudar de direcção. Mais uma frase deste género, e vai tornar-se evidente que, neste grupo de escrita sobre um tema semanal, fiquei com a pasta de life coach. Para o que uma pessoa está guardada! Mais duas frases do género, e dou comigo no Extremamente Desagradável, “Helena Araújo: quanto pior, melhor!”

Como ia dizendo: nunca tive medo de me espalhar ao comprido. Vamos indo e vamos vendo, já dizia o meu instrutor da escola de condução. Mas ultimamente dou comigo a concentrar-me quando desço escadas. Um olho nos degraus e outro no corrimão, atenta, tomada por um medo inédito de cair e de me partir toda e de nunca mais nada voltar a ser o que era. Envelhecer deve ser isto: temer que o nosso corpo, em crescente parvoeira para se emancipar de nós, nos ataque à traição.

Se este tema vos interessa, não percam os escritos da próxima semana. E mais não digo.

E se quiserem ler outras abordagens a este “espalhar-se ao comprido”, senhoras e senhores, aqui vos deixo: a Maria João, a Carla, a Calita, a Mariana, a Joana.   

Enjoy.

31 janeiro 2025

assustadoramente fácil


Inspirada pela lógica da retórica trumpiana, era capaz de vir aqui pôr a hipótese de a tragédia da colisão entre o avião e o helicóptero em Washington DC ser culpa dos despedimentos e dos cortes orçamentais decretados pelo presidente com efeitos imediatos. Seria o resultado trágico deste "menos Estado" abrupto e à bruta.
Pode ser que a caixa negra do avião nos dê outra explicação dos factos, mas "é claro" que, a partir de agora, tudo o que se afastar desta minha tese é fake news.
Desculpem. Acabei de pôr uma sementinha de realidade paralela no coração dos meus leitores.
E é assustadoramente fácil.



27 janeiro 2025

alheiras

 

(Autor: Lichinga)

Por causa da horrível tragédia que se abateu depois do 7 de Outubro sobre Gaza, e das palavras de ordem para acabar com Israel, comecei a ver as alheiras com outros olhos.

Dei comigo a pensar no sofrimento das pessoas obrigadas a mudar de religião, de cultura e de hábitos, sujeitas ao olhar inquisidor dos vizinhos que vinham verificar se tinham em casa chouriços ao fumeiro como um cristão de bem. A sentir asco pelo sadismo desses vizinhos e inquisidores, provavelmente gente muito convencida dos seus princípios exemplares e da sua razão. A dar-me conta de que, na origem do produto IGP mais vendido em Portugal, está um insuportável terror de ser preso, torturado, queimado vivo no centro das cidades ou expulso do país.
Isso não nos tira nem o sono nem o apetite.

De Gaza para a alheira, e da alheira para a responsabilidade histórica dos portugueses: ao longo de vários séculos, os nossos "egrégios avós", com o seu ódio e a sua desconfiança, infernizaram a vida aos seus vizinhos judeus. A expulsão da Península Ibérica lançou os sefarditas para um descaminho que os empurrou primeiro para o centro da Europa, e depois para o buraco negro de Auschwitz, desembocando na proclamação do Estado de Israel em território palestiniano. Como seria a História dos palestinianos se estas pessoas não tivessem sido expulsas da Península Ibérica? Metade dos judeus que vivem em Israel são sefarditas.

Não foram apenas Portugal e a Espanha. Com algumas honrosas excepções, a Europa inteira, e nela incluo também a Rússia, andou mais de um milénio a fazer crescer no povo judeu a ânsia de um país onde pudesse viver em segurança. Mais de um milénio a perseguir, massacrar, marginalizar judeus. Confinados a guetos, vítimas de terríveis calúnias por parte da religião todo-poderosa dessa era, impedidos de praticar a maior parte das actividades económicas normais no seu tempo, odiados por recorrerem à usura para ganhar a vida, quando não os autorizavam a fazer praticamente mais nada.
Em suma, e para usar a expressão da tal religião dominante: foi por pensamentos e palavras, actos e omissões, que os europeus encurralaram os judeus num sonho sionista.

Neste dia em que comemoramos os 80 anos da libertação de Auschwitz. tenhamos isso presente: quando estendemos um dedo para acusar Israel, estamos a virar três dedos para nós: como queremos ajudar o povo judeu a resolver o problema que os nossos antepassados lhe criaram?

25 janeiro 2025

voltar aonde se foi feliz

 


Pequena incursão na minha infância.
Só está a mais: o cabaço (nós éramos mais garrafão) e a cantoria organizada da rusga.
O que falta: um bando de miúdos em cima do carro de vacas, a ser sacudidos violentamente cangosta abaixo.
(Se lá estivesse, aposto que éramos nós, que ao ouvir passar um carro no caminho agarrávamos num naco de broa para o caminho e saíamos disparados da casa da avó a pedinchar "ó Ti Maria, deixanuzir no seu carro?)

24 janeiro 2025

este post é pura maladade

Fiz uma pequena recolha das piadinhas sobre as malas do deputado do partido do Vintruja. Pessoas que não estão a gostar desta desbunda, ficam avisadas: não olhem para baixo! Nos sítios onde encontrei os memes, apareceram logo fãs do Vintruja com fotografias do Sócrates ("deste ninguém fala!") ou "os outros também roubam todos!" (adoro este "todos", hehehe) ou algum escândalo envolvendo um partido de esquerda. Como se alguém dos que estão ali a rir estivesse também a pôr as mãos no fogo pelo Sócrates, ou a aprovar qualquer espécie de corrupção ou escândalos em Portugal...

Pensava que os fãs do Vintruja eram contra a corrupção e o crime, pensava que queriam um país "limpo" e seguro, mas não, afinal parece que o campeonato é só para ver quem fica com a medalha de prata da roubalhice. Já se dão por contentinhos se acharem que há quem roube mais do que os deles. Em vez de "portugueses de bem", são "portugueses de do mal o menos".

Dito isto, cá vamos nós (mas atenção: isto é tudo um caso de alegadamente!):































Também havia um filme onde este deputado falava sobre a necessidade de prisões para meter os criminosos, blablabla. Como estamos no domínio do alegadamente, não vou fazer nenhum paralelo com aqueles tipos muito homofóbicos que morrem de medo de sair do armário. O que se segue já não é piada. As estatísticas sobre a percentagem de deputados do Chega que já tiveram problemas graves com a Justiça são um caso sério. E aqueles screen shots da página Vinted de alguém que parece ser este deputado do Chega dão sinal de uma burrice tão inacreditável que - desculpem a lapalissade - até custa a acreditar. Mas parece que é mesmo verdade: durante meses, alguém com este nome de utilizador andou a vender roupa usada, de todos os tamanhos, por preços baixíssimos.








laboratório de História ao vivo

 
O título deste post vem do comentário da Rita Dantas, "Se não fosse assustador, este laboratório de História ao vivo era fascinante", referindo-se aos e-mails que já estão a ser enviados aos funcionários do Governo norte-americano, obrigando-os a denunciar os seus colegas e departamentos, a fim de eliminar quaisquer tentativas de promover um acesso mais fácil a pessoas pertencentes a grupos que tradicionalmente são excluídos. Os funcionários têm 10 dias para fazer a denúncia. Se não o fizerem, sofrerão represálias.

Um exemplo: "Dear Colleagues,

We are taking steps to close all agency DEIA offices and end all DEIA-related contracts in accordance with President Trump's Executive Orders titled, "Ending Radical and Wasteful Government DEI Programs and Preferencing," and, "Initial Rescissions of Harmful Executive Orders and Actions."
These programs divided Americans by race, wasted taxpayer dollars, and resulted in shameful discrimination.
We are aware of efforts by some in government to disguise these programs by using coded or imprecise language. If you are aware of a change in any contract description or personnel position description since November 5, 2024, to obscure the connection between the contract and DEIA or similar ideologies, please report all facts and circumstances to DElAtruth@opm.gov within 10 days.
There will be no adverse consequences for timely reporting this information. However, failure to report this information within 10 days may result in adverse consequences. Thank you for your attention to this important matter.
Vince Micone
Acting Secretary of Labor" Trump disse-o no seu discurso de tomada de posse: a partir de agora, o que conta é o mérito de cada um. Nada de programas de favorecimento de pessoas de determinado género, etnia... (e outros incompetentes do género, acrescento eu). Os mais incautos poderão dizer que se se trata de escolher entre uma "meritocracia" e um sistema ineficiente que promove os mais fracos - algo que se pode debater com informação e factos.

Mas isto aqui é algo muito diferente. É obrigar os funcionários a vigiar e denunciar. Em cada posto público: um informador da PIDE, da Stasi, da SS.

23 janeiro 2025

farsa ou tragédia

 


A História repete-se como farsa?!
Não sei...
Estava aqui a pensar que Hitler não teve maioria absoluta, e teve de usar os seus paramilitares para intimidar os deputados e fazer um golpe de Estado no Parlamento. No III Reich, havia juízes que davam longas penas de prisão a judeus, porque ao menos assim o sistema de Justiça os protegia de serem deportados para os campos da morte.
Nos EUA. em 2024, entregaram tudo de mão beijada. Com maioria absoluta, tudo limpinho como deve ser para não haver dúvidas. Isso sim, é a maior tragédia: mais de metade dos eleitores votaram em pôr fim à Democracia. Nem precisaram de ser intimidados por paramilitares, nem nada.


dizer o sermão da montanha em Washington


No post de ontem mencionei a coragem da bispa Mariann Budde, explicando a Trump o essencial da mensagem cristã. Esta manhã, o 7Margens presenteia-nos com a tradução do texto completo, que se revela ainda mais impressionante, acutilante e corajoso que o trecho de que ontem todos falavam. Partilho-o aqui, consciente de que estamos perante um momento de luz nestes tempos sombrios.

(Seguindo o link, encontram mais informação, incluindo vídeos e a gravação áudio da notícia - obrigada, 7Margens!)

 

Texto integral do sermão da bispa Mariann Edgar Budde

“Como país, reunimo-nos esta manhã para rezar pela unidade, não por um acordo, político ou outro, mas pelo tipo de unidade que promove a comunidade acima da diversidade e da divisão. Uma unidade que sirva o bem comum. A unidade, neste sentido, é um pré-requisito para que as pessoas vivam em liberdade e juntas numa sociedade livre. É a rocha sólida, como disse Jesus, sobre a qual se constrói uma nação.

Não é conformidade. Não é a vitória. Não é o cansaço educado ou a passividade nascida da exaustão. A unidade não é partidária. Pelo contrário, a unidade é uma forma de estarmos uns com os outros que abraça e respeita as nossas diferenças. Ensina-nos a considerar as múltiplas perspetivas e experiências de vida como válidas e dignas de respeito. Permite-nos, nas nossas comunidades e nas esferas de poder, preocuparmo-nos genuinamente uns com os outros, mesmo quando não estamos de acordo.

Aqueles que, por todo o país, dedicam as suas vidas ou se voluntariam para ajudar os outros em situações de catástrofe natural, muitas vezes com grande risco para si próprios, nunca perguntam àqueles que ajudam em quem votaram nas últimas eleições ou qual a sua posição numa determinada questão. O melhor que podemos fazer é seguir o seu exemplo, pois a unidade é, por vezes, sacrificial, tal como o amor: darmo-nos nós próprios para o bem dos outros.

No Sermão da Montanha, Jesus de Nazaré exorta-nos a amar não só o nosso próximo, mas também os nossos inimigos, a rezar por aqueles que nos perseguem, a ser misericordiosos como o nosso Deus é misericordioso, a perdoar aos outros como Deus nos perdoa a nós. Jesus esforçou-se por acolher aqueles que a sua sociedade considerava excluídos.

Agora, reconheço que a unidade, neste sentido amplo e expansivo, é uma aspiração, pela qual urge rezar. É uma grande petição ao nosso Deus, digna do melhor do que somos e do que podemos ser. Mas as nossas orações de pouco servirão se agirmos de forma a aprofundar ainda mais as divisões entre nós. As Escrituras são muito claras a este respeito: Deus nunca se impressiona com as orações quando as nossas ações não são influenciadas por elas. Deus também não nos poupa das consequências das nossas ações, que acabam sempre por ser mais importantes do que as palavras que rezamos.

Aqueles de nós que se encontram aqui reunidos na catedral não são ingénuos em relação às realidades da política – quando o poder, a riqueza e os interesses concorrentes estão em jogo, quando as visões do que a América deve ser estão em conflito, quando existem opiniões fortes num espetro de possibilidades e os entendimentos marcadamente diferentes sobre qual é a linha de ação correta. Haverá vencedores e vencidos quando se vota ou se tomam decisões que definem a direção das políticas públicas e a atribuição de prioridades aos recursos.

 

“A cultura do desprezo neste país ameaça destruir-nos”

Escusado será dizer que, numa democracia, nem todas as esperanças e sonhos específicos de todos podem ser realizados numa determinada sessão legislativa ou mandato presidencial, ou mesmo numa geração. Ou seja, nem todas as orações específicas de cada um serão atendidas como desejaríamos. Mas, para alguns, a perda das suas esperanças e sonhos será muito mais do que uma derrota política: será uma perda de igualdade e dignidade, e dos seus meios de subsistência.

Tendo isto em conta, será possível uma verdadeira unidade entre nós? E porque é que nos devemos preocupar? Bem, espero que nos preocupemos. Espero que nos preocupemos porque a cultura do desprezo que se normalizou neste país ameaça destruir-nos. Todos nós somos bombardeados diariamente com mensagens daquilo a que os sociólogos chamam atualmente o “complexo industrial da indignação”, algumas delas impulsionadas por forças externas cujos interesses são servidos por uma América polarizada. O desprezo alimenta as campanhas políticas e as redes sociais, e muitos beneficiam com isso, mas é uma forma perturbadora e perigosa de governar um país.

Sou uma pessoa de fé, rodeada de pessoas de fé e, com a ajuda de Deus, acredito que a unidade neste país é possível – não perfeitamente, porque somos pessoas imperfeitas e uma união imperfeita – mas o suficiente para que todos nós continuemos a acreditar nos ideais dos Estados Unidos da América e a trabalhar para os tornar realidade. Ideais expressos na Declaração de Independência, com a sua afirmação da igualdade e dignidade humanas inatas. E temos razão em pedir a ajuda de Deus na nossa busca da unidade, pois precisamos da ajuda de Deus, mas só se nós próprios estivermos dispostos a cuidar dos alicerces de que depende a unidade. Tal como a analogia de Jesus de construir uma casa sobre a areia, os alicerces de que precisamos para a unidade devem ser suficientemente sólidos para resistir às muitas tempestades que a ameaçam.

 

Fundamentos da unidade: dignidade, verdade e humildade

Quais são os fundamentos da unidade? Com base nas nossas tradições e textos sagrados, permitam-me que sugira que há pelo menos três. O primeiro fundamento da unidade é honrar a dignidade inerente a cada ser humano, que, como todas as religiões aqui representadas afirmam, é o direito inato de todas as pessoas como filhos do nosso único Deus. No discurso público, honrar a dignidade dos outros significa recusar-se a ridicularizar, rejeitar ou demonizar aqueles de quem discordamos, optando, em vez disso, por debater respeitosamente as nossas diferenças e, sempre que possível, procurar um terreno comum. E quando não é possível chegar a um consenso, a dignidade exige que nos mantenhamos fiéis às nossas convicções sem desprezar aqueles que têm as suas próprias convicções.

O segundo fundamento da unidade é a honestidade, tanto nas conversas privadas como no discurso público. Se não estivermos dispostos a ser honestos, não vale a pena rezar pela unidade, porque as nossas ações vão contra as nossas orações. Podemos, durante algum tempo, experimentar uma falsa sensação de unidade entre alguns, mas não será a unidade mais forte e mais ampla de que precisamos para enfrentar os desafios que temos pela frente. Agora, para sermos justos, nem sempre sabemos onde está a verdade, e há agora muitas coisas que vão contra a verdade. Mas quando sabemos o que é verdade, cabe-nos dizer a verdade, mesmo quando, especialmente quando, isso nos custa.

O terceiro e último fundamento da unidade que mencionarei hoje é a humildade, de que todos precisamos porque somos todos seres humanos falíveis. Cometemos erros, dizemos e fazemos coisas de que mais tarde nos arrependemos, temos os nossos pontos cegos e os nossos preconceitos, e somos talvez mais perigosos para nós próprios e para os outros quando estamos convencidos, sem sombra de dúvida, de que estamos absolutamente certos e que os outros estão totalmente errados. Porque então estamos a um passo de nos rotularmos como as pessoas boas frente às pessoas más. E a verdade é que todos somos pessoas: somos capazes de fazer o bem e o mal. Como Alexander Solzhenitsyn observou astutamente: “A linha que separa o bem do mal não passa por Estados, nem por classes, nem por partidos políticos, mas sim por cada coração humano, por todos os corações humanos”.

E quanto mais nos apercebermos deste facto, mais espaço teremos dentro de nós para a humildade e a abertura mútua entre as nossas diferenças. Porque, de facto, somos mais parecidos do que imaginamos, e precisamos uns dos outros.

É relativamente fácil rezar pela unidade em ocasiões de grande solenidade. É muito mais difícil consegui-lo quando nos confrontamos com diferenças reais na nossa vida privada e na esfera pública. Mas sem unidade, estamos a construir a casa da nossa nação sobre a areia. E com um empenhamento na unidade que incorpore a diversidade e transcenda o desacordo, e com a base sólida de dignidade, honestidade e humildade que a unidade exige, podemos fazer a nossa parte, no nosso tempo, para concretizar os ideais e o sonho da América.

 

“Coragem para honrar a dignidade de cada ser humano”

Permitam-me que faça um último apelo. Senhor Presidente, milhões de pessoas depositaram a sua confiança em si e, como disse ontem [no discurso de posse] à nação, sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço-lhe que tenha piedade das pessoas do nosso país que agora têm medo. Há crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas das quais temem pelas suas vidas. E as pessoas que apanham as nossas colheitas, limpam os nossos edifícios de escritórios, trabalham nas explorações avícolas e nos frigoríficos, lavam a loiça depois das refeições nos restaurantes e fazem turnos de noite nos hospitais: podem não ser cidadãos ou não ter a documentação adequada, mas a grande maioria dos imigrantes não são criminosos. Pagam impostos e são bons vizinhos. São membros fiéis das nossas igrejas, mesquitas, sinagogas, viaras e templos.

Peço-lhe que tenha piedade, Senhor Presidente, daqueles que, nas nossas comunidades, têm filhos que receiam que os pais lhes sejam retirados, e que ajude os que fogem de zonas de guerra e de perseguição nas suas próprias terras a encontrar compaixão e acolhimento aqui. O nosso Deus ensina-nos que devemos ser misericordiosos para com o estrangeiro, pois todos nós fomos estrangeiros nesta terra.

Que Deus nos dê a força e a coragem para honrar a dignidade de cada ser humano, para dizer a verdade uns aos outros em amor e para caminhar humildemente uns com os outros e com o nosso Deus para o bem de todas as pessoas nesta nação e no mundo.

Amen”.