No seu artigo com o título "O atentado do criminoso fofinho", Maria João Marques mostra-se irritada com a comunicação social portuguesa pelo modo como noticiou sobre o ataque no Centro Ismaili. Nada se sabia sobre os motivos do atacante (ela própria o diz no início do texto), e os media insistiram em falar apenas daquilo que sabiam sobre ele. Mas Maria João Marques entende que, sendo um afegão que matou duas mulheres de um ramo muito moderado do Islão, a comunicação social tinha obrigação de adiantar a hipótese de se tratar de um acto de misoginia e intolerância religiosa. Tanto mais que, como se compreenderá ao ler o texto, eles lá no Afeganistão são assim.
E adverte: a comunicação social não percebe que, ao omitir estas facetas da questão, está a "dar gás (muito inflamável) à extrema-direita."
A ver se entendo: para não dar força à extrema-direita, a comunicação social tem obrigação de fazer conjecturas com base em preconceitos sobre o país de origem do atacante, ou seja, deve interpretar os acontecimentos que envolvem um refugiado nos mesmos termos em que a extrema-direita o faz. No caso concreto: apesar de ainda não se conhecerem os motivos do atacante, a comunicação social deve dar uma imagem tão brutal quanto possível do povo afegão, porque se não o fizer, vai dar mais força à extrema-direita.
Está muito certo.
O cenário que a comunicação social tinha obrigação de pôr na mesa (para não dar força à extrema-direita, note-se) é este:
- "O criminoso vem de um país de maioria sunita, com um islão castradoramente conservador, e o atentado foi cometido num centro ismailita, representante de um islão imensamente moderado, xiita, alvo comum de atentados religiosos de muçulmanos."
Pergunto: o criminoso vem de um país de maioria sunita, ou fugiu de um país de maioria sunita? Se concordasse tão intrinsecamente com o pior que lá existe, por que razão sujeitaria a mulher e os três filhos pequeninos ao terrível destino de refugiados num continente onde essa religião é minoritária e o fundamentalismo islâmico é criticado e punido?
E se fosse realmente um daqueles fundamentalistas que acreditam que têm de matar "infiéis", vendo-o a viver pacatamente no meio de cristãos só me lembra a cena do Rantanplan a morrer de sede em lugares cheios de água. Quem diria que o autêntico Rantanplan dos fundamentalistas islâmicos vinha parar a Portugal...
- "O criminoso vem de um país onde matar mulheres é tão comum como degolar uma galinha para almoçar."
- Então, pá, vamos ali degolar uma galinha para o almoço?
- Oh, hoje não me apetece muito. Vamos antes matar uma mulher qualquer, 'bora lá.
(Obrigada, Gato Fedorento.)
O que é que Maria João Marques sabe sobre o Afeganistão? Onde foi buscar essas informações sobre o assassinato de mulheres?
Dei uma vista de olhos por sites de informações. Fala-se, como é óbvio, da inaceitável opressão das mulheres (têm de usar burca na rua, não podem estudar nem exercer certas profissões, não podem sair de casa sem um familiar masculino, estão sujeitas a casamentos forçados desde tenra idade, etc.) mas pouco se fala em assassinatos. Li algures que só 14% dos civis mortos na guerra eram mulheres, li números sobre vítimas por violência doméstica, que eram sensivelmente o dobro dos números que temos em Portugal (parafraseando Marcelo Rebelo de Sousa: tendo em conta as afirmações de Maria João Marques, estava à espera de muito pior...). Também encontrei muitas notícias de protestos devido ao assassinato de mulheres pelos talibãs, onde cada uma delas é referida com nome e história. Pareceu-me um sinal claro de que, no Afeganistão, matar uma mulher não é assim tão banal como a Maria João Marques imagina.
O texto envereda então pelas preocupações com a estigmatização de certos grupos:
"Repetiram-nos à exaustão que o assassino tinha problemas psicológicos. Estigmatizar quem tem problemas de saúde mental já não tem problema nenhum. Como se a falta de saúde mental fosse indutora de violência contra terceiros."
Certo.
Só que agora os meios de comunicação social ficam com um problema: de cada vez que alguém cometer um massacre numa escola nos EUA, como é que se vai falar do caso sem estigmatizar quem tem problemas de saúde mental?
É que não se pode falar em falar em distúrbios mentais, e também não se pode dizer que se trata de um norte-americano branco heterossexual de família cristã, porque Maria João Marques ia logo queixar-se que esta maldita "esquerda paternalista" persegue o "homem branco heterossexual".
Assim, fica difícil dar notícias sobre as pessoas que cometem actos de violência como este. A não ser que seja um afegão - nesse caso, é muito fácil.
Maria João Marques insurge-se ainda mais contra "a humanização que fizeram do assassino."
Juro que não inventei nada, está mesmo escrito: "a humanização que fizeram do assassino."
Comenta assim: "Refugiado, com três filhos pequenos a seu cargo, fugiu da guerra, esteve num campo de refugiados na Grécia, morreu-lhe a mulher por essa altura. Coitadinho. Pobre diabo."
De testemunhos que ouvi, de filmes que vi, consigo imaginar um pouco desse inferno: uma famíia com três filhos pequeninos percorre milhares de quilómetros em condições inimaginavelmente precárias, perigosas e angustiantes; conseguem chegar à Europa, a um campo de refugiados em Lesbos - e todos sabemos o horror que é a vida das pessoas nesse lugar. Como se todo aquele sofrimento não fosse já bastante, um incêndio no campo mata a mãe.
Maria João Marques ouve a história do homem que passou por tudo isto, está a cuidar sozinho de três filhos pequenos e procura desesperadamente um emprego, e ri-se com desdém: "Coitadinho. Pobre diabo."
E irrita-se com os media que o "humanizam".
O texto continua: "Em suma, perante um assassino que reproduziu padrões preocupantes, os media ocuparam-se a dar-nos histórias da carochinha sobre o coitadinho que era o criminoso e os seus problemas psicológicos. De caminho, estigmatizaram quem tem problemas de saúde mental e demais refugiados."
Sim, relatar os factos conhecidos sobre esta tragédia no limite pode levar à estigmatização de quem tem problemas de saúde mental e dos demais refugiados (também pode acontecer que dê motivo para o nosso país levar essas questões mais a sério, ou ainda mais a sério). Para evitar a estigmatização desses grupos, Maria João Marques sugere que os media omitam o mais possível os problemas mentais e as histórias traumáticas de um refugiado, e cuidem antes de descrever o país do atacante em traços simplistas, exagerados e falsos. Isto sim, é muito melhor: apenas se estigmatizam todos os homens desse país.
E terá certamente a vantagem de não se dar "gás (muito inflamável) à extrema-direita"...
Por ironia do destino, ou se calhar porque isto de facto anda tudo ligado, algumas páginas à frente, na mesma edição do Público, Carmo Afonso chamava a atenção para o que está subjacente ao inenarrável tuíte com que o vira-casacas do Ventruja reagiu à notícia do ataque. Lembra que esse político é um oportunista e um sedutor, quer dizer, não diz aquilo que pensa, mas o que lhe parece que as pessoas querem que se diga abertamente no espaço público. Por isso, o tuíte que escreveu seria sinal de que em Portugal já há quem queira poder falar abertamente dos refugiados como uma ameaça para o nosso país. E ele, altruísta, chega-se à frente para "dizer as coisas como elas são"...
Por sorte, temos Maria João Marques que insiste em remar contra a maré e contra a retórica da extrema-direita, e nos vem ensinar pedagogicamente que o problema não são os refugiados (nem as pessoas com problemas mentais). São apenas os afegãos.
(Anota, Ventruja, que a tua musa inspiradora não dá presentes destes todos os dias.)
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Antes de terminar, quero ainda deixar uma menção honrosa para a frase:
"As pessoas pensantes percebem que, mesmo com a quantidade de migrantes, imigrantes e refugiados que temos recebido, continuamos um país extremamente seguro".
Aquela formulação, meu Deus!
"Mesmo com": duas palavras tão simples, e o tanto que revelam!
E: "as pessoas pensantes percebem", em vez de "as estatísticas mostram que".
Chapeau! Não é qualquer um que consegue dizer uma coisa e o seu contrário na mesma frase.
E, mais genial ainda: como se não bastasse, vai buscar dois grupos que não tinham nada a ver com o caso. Porque era mesmo o que faltava falar-se em segurança nacional e deixar de fora os outros grupos que "as pessoas pensantes" não podem associar a criminalidade. Vamos lá, toca a repetir para toda a gente se lembrar bem: ele são os refugiados, ele são os migrantes, ele são os imigrantes.
(Embrulha, Ventruja! Isto não é para quem quer, é só para quem sabe.)
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ADENDA
Trago do facebook um comentário que lá deixaram sobre este texto, que põe no seu devido lugar algumas coisas importantes:
Só depois da confirmação e avaliação oficial sobre se uma doença mental desempenhou de facto um papel mas motivações de um crime, aí, sim pode ser noticiado. Porque uma pessoa até pode ter uma doença mental e isso não ter nada a ver com o crime que cometeu.
Os ocs saltaram logo a atribuir o crime ora a terrorismo, ora a saúde mental sem saberem NADA.
Agora até já sabemos que este homem tem problemas de saúde mental, mas não foi ainda esclarecido a 100% se isso foi o motivo do crime. Como por exemplo sucedeu no caso do miúdo que queria atacar a faculdade de ciências: após avaliação, foi determinado que nem era terrorista nem foi a sua doença mental o levou a cometer o crime. É muito, mesmo muito, pernicioso saltar logo a explicar crimes com doença mental. A população com doença mental comete menos crimes que a geral, mas toda a gente acha que nos EUA os crimes são sempre um problema de doença mental, como se as pessoas com doença mental fossem bombas prestes a explodir. (Nos EUA - imo - há acima de tudo um problema grave de masculinidade tóxica e acesso fácil a armas... e tb de saúde mental, mas é preciso cuidado e rigor ao associar isso a um crime.)
Neste caso, é ainda precipitado tirar conclusões sobre o que realmente se passou e porquê… aguardemos….
(Sou uma super chata, eu sei )
(Adenda: Quanto ao artigo, é uma trapalhada. Não nos podemos insurgir contra uma estigmatização e defender outra. Enfim.)
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