É sabido que na Filarmonia de Berlim se faz acontecer música extraordinária. Mas há dias em que se chega a outra dimensão. Como ontem, no concerto de beneficiência para as famílias dos reféns de Gaza e para associações de mulheres que, de ambos os lados do muro, trabalham para a paz. Um concerto de sublime pungência.
Em tempo record, aqui juntaram Martha Argerich, Guy Braunstein, Kirill Gerstein, Thomas Hampson, Steven Isserlis, Christian Tetzlaff, Emmanuel Pahud, a par de vários músicos judeus e árabes vindos de Israel.
É verdade que, tal como uma amiga me apontara ao ver o programa, havia um peso muito maior de músicos de Israel que da Palestina e, de facto, houve algum desequilíbrio nos discursos: Efrat Machikawa falou longamente sobre o seu tio Gadi Moses, que ainda está refém do Hamas, mas ninguém subiu àquele palco para dar nome a uma só que fosse das crianças mortas ou repentinamente feitas órfãs em Gaza.
Meera Eilabouni (na foto) falou em nome das mulheres das associações pacifistas Women Wage Peace e Women of the Sun, que lutam por um futuro de paz, igualdade e segurança para ambos os povos. Acusou as guerras dos homens (fazendo de novo ecoar em mim a ideia de "masculinidade tóxica" que me ocorreu ao ver as imagens do massacre do Hamas e, uns dias mais tarde, de Netanyahu a passar revista às tropas prontas para invadir Gaza) - e sublinhou a importância da luta das mulheres pela paz: "ninguém consegue parar mulheres que se preocupam pelo futuro dos seus filhos".
O concerto terminou com Kol Nidrei op. 47, de Max Bruch, com solo de viola em vez de violoncelo. O solista que ali estava, à frente da orquestra e ao lado de Kirill Petrenko, é o primeiro violista da Filarmónica de Berlim: Amihai Grosz - cujo sobrinho esteve várias semanas prisioneiro do Hamas. O horror aqui tão perto.
Deixei para o final deste post os dois poemas ditos por Martina Gedeck, que se cravam em nós e neste tempo desgraçado: Aos vindouros - Bertolt Brecht (aqui na voz de Brecht, e de seguida na tradução de João Barrento)
I
É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrível notícia.
Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta
[monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?
É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar, estou
[perdido.)
Dizem‑me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
Roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.
Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
Retirar‑se das querelas do mundo e passar
Este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência
Pagar o mal com o bem
Não realizar os desejos, mas esquecê‑los.
Ser sábio é isto.
E eu nada disso sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!
II
Cheguei às cidades nos tempos da desordem
Quando aí grassava a fome.
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
Comi o meu pão entre as batalhas
Deitei‑me a dormir entre os assassinos
Dei‑me ao amor sem cuidados
E olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu‑me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
As forças eram poucas. A meta
Estava muito longe
Claramente visível, mas nem por isso
Ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
III
Vós, que surgireis do dilúvio
Em que nós nos afundámos
Quando falardes das nossas fraquezas
Lembrai‑vos
Também do tempo de trevas
A que escapastes.
Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos,
Atravessámos as guerras de classes, desesperados
Ao ver só injustiça e não revolta.
E afinal sabemos:
Também o ódio contra a baixeza
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Torna a voz rouca. Ah, nós
Que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade
Não soubemos afinal ser amáveis.
Mas vós, quando chegar a hora
De o homem ajudar o homem
Lembrai‑vos de nós
Com indulgência.
Depois deste dilúvio - Ingeborg Bachmann na tradução de J. Carlos Teixeira
Depois deste dilúvio,
queria a pomba
e nada mais do que a pomba
ver - salva uma vez mais.
Eu afogar-me-ia neste mar!
Não voasse ela para longe,
não trouxesse ela
a folha na última hora.
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