01 maio 2025

*trabalhadora*



(fotografia de Eduardo Gageiro, 1º de Maio de 1974)

Não vai há muito tempo que, para conseguir determinado cargo laboral, uma mulher tinha de provar valer o dobro do seu concorrente masculino. Ao mesmo tempo, contava-se com ela para assegurar um turno suplementar fora do emprego: pôr a comida na mesa, cuidar dos filhos e dos familiares mais velhos, tratar da casa e das roupas.

Em termos de exigências de trabalho, era esta a equação: 

trabalhadora = 3 x trabalhador

Entretanto, já fizemos muito caminho. Hoje em dia, um a no final da palavra trabalhador pesa bem menos do que há meio século.

Contudo, não se avançou tanto quanto é necessário - a julgar pelas estatísticas de desigualdade de salários e de carga horária total, ou, num registo mais humorístico, considerando alguns apontamentos de stand-up comedy feminista e o modo como o nosso riso se encrava na garganta:

"Vocês nem imaginam a profissional espectacular que eu podia ser se tivesse uma esposa!", ou:

"A prova de que ainda não há igualdade é que muitos homens têm famílias paralelas, mas as mulheres não. Afinal de contas, a mulher nenhuma ocorreria, depois de pôr os filhos na cama e arrumar a cozinha, meter-se no carro e ir ter com a sua outra família para lhes limpar a casa de banho..." 

Mais ainda: estamos a caminho, e nada nos garante que a direcção continue a ser rumo ao futuro. Uma pequena margem percentual no resultado das eleições é quanto basta para remeter as mulheres à antiquíssima desigualdade e à condição primordial de parideiras. As polacas que o digam, as norte-americanas que o digam.

Pelo que pergunto: será que vivemos numa ilusão de progresso, e este é apenas aparente e sempre reversível? Será que uma certa ideia do masculino e do feminino ainda está bem viva em muitas mentes, apenas à espera de uma oportunidade para voltar ao espaço público? E será que o velho machismo, tantas vezes invisível para o seu portador, explica uma parte da determinação com que certos discursos da Esquerda acusam a luta feminista de dividir a classe trabalhadora?

Neste 1 de Maio, mais do que nunca, é preciso lembrar que a luta pelos direitos dos trabalhadores tem de ser também a luta pela mudança da equação. Um dia, quando esta for

trabalhadora = trabalhador

saberemos que vale a pena lutar lado a lado, e que estamos unidos pela mesma luta.

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As outras trabalhadoras deste Largo da escrita:

A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra

30 abril 2025

perguntas para especialistas e diletantes

 

Agora que a edição revista e aumentada de Trump já passou os primeiros cem dias, tenho umas perguntinhas (e duas meias respostas) para os especialistas, e uma pergunta para os diletantes:

Para os especialistas:

1. No caso de Trump, estamos perante um quadro sociopata ou psicopata? (nunca sei a diferença)
2. As medidas e as afirmações de Trump devem ser interpretadas por analistas políticos, por psiquiatras, ou por pedopsiquiatras?
(a primeira meia resposta: parece-me que os analistas políticos estão a perder o tempo deles e o nosso, porque as decisões e as afirmações de Trump não são da ordem do político)
3. As equipas dos governantes já incluem um consultor especializado em manipulação psicológica?
(a segunda meia resposta: a de Keir Starmer já deve ter. "Sou portador de uma carta de sua Majestade, King Charles, que o convida para uma segunda visita de Estado. Isto é especial, isto nunca aconteceu antes, isto [pondo a mão no braço de Trump e olhando-o nos olhos] é inédito")

E agora nós, os diletantes: digam lá, acham que o poster XXL que está no quarto de dormir de Trump, na Casa Branca, a primeira coisa que ele vê ao acordar e a última antes de apagar a luz, é o Putin pescador, o Putin a cavalo num cavalo, o Putin a cavalo num urso, ou o Putin a avançar destemidamente sobre o leito seco de um rio?

(eu voto no pescador, por causa do "ai que linda troca de olhos, ai que linda troca de olhos fizeram-me agora ali")






25 abril 2025

*liberdade*

Hoje sou do Porto, anuncio com alegria: Liberdade, liverdade!

A liberdade conquistada pelos portugueses há 51 anos entrou de tal modo na minha vida que até me esqueço da sua existência. Como o ar que respiro: de tão natural, omnipresente e invisível, não penso nele, nem no que lhe devo. Não penso nela, nem no que lhe devo. 

E é justamente por ser tão normal que a liberdade é tão frágil. Quem nasceu livre não sabe o que é ser não-livre. Nem lhe ocorre essa possibilidade. Por ignorância do que é viver nos antípodas do que têm sem se darem conta, muitos votam contra o sistema sem se darem conta do que deitam a perder. 

Ultimamente, por causa de um convite para o casamento de uma amiga na Califórnia, dei comigo a perceber de forma palpável, mesmo física, o que é viver sem liberdade. De cada vez que punha um like numa publicação que criticava Trump, sentia o aguilhão do risco: que preço viria a pagar por isso? Hesitava, pensava duas vezes antes de escrever ou partilhar alguma publicação sobre o que se está a passar nos EUA.  

Entretanto, as notícias de maus-tratos a turistas nos aeroportos daquele país foram ficando cada vez mais alarmantes. Comecei a temer ver-me presa por tempo indefinido, a dormir no chão, com um cobertor de alumínio, incomunicável e sem acesso a advogados. E que garantia havia de que não me mandavam para El Salvador por causa de um texto, um desenho, três likes?

Foi assim que eu, cidadã livre de um continente livre, aprendi o que é o aperto no peito, o medo, e a revolta de ser obrigada a calar a voz da minha consciência em nome da minha segurança física.

Uma voz interior tentava-me: "Não escrevas, deixa andar. De qualquer maneira, o mundo não depende de ti..." Se ficasse calada, se apagasse posts e likes antigos, provavelmente não tinha problemas. Mas era mais forte que o meu medo, e por isso continuava a publicar. 

Acabei por desistir do projecto de ir à Califórnia este ano. Mas recomendo muito a quem está com vontade de votar contra o sistema (porque "em 50 anos não fizeram nada", ou porque isto "já bateu no fundo", ou porque "é preciso dar uma oportunidade aos outros, a ver se alguém finalmente faz alguma coisa") que ponha seriamente a hipótese de uma viagem aos EUA ou à Rússia, a ver se é mesmo esse o rumo que interessa dar ao nosso país e ao futuro dos nossos filhos.

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A liberdade é só uma, mas escreve-se de muitas maneiras:

A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra


sempre!

 


O que faz falta é animar a malta,
o que faz falta,
o que faz falta é alegrar a malta,
o que faz falta.
O que faz falta é lembrar a alegria do 25 de Abril,
o que faz falta,
o que faz falta é espalhar a alegria do 25 de Abril,
o que faz falta.



24 abril 2025

o papa Francisco e o 25 de Abril


Se fosse para respeitar a memória do papa Francisco, cancelavam o evento xenófobo dos neonazis no Martim Moniz, em vez de retirar os membros do governo dos festejos do 25 de Abril.

Do Público (aqui):


 

23 abril 2025

*despertador*

O melhor despertador que conheço somos nós próprios, ou aqueles que amamos. E não me refiro ao "acorda, querido, são horas de levantar" ou ao atabalhoado "levanta-te! vais chegar atrasado à escola!", mas ao que nos faz acordar para os horrores do mundo: só despertamos realmente para a realidade quando ela começa a ameçar os nossos, ou a nós próprios. 

É nisto que tenho pensado por estes dias, a propósito do Centro de Confinamento del Terrorismo (CECOT), de El Salvador, que existe há mais de dois anos. Como foi criado para combater os gangs da droga, que não pertencem à minha bolha, continuei a dormir descansadamente. Nem sequer me dei conta de que estamos perante um campo de concentração onde se acumulam milhares de criminosos e de inocentes para ali atirados pelo poder discricionário de um Estado que usa a segurança como desculpa para não ter maçadas com tribunais, coitados, já tão sobrecarregados, ou para não correr o risco de um veredicto justo, passe o cinismo.  

Só quando os EUA começaram a enviar estrangeiros inocentes para o CECOT, e pensei nos tantos amigos e familiares que tenho nesse país, me dei conta de que a qualquer um deles pode acontecer a tragédia de a polícia o tomar por terrorista, ou anti-semita, e o enviar para uma prisão salvadorenha sem passar pelo tribunal. Só então acordei para esta realidade: os beliches de metal sem colchão, a luz acesa 24 horas por dia, a tortura, os apenas 30 minutos de exercício físico por dia, a impossibilidade de comunicar com familiares e advogados, os sinais de violência no corpo de quem morre.

"Primeiro, vieram pelos criminosos dos gangs da droga, e fiquei calado porque não era criminoso dos gangs da droga, depois vieram pelos estrangeiros sem papéis..."

O nosso melhor despertador tem de ser afinado: só nos permitirá andar a horas certas quando a perseguição a alguém for vivida como se fosse uma perseguição aos nossos. Por uma questão de humanidade (para os mais idealistas) e por uma questão de realismo (para os outros): porque já conhecemmos a embriaguez do poder desbragado, já sabemos que quem persegue uns grupos passa facilmente a perseguir os seguintes sem fazer distinções. Se permitimos que o sistema descarrile para os outros, mais tarde ou mais cedo será a nossa vez. 

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Mais despertadores do nosso Largo:

 

22 abril 2025

nem na morte...


Parece que Trump quer ir ao funeral do papa Francisco. Coitado do papa Francisco, nem na morte...

Mas pronto, se não é possível impedir, há que dar a volta. Sentem o rei-vai-nu num lugar de destaque, e à sua esquerda sentem a bispa Mariann Edgar Budde, e à sua direita deixem uma cadeira vazia: reservada para Kilmar Ábrego García.



21 abril 2025

morreu Francisco, amigo de Jesus Cristo

 


Quando foi a primeira vez que vos ocorreu que o papa Francisco ia ser diferente dos outros? A minha primeira vez foi quando ele, recém-nomeado, apareceu perante a multidão na praça de São Pedro e pediu a todos que lhe dessem a benção. - Então...? Então...? Então....? - perguntava eu, perplexa e profundamente comovida.

E depois os sapatos cambados, em vez dos Prada do papa anterior. E a cruz do Bom Pastor, que já usava enquanto bispo.

E depois o sorriso bondoso, a gargalhada aberta e desarmante.

A gargalhada, justamente: também por isso, não consigo imaginar nenhum outro papa tão próximo de Jesus Cristo. Aqueles dois, sentados a uma mesa: que alegria, que festa fariam!

Os médicos mandavam que repousasse, mas ele ainda tinha algo importante a fazer: visitar pessoas nas prisões, receber o vice-presidente dos EUA para lhe ensinar a mensagem de amor de Jesus Cristo em especial para com aqueles que o regime de Trump persegue. E dizer-nos adeus na praça de São Pedro, onde há 12 anos pediu que o abençoássemos.

Francisco merece repousar em paz. Cumpriu a sua missão, e indicou-nos o caminho. Agora restamos nós. Mais sós, é certo - mas temos um mapa como herança.

17 abril 2025

o meu sofá ataca de novo

Estava aqui a pensar que talvez tenha sido bom as figuras mais importantes do Partido Democrata dos EUA terem ficado três meses a fazer de mortos. Deu tempo para até os apoiantes de Trump perceberem a dimensão da catástrofe.

Tendo em conta que uma guerra civil no país profundamente polarizado é um cenário bastante provável, dar tempo para as pessoas se começarem a interrogar se pertencem realmente ao lado Trump é capaz de ser uma boa ideia. ---

O meu sofá é tão produtivo e interessante que estava capaz de criar um partido, o PES - partido dos especialistas de sofá. De certeza que ganhava as eleições, e com maioria absoluta! O problema é que depois ainda me acontecia como ao outro: entre tantos especialistas de coisa nenhuma, ainda metia um par de ladrões no Parlamento.

E depois vinha o Vintruja e acusava-me de plágio.

16 abril 2025

*purgatório*

"Aqueces o azeite, pões o bife de fígado na frigideira e rezas uma avé-maria pelas almas do purgatório. Depois viras, e rezas outra vez."

Foi assim que a minha mãe me ensinou a encontrar o ponto certo da fritura.

No Minho católico da minha infância, a responsabilidade dos vivos pela memória e pelo bem-estar dos mortos era omnipresente. Da frigideira ao lume até às alminhas nas fachadas das casas e nas encruzilhadas, passando pelos cemitérios de flores sempre frescas, os nossos mortos eram mais do que uma recordação querida e uma ausência triste: continuavam a precisar de nós, da nossa atenção e do nosso cuidado.

O purgatório - esse lugar de sofrimento após a morte, onde as almas expiam os seus erros antes de poderem, enfim, descansar em paz - desempenha um papel peculiar neste entendimento do mundo. Ao dar aos crentes a possibilidade de, com as suas orações, abreviarem a dor dos que estão no purgatório, a Igreja Católica oferece uma ponte que liga os vivos aos mortos num abraço de empatia actuante: o poder de cuidar dos outros para além da própria morte. Mais ainda: o purgatório é um espaço de depuração de questões existenciais dos vivos. Por um lado, repõe a justiça no mundo, porque castiga as pessoas pelo mal que cometeram em vida; por outro lado, abre a cada um dos crentes um caminho de libertação interior, transformando os sentimentos negativos em gestos de aceitação da fragilidade dos humanos e de perdão.

[ E agora que o fígado está frito e as duas avé-marias rezadas, pergunto a quem me lê: por quem gostariam de rezar enquanto fazem a cebolada? ]

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Mais "purgatórios":

a Carla n’A curva - Purgatório

a Rita no Boas Intenções - Purgatório

a Maria João n’A Gata Christie - Purgatório

a Calita no Panados e arroz de tomate - Purgatório

a Mariana no Gralha Dixit - Purgatório

a Joana n’O blog azul turquesa - Purgatório

a Marisa na Quinta da Cruz da Pedra - Purgatório




15 abril 2025

vai estudar, Relvas

 

Na entrevista publicada hoje no Público, Miguel Relvas revela que fez gazeta à aula teórica sobre raposas e galinheiros, e falhou as aulas práticas da ascensão de Trump nas primárias de há 10 anos, quando os republicanos acharam que não deviam desperdiçar a oportunidade de chegar ao poder só por causa de “birras” - o nome que Miguel Relvas dá à decência de defender a Democracia custe o que custar. Também faltou às aulas de História, nomeadamente sobre o que aconteceu na Alemanha há sensivelmente um século. Mas isso seria talvez pedir demasiado a quem é capaz de cometer frases como estas: “Estamos a viver um tempo de nacionalismos e populismos. Não quero compartilhar esses valores, mas tenho de olhar para eles com atenção. Tenho de saber retirar as ilações. Não advêm de vontades de minorias, mas já de largas maiorias. O que se está a passar em França, o que se está a passar na Alemanha. Nós temos de saber ler aquilo que se está a passar no mundo. Não podemos ler aquilo que nós queremos."
[ Sobre a possibilidade de Montenegro recuar no famoso "não é não", até por uma questão de sobrevivência política, Miguel Relvas diz que: ] “(...) [Montenegro] tem de saber adaptar-se a cada uma das circunstâncias. Não vai para a oposição. A política a este nível não pode ser feita de birras. O líder do PSD tem de saber ler os resultados. Quem vota são os portugueses. Na política, temos de saber ler os resultados."

Vai estudar, Relvas. Ou então, não estudes, deixa-te estar como estás, e começa uma carreira nova no partido dos "quarenta ladrões". Em termos de falta de princípios democráticos e oportunismo, tu e o Vintruja estão bem um para o outro.


13 abril 2025

uma sociedade onde há lugar para todos



Há quase um quarto de século, por alturas de um Natal, fui com os meus filhos assistir ao bailado Quebra-Nozes num teatro de San Francisco. Entre os pequenos bailarinos havia uma menina sentada numa cadeira de rodas. Foi a primeira vez que vi tal coisa, mas não me surpreendeu, e muito menos incomodou. Na semana passada assisti a uma peça de teatro inspirada na série "O Reino", da Lars von Trier. Em palco estavam, juntamente com alguns dos melhores actores alemães, uma mulher que me fez pensar na Helen Keller (não via e não ouvia, andava com dificuldade), um actor com síndrome de Down, outro actor com deficiência mental. A peça é excelente, e terem trazido a palco pessoas diferentes do que estamos habituados a ver no teatro enriqueceu-a com outros ritmos, outras dicções, outras entoações, outras maneiras de comunicar. Foram quase cinco horas de puro prazer.

11 abril 2025

outro desenho do mundo

 

O Público noticiava hoje que chegou a vez de as universidades portuguesas receberem o famoso inquérito ideológico, esse braço de ferro que o fanfarrão do Trump decidiu fazer com o mundo.

Cito: 'O director da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), Hermenegildo Fernandes, disse à Lusa que recebeu o mesmo questionário, que o deixou estupefacto pela "dimensão do descaramento" das perguntas, nomeadamente sobre "agendas climáticas", se a instituição tinha "contactos com partidos comunistas e socialistas" ou "relações com as Nações Unidas, República Popular da China, Irão e Rússia" e o "que fazia para preservar as mulheres das ideologias de género".'
É tudo incrível, mas "relações com as Nações Unidas" parece aquelas anedotas que contávamos em criança, "qual é o cúmulo de...?"
Ia dizer que meteram um palhaço na Casa Branca, e agora ele está a tentar transformar o mundo inteiro num circo. Mas não é bem um palhaço, é o Joker. E os governantes de todos os países têm de decidir se querem ir a Gotham City para lhe dar o prazer de "kiss his ass", ou se assumem que não se pode contar com Gotham City para nada, e avançam para outro desenho do mundo.
Aqui do meu sofá, parece-me que temos de fazer o mesmo que se faz quando uma pessoa com problemas mentais graves começa a disparatar no metro: fazer de conta que não se está ali, pelo canto do olho controlar que ninguém corra risco de vida, passar rapidamente para outra carruagem.
Os EUA já não são um aliado.

09 abril 2025

uma desgraça nunca vem só

Esta manhã tocaram à campainha, e eram dois simpáticos funcionários que vinham por causa do contador da água na caixa subterrânea do jardim. O Fox, esse cãozinho de bolso que pensa que é o polícia do mundo, largou a correr e a ladrar contra eles. Perguntei se era preciso prendê-lo, e responderam que se o Fox já tivesse tomado o pequeno-almoço podia deixá-lo solto à vontade. Depois anotaram o nosso consumo este ano, e fiquei super aliviada, porque na semana passada vi que o contador da água do jardim mostrava 9999999999999,15 - o que me deixou a temer que nos tivéssemos esquecido de fechar a torneira durante o inverno todo, podem crer que há três noites que eu não durmo. Mas afinal não. Explicaram-me que quem o instalou pôs o contador a correr ao contrário.


De modo que é isto: uma desgraça nunca vem só.

Como se não bastasse o Trump, ainda por cima a Alemanha já não é o que era. Os alemães agora têm sentido de humor, mas não sabem fazer instalações técnicas.


*planta*


Este post era para ser literatura, e por isso - oh, que truque pueril! - invoco José Cardoso Pires que, segundo dizem, um dia foi ao frigorífico buscar qualquer coisa e voltou de lá com uma cenoura mirrada na palma da mão, encantado. Da cenoura moribunda estava a nascer uma rama verde, e este milagre da resiliência da natureza é de deixar qualquer um sem palavras, sobretudo quando decide ter tempo suficiente para reparar e emudecer.

Tenho um milagre desses cá em casa. O hibisco que me deram quando a Christina nasceu, e já passou por tudo: inúmeras mudanças de casa, janelas a norte e janelas a sul, férias grandes de verão em que ficava na varanda do prédio, na certeza de que o verão alemão cuidaria dele enquanto nós estávamos em Portugal - e o primeiro verão em que não choveu, e quando regressámos o encontrámos quase sem folhas, o que faz do nosso hibisco a primeira vítima do aquecimento global que conheço na Alemanha. Nos últimos anos, um bicho invisível consome-o folha a folha e alastra às plantas todas que estão por perto, um horror. Já tentámos de tudo, inclusivamente envenenar-lhe a terra. Esta derradeira estratégia correu bem, mas foi só até o veneno passar a ser proibido na Alemanha. Em desespero de causa, fui para a internet em busca de soluções. "Aspergir com uma solução de sabonete líquido", li. Em desespero de causa, experimentei. E saí em viagem de negócios. Uns dias mais tarde, recebi notícias de casa: "this is the end!" Despedi-me mentalmente desta planta que nos acompanhou durante mais de trinta anos e pensei: "eu vou ser como a cenoura!" Em vez de me dar por vencida, comecei a fazer planos sobre tudo o que de futuro vou poder plantar, depois de finalmente livrar a sala daquela fonte de maleitas que matava tudo à sua volta.

Uns dias mais tarde recebi mais notícias de casa: "milagre!"

Cá está o hibisco de novo, carregadinho de folhas de verde tenro. O bicho, por enquanto, não se manifestou. Mas não sei se regressará ou não.

Portanto, mais uma vez: eu vou ser como a cenoura. Em vez de insistir no projecto de plantas mirabolantes numa casa sem bichos invisíveis, vou aproveitar que tenho milagres e mistérios na minha sala e crio uma nova religião: os adventistas do eterno retorno.

Se o bicho voltar, vendo as folhas infestadas como se fossem relíquia. Para que os seguidores desta fé possam multiplicar o mistério na sua própria casa. E também para me governar, que não sei que me parece criar uma religião nova sem ser para ganhar dinheiro.


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Mais plantas:



04 abril 2025

Chamberlain

Mais comentários da actualidade, directamente do meu sofá: Informa a Spiegel que, depois da Espanha, da França e da Bélgica, a nova Inquisição trumpiana chegou à Alemanha: a embaixada norte-americana em Berlim enviou cartas a empresas e organizações não governamentais para saber se estão a obedecer à ordem de extinção dos programas de diversidade, equidade e integração decretada por Trump.

Outras embaixadas dos EUA na Europa, que não a de Berlim, enviaram um questionário com 36 perguntas. Entre outras preocupações, querem também garantir que os respectivos projectos não contêm nenhum elemento de environmental justice, ou seja, da ideia de que todas as pessoas, independentemente da cor da pele, da origem ou do grau de riqueza têm direito a um ambiente saudável. [ Pequeno aparte: quando criticavam e se riam da chamada cultura woke, por acaso vos ocorreu que seriam estas as consequências da ofensiva de ódio dirigida contra qualquer esforço de criar uma sociedade com oportunidades iguais para todos? ] Entendo perfeitamente que o Estado norte-americano queira assegurar que as empresas estrangeiras com as quais estabelece contratos, bem como as ONGs que financia, cumprem as regras daquele país. Ao fim e ao cabo, a UE também faz exigências a muitas empresas de outros países que produzem para o mercado europeu, nomeadamente no que diz respeito à proibição de mão-de-obra infantil, às condições mínimas de trabalho, ou na área da protecção do meio-ambiente. Mas tenho algumas dúvidas quanto à praticabilidade da sujeição às ordens daquele desnorteado que hoje diz uma coisa e amanhã o seu contrário ("Did i say that? I can't believe I said that. Next question."). [ Pequeno aparte: Trump pensa que as suas tarifas vão fazer com que as empresas decidam deslocar a produção para os EUA, aumentando o número de postos de trabalho; mas ontem ouvi um empresário alemão dizer que, apesar das dificuldades provocadas pelas tarifas, não pode pensar em abrir uma fábrica nos EUA, porque as políticas governamentais são extremamente voláteis e imprevisíveis. ] Como ia dizendo: embora tenha algumas dúvidas quanto à praticabilidade, entendo o ponto de vista do Estado norte-americano. Apenas exijo reciprocidade. A UE também deve assegurar-se que as empresas dos EUA com as quais faz contratos e as ONGs que apoia cumprem regras básicas europeias, nomeadamente no que diz respeito à promoção da diversidade, da equidade e da integração, e também ao respeito pelas minorias. [ Tenho um sofá impecável, não acham? O mundo visto a partir dele é muito simples: se Trump quer guerra económica vai ter guerra económica, se quer deals vai ter deals segundo as nossas condições. Rapidamente e em força, como dizia o outro. ] E depois volto a dar-me conta de que estamos encurralados entre um Putin que já cometeu crimes terríveis na Tchetchenia, na Síria e na Ucrânia (e que tem sonhos húmidos relativos a outros países da UE, e que gosta de brandir a ameaça da guerra com bombas atómicas) e um cabeça de vento desnorteado e completamente vendido a quem paga mais, que parece ter sonhos húmidos com um Putin seminu de botas altas de cabedal e chicote na mão. Estamos tragicamente encurralados entre o país mais poderoso do mundo em processo de implosão e a sua domina em Moscovo; a nível interno, ainda temos as coelhinhas da Playboy do Trump e do Putin, como o Vintruja e os seus quarenta ladrões.

Durante muito tempo perguntei-me como tinha sido possível a Alemanha descarrilar para o III Reich. Entretanto, já sei: é um movimento que parece inexorável, como se o diabo de repente se tivesse posto ao volante do mundo. E também começo a compreender melhor Chamberlain. Para grande desgosto do meu sofá. [ A vantagem de a História se repetir é que, ao menos, perdemos qualquer espécie de arrogância em relação a quem nos precedeu e no seu tempo titubeou tal como nós hoje titubeamos no nosso. Tanto mais que eles nem sequer estavam avisados. ]


apelo

 Aqui do meu sofázinho confortável, lanço um apelo ao mundo:


- Povos de todo o mundo, uni-vos! Não sai nem mais meia dúzia de ovos para os EUA. Vamos gastá-los nós a fazer bolos para festejar nas ruas e mostrar aos trumpalhões que a união faz a força.
(Sou a Deladeu Martins de 2025)

E se tudo é a arte do "deal", proponho este: trocamos ovos por USAID.


*lugar comum*

Na semana passada, o tema proposto pelo grupo de escrita era "lugar comum". Não escrevi quando devia, porque estava de férias e mais tal e mais coisa, mas ando há mais de uma semana a pensar neste lamento: Que saudades tenho do tempo em que havia verdades banais, trivialidades! Eram os nossos lugares comuns: pontos de encontro da sociedade como um todo.

Mas desde que a terra ficou de novo plana, deixou de haver lugares comuns no planeta.

Algumas das outras participantes neste desafio pegaram no tema "lugar comum" pelo lado do amor. Sábias, intuíram a solução para o lamento que eu nem escrevera ainda: num planeta cuja forma se tornou mera afirmação da individualidade pessoal (e a importância das vacinas uma questão de opinião, e democracia e ditadura "tudo a mesma coisa", etc.), o amor é talvez a única hipótese de algum dia nos voltarmos a encontrar todos num lugar comum. PS. No cartoon de Etta Hulme, de 1986, ainda só éramos cinco mil milhões de humanos. Apenas trinta e cinco anos depois, somos oito mil milhões. Se é para trazer tanta gente para um lugar comum, precisaremos de ter muito amor para dar.

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Os lugares delas: A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Gralha dixit
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra