No domingo de manhã saímos cedinho de casa para ir assistir à maratona de Berlim. A festa que se sabe: um milhão de pessoas nos passeios, aplaudindo com entusiasmo milhares de desconhecidos que lhes passam à frente. Aqui e ali bandas, baterias de samba, solistas diversos a animar o ambiente.
Para mim, é um dos dias mais especiais do ano nesta cidade. Um milhão de pessoas unidas a fazer a festa, a conversar umas com as outras, a partilhar comentários e exclamações, a passar a alegria de sorriso em sorriso.
Começou bem, como sempre: chegámos a tempo de apanhar um lugar à frente, mesmo na curva, para vermos bem os corredores. Do outro lado da rua uma banda tocava jazz.
Mas daí a pouco o ambiente tornou-se muito sombrio. Sirenes de polícia. Carrinhas cheias de polícias. Um aparato bélico de motas de polícia às voltas no nosso cruzamento. De um carro saíram comandos especiais em busca de activistas da Última Geração, por temerem que alguns se colassem à rua e impedissem a maratona. O público aplaudiu-os muito.
De facto, ali perto havia uns engraçadinhos que, enquanto esperávamos os primeiros corredores, se deitavam no meio da rua para brincar com os nossos medos. E assim conseguiram dar cabo da boa disposição despreocupada daquela manhã.
No público, houve reacções de impaciência. Houve quem ameaçasse ir comer um bom bife, como retaliação. Quem dissesse que não é assim que estes activistas conquistam adeptos para as suas causas. E eu a pensar: então a vida humana no planeta está com os dias contados, e vocês estão a discutir retaliações e pedagogias?
Os activistas da Última Geração começaram por atirar puré ou sopa de tomate a quadros famosos nos museus, melhor dizendo: aos vidros que protegem quadros famosos nos museus. Depois, desataram a colar-se às ruas em cruzamentos importantes, obrigando o trânsito a parar. No princípio das férias escolares do Verão 2023 conseguiram colar-se às pistas do aeroporto berlinense, obrigando o aeroporto a parar e assim estragando os planos de férias a muitas famílias. Na semana passada atiraram cores garridas à Porta de Brandeburgo. Os políticos andam há meses a falar em tornar bem mais severas as penas para este tipo de crimes. O que me parece uma resposta errada, ineficaz e ridícula. Porque o nome "Última Geração" não acontece por acaso. Pelo contrário: descreve aquilo que esses activistas pensam sobre o que será o seu futuro. E é ridículo pensar que uma pena de prisão pode meter medo a quem já decidiu não ter filhos porque o planeta está a tornar-se num lugar infernal.
Os activistas da Última Geração sentem-se desesperados. Sabem o que nos espera a muito breve prazo. Sabem que os desequilíbrios actuais são irreversíveis. Sabem que as catástrofes a que assistimos em 2023 é o novo normal, e que o novo normal em 2024 vai ser ainda pior. Sabem que é urgente travar a fundo para que a situação não fuja completamente ao controlo.
Mais complexo ainda: as pessoas da Última Geração sabem que nós também sabemos, e não entendem a nossa reacção. Como é possível que continuemos a nossa vidinha como sempre, apesar de sabermos tão bem como eles que, dentro de poucos anos, os nossos filhos viverão num contexto de séria escassez de água, num contexto de violência generalizada, de fragilidade dos Estados, de incapacidade de responder a necessidades básicas da população e de enfrentar os difíceis problemas que surgirão quando uma crescente multidão de famintos vier em busca das regiões ainda habitáveis para fugir ao deserto que tomou conta da terra deles?
Na manhã da maratona de Berlim, por uns momentos maldisse a Última Geração, que me estava a estragar a alegria daquele momento. Mas depois caí em mim: eu estrago-lhes a alegria de viver todos os dias, todos os minutos da sua vida. Estou a roubar-lhes o futuro quando compro produtos alimentares que atravessaram meio planeta de avião, quando não questiono os meus hábitos de mobilidade, quando compro roupa barata para usar duas vezes e deitar fora, quando ponho no lixo em vez de consertar, quando permaneço acomodada neste sistema que nos está a destruir.
Estranhamente, apesar de sabermos ainda melhor do que há 4 anos o que estamos a fazer ao planeta, e a ameaça que paira sobre nós e aqueles que amamos, a grande greve climática de Setembro de 2023 teve, na Alemanha, apenas 25% da participação que houve em 2019. E sim, eu também estive lá em 2019 e faltei na semana passada.
Que se passa connosco? Como podemos exigir da política que trave rapidamente este processo de destruição do planeta se não fazemos a nossa parte, seja em manifestações para que o governo sinta que tem o apoio da população para fazer mudanças drásticas, seja em revisão do nosso estilo de vida? Percebo agora melhor duas situações que sempre me provocaram alguma perplexidade. A primeira, é a famosa discussão sobre o sexo dos anjos no preciso momento em que Constantinopla estava a ser atacada. Seria uma discussão com certeza importante - mas naquele preciso momento o império romano do oriente estava em grande risco. Connosco, é assim: o planeta a ferver, um processo de extinção em massa em curso, microplástico no sangue dos humanos - e nós a discutir se havemos de meter na prisão pessoas que atiram tinta a objectos ou a ministros como sinal de protesto contra a inércia dos governos. E também a dizer "oh, que me adianta fazer alguma coisa, se a China não faz nada?" e também a dizer "Lá vão eles subir outra vez os preços". A segunda perplexidade está ligada aos judeus que foram ficando na Alemanha a seguir a 1933, apesar de o regime nazi os perseguir com uma violência cada vez mais inacreditável: também nós sabemos a ameaça que paira sobre nós, e vamos continuando a nossa vida quotidiana, e vamos acreditando que isto ainda se há-de resolver, que não pode ficar tão mau como parece.
Em todo o caso: não contem comigo para criticar os activistas da Última Geração. Eles estão a fazer o que sentem que têm de fazer para nos acordar da nossa letargia, e para evitar catástrofes ainda maiores no futuro deles - e no meu, e no dos meus filhos.
2 comentários:
Depois de visitar a Turquia no Verão de 2003 comprei vários livros sobre a Turquia, designadamente "The Fall of Constantinople 1453" de Steven Runciman, editado pela Cmbridge University Press. Não consegui agora reencontrar a parte do texto em que ele referia essas discussões sobre o sexo dos anjos dos religiosos bizantinos enquanto Constantinopla caía nas mãos dos Turcos como um mito ocidental. Que existia evidência do apoio dos religiosos bizantinos aos defensores da cidade e que se teriam eventualmente recolhido às igrejas para umas últimas orações (e eventualmente finalizar discussões consideradas importantes sobre polémicas religiosas) quando convencidos que a invasão era inevitável. E refere em anexo que embora fosse hábito dos muçulmanos saquear durante três dias as cidades, incluindo as igrejas, quando não se rendiam, nos primeiros tempos da ocupação da cidade apenas desconsagraram a maravilhosa Santa Sofia(Sabedoria), São João em Petra e a Igreja de Chora, deixando as restantes para uso dos cristãos durante vários anos.
Muito interessante, este comentário ao meu post.
Não sei nada sobre essa famosa discussão sobre o sexo dos anjos.
Mas, mesmo que não tenha existido, a situação descrita encontra paralelos nos nossos dias.
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