30 novembro 2022

tudo isto existe, tudo isto é fado

A vantagem de escrever apontamentos sobre o que se vai vivendo é que, vinte anos depois, uma pessoa lê algo que já nem se lembrava que lhe tinha acontecido, e ri-se.
(Para a vantagem resultar, convém que, vinte anos antes, tenha escrito o apontamento num dia em que estava bem-disposta.)



Por exemplo, este aqui, de 2002:



Tenho um cliente, que aliás é o meu inimigo preferido no grupo dos clientes, que ontem me explicou que fala bastante bem espanhol e só não traduz os textos ele próprio porque não tem tempo, mas revê integralmente tudo o que traduzimos. 

Agora quer que eu lhe traduza um texto para Illacano, que eu descobri que afinal é Ilocano, ou Ilokano, e descobri um tradutor dessa raridade que quer mil dólares, mil, por página traduzida. Agora que escrevo isto aqui ocorreu-me que pode ter sido erro de digitação...

E já que estou com a mão na massa de contar cenas da vida do pessoal numa agência de tradução, conto as desventuras da minha colega francesa que tem de rever um manual que foi escrito em japonês, mal traduzido para o inglês, e depois enviado a dois tradutores franceses que não sabiam da existência um do outro e usaram terminologia diferente, e a minha colega teve de consertar as diferenças de terminologia e tentar adivinhar o que seria que o japonês escreveu que o inglês não entendeu. Por fim, a tradução foi enviada ao revisor do cliente, que veio com perguntas do género: porque é que essa palavra às vezes tem um s e às vezes não tem? Ou: o que significa a palavra "pourtant"? - e foi assim que concluiu que a tradução estava cheia de erros. Talvez estivesse, et pourtant de certeza que ele não os encontraria.


PS: para os interessados em aprender um novo idioma, Ilocano é um dialecto falado no norte das Filipinas. Não é preciso aprender a falar muito bem, porque o meu cliente, o tal que só não traduz ele próprio por falta de tempo, tem andado estes anos todos a pagar traduções para Ilocano cheias de erros. Pelo menos é o que diz o gajo dos mil dólares, também pode ser golpe, claro.

Ponho-me a olhar para o meu percurso, de brilhante estudante de economia até chegar a head-hunter de tradutores de Ilocano para um cliente merdolas, e descubro-lhe um sentido: um dia ainda escrevo um livro (a minha vida dava um filme...).

Só preciso de inventar um bom final feliz.


ADENDA (e a seguir fecho rapidamente o baú, que a minha vida de momento não pode ser isto):

Quero ter muitos tradutores como este!

Quero que todos os meus dias comecem desta maneira!

 

Ó aí: caí na asneira de mandar um contrato para um tradutor português que deve estar em fase de desemprego técnico (como ele próprio diz) e com tempo para ler o contrato e as entrelinhas, e quando chegou ao nome da língua ele deu com o célebre "Portuguese (continental)" e responde-me assim:

 

"Alô, Helena

 Có recebú o contráte. Fique f'liz pur vér quiu mê pertegués é continéntâl. Ê estava com méde qu'alguém descubrússe que, verdád, verdadúnha, ele é um pouque insúlár...

 Sénde o pertegués-padráon u usáde em África e na Oceanúa, bém séi que nom dá jeite chamar-lhe "érupéo"...

 Cumprúmétes,

XXXXX"

 



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