14 fevereiro 2024

a propósito de dilemas


Há dias falei do dilema sobre escolher entre salvar um cão e salvar o Hitler, se só se pudesse salvar um deles de uma casa em chamas. Pessoalmente, resolvia este problema de princípios civilizacionais de forma simplória: salvava o que pesasse menos, porque as minhas forças são limitadas...

Dilema puxa dilema, parei num outro, esse realmente difícil: se uma tragédia mortal estivesse prestes a acontecer, digamos, dois carros avançam para um precipício, num vão oito pessoas e no outro vai um filho meu; tenho forma de evitar que um dos carros caia - que carro escolho? [ Que carro escolhiam vocês, se fosse um filho vosso? ]

Se fosse eu quem ia no carro, não teria a menor hesitação: salvem os outros. Porque não sei como conseguiria viver a minha vida, se soubesse que alguém tinha escolhido deixar morrer oito seres humanos para me salvar a mim.

Parece fácil, mas logo tropeço nas dificuldades da vida real: os dois reféns do Hamas que o exército israelita libertou em Gaza. O noticiário alemão (aqui, a partir de 14:09) mostrou imagens do resultado da "manobra de diversão" (terrível nome!): "Mas a felicidade de uns é a violência e a morte de outros", disseram. "Para desviar a atenção da manobra de libertação, o exército atacou outros alvos em Rafah, há inúmeros mortos e feridos". Entrevistam uma menina de nove anos, Mai al-Najjar, que tem o corpo cheio de feridas. O pai foi morto. "Estava numa tenda com a minha família quando começaram a atacar-nos. O meu pai foi lá fora, para ver o que se estava a passar. Disse que havia explosões, e ainda estava a falar quando ouvimos mais uma. Fugimos todos a correr." Os reféns libertados: como será viver o resto da vida sabendo que, para me salvar a mim, mesmo sendo eu vítima de uma injustiça tremenda, assassinaram dezenas de pessoas igualmente inocentes e igualmente vítimas de tremendas injustiças? As famílias dos restantes reféns do Hamas: como exigir "bring them back" ao seu governo, sabendo que o preço dos resgates é a vida de muitos inocentes? E será que exigir a Netanyahu que negoceie a libertação imediata em vez de operações como esta é uma hipótese plausível? A pessoa que informou o exército israelita sobre a localização dos reféns: como vai conseguir dormir, de hoje em diante? E Netanyahu: a sua popularidade está em alta porque conseguiu salvar dois reféns. Este massacre de civis não passou de uma operação de propaganda. Apesar dos ataques de uma violência para lá de obscena contra civis, e apesar de terem morrido nesta operação dois soldados israelitas, a popularidade de Netanyahu está em alta. Grande parte da população israelita: adere a este desvario, completamente alienada pelo trauma da orgia de violência do 7 de Outubro, pela tragédia dos reféns e pelo ambiente irracional de um país em guerra.

E o Hamas: a operação de resgate - com todo o horror que se viu - não teria acontecido se já tivessem libertado todos os reféns. Ou se já estivessem a negociar com seriedade a troca de cada um destes reféns pelos palestinianos indefinidamente retidos sem julgamento em prisões israelitas. Ou se já se tivessem rendido. O Hamas: que atirou os palestinianos para este vórtice de violência sem lhes perguntar se estavam disponíveis para morrer numa mais que previsível "guerra total". Que continua teimosamente a oferecer resistência a um inimigo muito mais forte, absolutamente impiedoso e que tem mostrado que não recua perante nada. Há meses que penso na história bíblica das duas mães que deram à luz na mesma altura. Durante a noite, o filho de uma delas morreu, e ela trocou os bebés. De manhã, a mãe da criança roubada deu pela troca. O caso acabou por ir ao rei Salomão, que decidiu partir a criança viva em duas, para dar meio filho a cada mãe. A mentirosa disse "pois então que seja", e a mãe verdadeira implorou que entregassem a criança inteira à outra mulher. Pôs a defesa da vida do filho que amava acima das suas razões e da sua sede de justiça. Penso nesta história especialmente desde o dia em que vi um cartoon da campanha "e tu? também condenas o Hamas?", um meme ardiloso que servia para ridicularizar quem acusava o Hamas. Naquele cartoon, mostrava-se um soldado israelita a fazer essa pergunta a um prematuro num hospital de Gaza. Que não haja dúvidas: não há desculpas nem perdão para quem corta os fornecimentos de água e electricidade a uma população encerrada dentro de muros. Sim, todos ficámos horrorizados perante as imagens da sala de bebés prematuros, onde as máquinas estavam prestes a deixar de funcionar porque não havia combustível para os geradores. Provavelmente todos sentimos a mesma impotência e uma enorme repulsa pelo governo de Netanyahu, o responsável por esta situação. Mas aquela pergunta feita a um bebé que está em risco de morrer num braço de força ignóbil - "e tu? condenas o Hamas?" - levanta uma questão pertinente: "e tu, Hamas? que fazes para salvar este bebé?" Israel cortou o fornecimento de energia, mas nos depósitos do Hamas havia reservas de combustível suficientes para alimentar o gerador que podia salvar aqueles prematuros. Diga alguém, se o souber: o Hamas disponibilizou algum do seu combustível para permitir que os hospitais continuassem a funcionar? Ou preferiu guardá-lo para continuar a lançar rockets simbólicos contra o iron dome de Israel? Este bebé prematuro desenhado no cartoon, tal como o bebé disputado no tribunal de Salomão, corria risco de vida. De um lado, tem um soldado do exército de Israel. Mas do outro lado não tem um Hamas no papel da mãe que ama o seu filho acima de tudo. O Hamas deseja a todo o custo ganhar a disputa, mas não tem amor à criança. "Vai morrer? Pois então que seja", diz o Hamas. "Até dá jeito, para a propaganda. Dá sempre imagens impecáveis para o tiktok."


8 comentários:

Ana Garrido disse...

Muitos dilemas importantes, Helena. Não há remédio enquanto as forças da paz não conseguirem dominar as da guerra. E para isso não chega ser pacífico, tem mesmo de se ter força de pressão.

Ana Garrido

jj.amarante disse...

Curiosa essa da manobra de diversão, os israelitas censuram o Hamas de usar civis como escudos humanos, quanto a mim o que eles usam com escudo é mais a terra por cima dos túneis, mas pela parte deles matam uns tantos civis como manobra de diversão para libertar dois reféns, além de sacrificarem dois soldados israelitas. Nem sei que diga mais.

Helena Araújo disse...

Ana Garrido, se para alguma coisa servir esta tragédia horrenda, que seja ao menos para isto: a comunidade internacional unir-se na pressão para criar os dois Estados com garantias de coexistência pacífica.

jj. amarante, espero sinceramente que esta "manobra de diversão" leve Netanyahu a tribunal. E as outras.

Lucy disse...

Sentindo-nos tão impotentes só isto podemos esperar "se para alguma coisa servir esta tragédia horrenda, que seja ao menos para isto: a comunidade internacional unir-se na pressão para criar os dois Estados com garantias de coexistência pacífica"

Quelhas Mota disse...

Penso que a coisa é mais complexa - ainda que tudo isso seja uma bárbara tragédia, in-humana, como aliás o que se passa na Ucrânia.
Quanto à tragédia. Há um mix palestinianos/Hamas que não se distingue (ao contrário da Ucrânia, aonde povo e soldados, se distinguem). Seria natural face a essa tragédia que o Hamas devolvesse pelo menos os capturados para iniciar negociações, salvar o povo palestinianos, e, de uma vez, arrumasse o caso dos dois estados, agora com a ajuda de toda a comunidade internacional. Até seria razoável que os estados em volta recolhessem os refugiados - os europeus recolheram os ucranianos.
Solução. O facto de haver dois estados, permitiria uma responsabilização mais formal pelos acontecimentos. Mas, será que resultaria? É que o Hamas e outros movimentos e estados querem a destruição de Israel - e, o Hamas mostra que está disposto a sacrificar um povo: homens, mulheres e crianças, para obter isso - povo esse que parece votar nele.
Enfim... nem sei com pensar

Helena Araújo disse...

Penso que o Hamas e quejandos não serão nunca parte de uma solução de paz. A solução de 2 Estados implica também desarmamento dos grupos armados na Palestina e Capacetes Azuis para assegurar a segurança e a paz nos dois Estados.
A última vez que houve eleições em Gaza, se não me engano, foi em 2006. O Hamas ganhou as eleições, e depois nunca mais houve.

Paulo disse...

Lei de vez em quando o seu blogue com muito interesse, mas destat vez vai-me perdoar expressar uma opinião contrária. Parece-me que a sua bussola moral neste tema está condicionada pelo preconceito e pela defesa de um dos lados.

Fazer paralelo da história do acidente de carro e ver os reféns israelitas como o carro com o filho e as pessoas que foram mortas como a opção alternativa, tornar preto ou banco uma decisão com matizes importantes. Será que era realmente isso que estava em causa, salvar uns ou outros? Não seria possível salvar os reféns sem matar outros inocentes? Era mesmo este o dilema?

No final do texto o seu enviesamente torna-se evidente: para si os palestinianos são de facto "o outro" ao confundi-los com o Hamas. Como é que o Hamas pode ser visto como a mãe do bébé no paralelo que faz com a história da lei salomónica? Não se dá conta mas é absolutamnete hediondo esse paralelismo.
É por se achar que a mãe do bébé é o Hamas que o governo de Israel acha legítimo mandar destruir Gaza e quem lá esteja. E é por essa lógica, e não por um qualquer dilema moral, que para o governo de Israel é legítimo matar inocentes indefesos para resgatar os reféns.

Enquanto não se ultrapassar esta lógica a paz possível será a paz dos cemitérios.

PS: e não, isto não é uma defesa dos carniceiros do Hamas.

Helena Araújo disse...

Paulo,
Sobre o dilema do carro: estava a falar do que aconteceu, e não do que poderia ter acontecido. As famílias dos reféns exigem (pelo menos na sua maioria) que o governo israelita negoceie a libertação. Essa é também, obviamente, a solução que me parece um milhão de vezes preferível. Mas Netanyahu não está preocupado nem com os reféns nem com a paz. Quer expulsar todos os palestinianos de Gaza.
Limitei-me a traduzir o dilema dos carros para o crime de guerra (mais um) a que assistimos. Como é a vida de cada um dos envolvidos, depois de terem sido assassinados quase uma centena de inocentes para salvar dois inocentes?

Sobre o Hamas: não o confundo com os palestinianos. Onde foi buscar essa ideia?
Pelo contrário: penso que Gaza tem um inimigo externo, Netanyahu, e um interno, que é o Hamas.
O meu exemplo da mãe serve para rejeitas a ideia de que o Hamas está a defender os interesses dos palestinianos. Uma mãe que amasse o seu filho não fazia o massacre do 7 de Outubro, porque sabia perfeitamente o preço que o seu filho amado pagaria por ele. Uma mãe que amasse o seu filho dava o combustível que tem nos armazéns para que as máquinas dos hospitais pudessem continuar a funcionar. Uma mãe que amasse o seu filho já tinha feito o que está ao seu alcance para parar a chacina de palestinianos em Gaza. Por exemplo: já tinha negociado uma rendição perante a Comunidade Internacional (e não perante Israel), entregando Gaza a uma autoridade internacional (sem Israel) e impondo a criação imediata de um Estado palestiniano nas fronteiras de 67. Isso era o que o Hamas podia fazer neste momento, se estivesse realmente preocupado com a sorte dos palestinianos.