06 julho 2023

viagem à Bretanha

Antes das férias grandes de verão - começam hoje, yey! - fomos dar uma voltinha até à Bretanha, aproveitando um congresso que o Joachim lá teve. "Fomos", é como quem diz: eu e a carrocinha.

Antes de sair, desta vez para Portugal, apresso-me a arrumar as fotos e deixar aqui meia dúzia de impressões (ou mais, já me conhecem).

O meu problema de sair de carro é que vou fazendo tudo o que é urgente e ainda está por fazer, e só saio depois (o meu problema de sair de avião também é o mesmo, mas acabo por fazer menos coisas). Desta vez, saí para a Bretanha às seis e meia da tarde, quando devia ter partido ao princípio da manhã. Pouco depois fiquei parada uma hora por causa de um troço da auto-estrada que estava cortado, de modo que ainda dormi na Alemanha. .

No dia seguinte, novo engarrafamento. Muito sofre um camionista...

Mas desta vez não fiquei ali parada. Ao ler "centro histórico" numa placa, saí da auto-estrada e fui passear numa terra que até esse momento nem sabia que existia, e se veio a revelar um lugar encantador. Ou quase.

É que, mal entrei no centro de informações, fiquei a saber que aquela linda cidade enriquecera graças ao cobre. Ah, o famoso cobre da Renânia, da região entre Colónia e Aachen, muito apreciado para fazer as manilhas que serviam de meio de pagamento para os europeus comprarem na costa africana as pessoas que levavam como escravos para o outro lado do mar. Manilhas essas que davam muito jeito para fazer as famosas esculturas de bronze do Benim, algumas das quais os museus europeus, depois de muito resistir, começaram a devolver ao Oba do Benim. Sim, este conseguiu que o sistema político da Nigéria reconhecesse os direitos de propriedade da sua família. Sim, a família que enriqueceu imenso a vender pessoas aos europeus, para o tráfico intercontinental de escravos - o que torna esta devolução um desfecho curioso para todo um debate sobre proveniência da arte saqueada e direitos dos povos. Sim, sobre este assunto é melhor ficar calada, para não revelar velhos tiques de paternalismo e superioridade. E sim, bem sei que os mineiros e ferreiros da Renânia não tinham culpa do destino dado a algum do metal que saía daquela terra. Mas também Stolberg enriqueceu com um negócio cujo preço ainda hoje é tragicamente pago por muitos.

Avançamos aos ombros dos gigantes que nos precederam, e como herdeiros das riquezas alcançadas por meio de muita iniquidade. Nós, os portugueses. E os cidadãos de Stolberg. E o Oba do Benim.

Em todo o caso: Stolberg é um burgo lindo.




Também passeei pelo cemitério, um parque de árvores antigas e túmulos que reflectiam a riqueza de algumas famílias. Junto ao muro, várias gerações da família Prym descansavam em paz sob pedras ricamente trabalhadas. Entre elas, este Roland Prym, que morreu em 1942 com vinte anos. Em 1942 havia muitas maneiras diferentes e anormais de morrer, perguntei-me qual terá sido a sua. E pensei que, como sempre, somos todos herdeiros das consequências das escolhas de quem nos precedeu. 



Regressei ao carro passando pelas ruas ao longo do ribeiro que atravessa a cidade. Muitas das casas que foram danificadas pela cheia repentina do verão de 2021 ainda estavam vazias, ou em obras. Numa praceta junto ao rio havia enormes sacos de areia para a proteger de futuras cheias. Como ficarão as cidades ribeirinhas do mundo inteiro quando forem preparadas para resistir à herança que o nosso século XX lhes vai deixar?





Atravessei a Bélgica num instante, dormi na França. No dia seguinte, tomei um duche numa estação de serviço. A senhora da caixa pediu-me a chave do meu camião em troca da do chuveiro. Wow, camião! Até me senti uma pessoa crescida.

E até me senti uma pessoa depois de tomar o duche. Abençoada França, com as suas casas de banho gratuitas nas estações de serviço! 

Cheguei à Bretanha mesmo a tempo de ir ao jantar de gala do congresso, com comida excelente e uma vista de sonho para a marina.



2 comentários:

jj.amarante disse...

Quer dizer que na viagem para Portugal fez um "desvio" pela Bretanha? A carrocinha é um monovolume tipo Renault Espace? Ou perguntando de uma maneira mais machista: é azul ou vermelha?

Acho cada vez mais estranha essa culpa do homem branco. Há quem diga que quem reside em Portugal não é descendente dos descobridores, às vezes identificados como expansionistas e traficantes de escravos, esses foram-se embora, mas dos Velhos do Restelo.

Por raciocínio semelhante os africanos residentes no litoral devem descender dos vendedores de escravos, fornecedores dos traficantes europeus.

Até quantos se fala das dívidas históricas? Vamos pedir compensações aos franceses pelos mortos da tragédia do colapso da Ponte das Barcas? E a devolução das pratas e ouros das igrejas? E vamos pedir compensação ao estado italiano por os Romanos terem colonizado partes do território de Portugal há mais de um milhar de anos?

É curioso os alemães terem exportado cobre para África. Nós (os Portugueses de então) transportavam ouro da África para a Europa, substituindo o transporte através do deserto do Sara. Há os produtores e os comerciantes.

Helena Araújo disse...

Fui à Bretanha, voltei a Berlim, e agora estou em Portugal. A carrocinha é um VW vermelho, modelo T-um-número-qualquer que nunca sei.

Não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o presente. E este herdou muito do passado, nomeadamente: os preconceitos, a assimetria na distribuição da riqueza, as castas sociais. Se gozamos as riquezas e o status que recebemos dos nossos antepassados e resultaram de situações de opressão, também devíamos ser capazes de assumir o que tudo isso custou e ainda hoje custa aos outros.

Já ninguém sabe quem eram os romanos e os lusitanos que aqui viviam, e quem deve o quê a quem. Mas parece-me bem que a Alemanha indemnize os povos africanos do primeiro genocídio do século XX, e que a Turquia devolva aos arménios os terrenos que lhes roubou, por exemplo. E Portugal tem muito trabalhinho a fazer no que diz respeito, por exemplo, ao modo como explorou o trabalho dos seres humanos que tratou como animais. Se deve ou não pagar, parece-me uma questão relativamente secundária. Antes de mais, tem de assumir, tem de pedir desculpa com verdadeiro sentimento de vergonha, tem de perceber que a mentalidade forjada nessas condições de domínio e desrespeito ainda existe na nossa sociedade e ainda é mortal (veja-se o caso do Bruno Candé, por exemplo, ou do modo como tantos agentes da polícia portuguesa tratam pessoas de pele escura), e deve fazer tudo o que está ao seu alcance para o mudar.

Queixar-se da culpa do homem branco lembra-me uma criança que bate noutra e a seguir diz "cala-te, que já não aguento ouvir-te chorar". Ou o homem que diz à mulher "fecha a porta, porque não aguento ver-te a trabalhar".

E sim: sei muito bem que os outros não eram melhores que nós. Mas o mundo em que nasci é um mundo que tem vindo há séculos a organizar-se para beneficiar os meus e prejudicar os outros.