21 dezembro 2023

"lembrai-vos de nós / com indulgência"


É sabido que na Filarmonia de Berlim se faz acontecer música extraordinária. Mas há dias em que se chega a outra dimensão. Como ontem, no concerto de beneficiência para as famílias dos reféns de Gaza e para associações de mulheres que, de ambos os lados do muro, trabalham para a paz. Um concerto de sublime pungência.

Em tempo record, aqui juntaram Martha Argerich, Guy Braunstein, Kirill Gerstein, Thomas Hampson, Steven Isserlis, Christian Tetzlaff, Emmanuel Pahud, a par de vários músicos judeus e árabes vindos de Israel.

É verdade que, tal como uma amiga me apontara ao ver o programa, havia um peso muito maior de músicos de Israel que da Palestina e, de facto, houve algum desequilíbrio nos discursos: Efrat Machikawa falou longamente sobre o seu tio Gadi Moses, que ainda está refém do Hamas, mas ninguém subiu àquele palco para dar nome a uma só que fosse das crianças mortas ou repentinamente feitas órfãs em Gaza.



Meera Eilabouni (na foto) falou em nome das mulheres das associações pacifistas Women Wage Peace e Women of the Sun, que lutam por um futuro de paz, igualdade e segurança para ambos os povos. Acusou as guerras dos homens (fazendo de novo ecoar em mim a ideia de "masculinidade tóxica" que me ocorreu ao ver as imagens do massacre do Hamas e, uns dias mais tarde, de Netanyahu a passar revista às tropas prontas para invadir Gaza) - e sublinhou a importância da luta das mulheres pela paz: "ninguém consegue parar mulheres que se preocupam pelo futuro dos seus filhos".


Mira Awad e Noa cantaram "There must be another way", e puseram o público de toda a sala a ensaiar em árabe, hebraico e inglês um verso do poeta palestiniano Mahmoud Darwish: “If only I were a candle in the dark”. E retivemos as palavras de Noa: "Dizem que somos ingénuas por cantar esta mensagem. Mas a alternativa à paz é o inferno."

O concerto terminou com Kol Nidrei op. 47, de Max Bruch, com solo de viola em vez de violoncelo. O solista que ali estava, à frente da orquestra e ao lado de Kirill Petrenko, é o primeiro violista da Filarmónica de Berlim: Amihai Grosz - cujo sobrinho esteve várias semanas prisioneiro do Hamas. O horror aqui tão perto.

Deixei para o final deste post os dois poemas ditos por Martina Gedeck, que se cravam em nós e neste tempo desgraçado: Aos vindouros - Bertolt Brecht (aqui na voz de Brecht, e de seguida na tradução de João Barrento)

I

É verdade, vivo em tempo de trevas!

É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa

Revela insensibilidade. Os que riem

Riem porque ainda não receberam

A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que

Uma conversa sobre árvores é quase um crime

Porque traz em si um silêncio sobre tanta

[monstruosidade?

Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,

Não estará já disponível para os amigos

Em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.

Mas acreditem: é puro acaso. Nada

Do que eu faço me dá o direito de comer bem.

Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar, estou

[perdido.)

Dizem‑me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!

Mas como posso eu comer e beber quando

Roubo ao faminto o que como e

O meu copo de água falta a quem morre de sede?

E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria.

Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:

Retirar‑se das querelas do mundo e passar

Este breve tempo sem medo.

E também viver sem violência

Pagar o mal com o bem

Não realizar os desejos, mas esquecê‑los.

Ser sábio é isto.

E eu nada disso sei fazer!

É verdade, vivo em tempo de trevas!

II

Cheguei às cidades nos tempos da desordem

Quando aí grassava a fome.

Vim viver com os homens nos tempos da revolta

E com eles me revoltei.

E assim passou o tempo

Que na terra me foi dado.

Comi o meu pão entre as batalhas

Deitei‑me a dormir entre os assassinos

Dei‑me ao amor sem cuidados

E olhei a natureza sem paciência.

E assim passou o tempo

Que na terra me foi dado.

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.

A língua traiu‑me ao carniceiro.

Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo

Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.

E assim passou o tempo

Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta

Estava muito longe

Claramente visível, mas nem por isso

Ao meu alcance.

E assim passou o tempo

Que na terra me foi dado.

III

Vós, que surgireis do dilúvio

Em que nós nos afundámos

Quando falardes das nossas fraquezas

Lembrai‑vos

Também do tempo de trevas

A que escapastes.

Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos,

Atravessámos as guerras de classes, desesperados

Ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:

Também o ódio contra a baixeza

Desfigura as feições.

Também a cólera contra a injustiça

Torna a voz rouca. Ah, nós

Que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade

Não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora

De o homem ajudar o homem

Lembrai‑vos de nós

Com indulgência.




Depois deste dilúvio - Ingeborg Bachmann na tradução de J. Carlos Teixeira


Depois deste dilúvio,

queria a pomba

e nada mais do que a pomba 

ver - salva uma vez mais.


Eu afogar-me-ia neste mar!

Não voasse ela para longe,

não trouxesse ela

a folha na última hora.


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