29 setembro 2022

notícias do meu russo favorito

 


Já não falo do Wladimir Kaminer há uns tempos. Nem sei que me parece, que negligência! Mas tenho dado boas gargalhadas a ler o livro dele "Como explico isto à minha mãe?": sendo certo que "todo o mundo é composto de mudança", como é que se explica a quem se habituou à ordem anterior que os tempos mudaram e essa mudança tem razão de ser?

Hoje, ao ler este texto no seu mural de facebook, ocorreu-me que seria mais um caso para o Speedy Gonzalez (já tinham saudades?). Aqui vai a tradução, rrrrrápida rrrrrrrápida: "A Alemanha e a Rússia estavam unidas por mil fios, projectos culturais comuns, e não apenas pelos fornecimentos de petróleo e gás. Programas Erasmus, intercâmbio de estudantes, exposições preparadas em conjunto, festivais culturais, digressões e concertos, tudo isso estagnou no início da guerra, as filmagens de produções cinematográficas feitas em cooperação com a Rússia foram interrompidas ou o seu resultado impedido de exibição. "Sente-se cancelado como autor russo?", têm-me perguntado frequentemente. Na realidade, sou um autor alemão, nunca escrevi em russo, mas nesta situação tive de assumir um papel que é novo para mim: o de russo não cancelado.

Foi nesse papel que me convidaram para ir a Dresden, à Biblioteca Estadual da Saxónia. Esta biblioteca foi vítima de uma campanha de fake news. Alguém se permitiu a gracinha de preparar um anúncio para espalhar na internet, com um apelo da Biblioteca Estadual à população, pedindo que lhe entregassem livros de autores russos para fins de aquecimento. Estamos perante um longo inverno gelado, diziam, não precisamos de ler os russos. Em troca, os leitores e as leitoras receberiam livros de autores alemães. Tudo aquilo era inverosímil. Desde já a ideia de que, algures no interior desta biblioteca, haveria uma central de aquecimento com um forno enorme onde dois membros do pessoal atiravam pazadas de livros às chamas dia e noite, com o rosto coberto de suor, era absurda. Mas o que soava como piada idiota foi tomado a sério por muitas pessoas. A direcção da Biblioteca recebeu milhares de mails, e foi alvo dos piores insultos e ameaças. O que não me surpreendeu, porque tenho visto que, no Leste da Alemanha, em cada casa há uma estante com livros de autores russos, todos têm um Chingiz Aitmatov, um Gogol ou um Bulgakov guardado, e embora o primeiro seja do Quirguizistão e os outros dois da Ucrânia, do ponto de vista dos cidadãos da RDA eram todos "autores russos".

Na RDA podia-se comprar livros russos na língua original que eram impossíveis de encontrar numa livraria de Moscovo. Os poucos turistas soviéticos que vinham visitar a soalheira RDA, regressavam a casa com uma pilha de livros, para além do licor de ovos e do paté. Com o passar do tempo, estes livros tornaram-se parte da identidade da Alemanha Oriental. A Biblioteca Estadual fez uma queixa-crime contra desconhecido, e convidou-me, na qualidade de autor russo, para mostrar que continua a apreciar os autores russos. Sujeitos preocupados perguntaram-me se a literatura pode melhorar o mundo. Nem por isso, respondi eu, não pode. No máximo, pode impelir algumas pessoas a reflectir e a mudar a sua perspectiva sobre algumas coisas. Tenho a certeza que se vão escrever muitos romances sobre este tempo louco, talvez eu escreva também um."


5 comentários:

Alexandra disse...

Aproveitando a sua „lembrança“, e declarando—me leitora voraz das suas escritas e do Wladimir Kaminer, a que alminha caridosa deveremos implorar para que o autor seja mais traduzido em português? As três únicas obras por cá publicadas, duas delas indisponíveis, sabem a tão pouco … obrigada por nos ir oferecendo as suas traduções.

Helena Araújo disse...

Quem me dera saber! Fazia já um abaixo assinado. :)
Por falar nisso: há dias li mais um dos textos do Kaminer que tenho de traduzir sem falta. A ver se arranjo tempo para o fazer.

Alexandra disse...

Muito obrigada! Pela simpatia, pela resposta e por disponibilizar os seus pensamentos vários . É um enorme gosto ler tudo o que escreve ( faço—o hà anos incontáveis , ainda nos tempos áureos dos blogues e que muito lhe agradeço nunca ter abandonado ); informa—me, diverte—me, cultiva—me e faz—me reflectir com qualquer „nada“ ou „tudo“ que passa para escrito.

Alexandra disse...

Muito obrigada! Pela simpatia, pela resposta e por disponibilizar os seus pensamentos vários . É um enorme gosto ler tudo o que escreve ( faço—o hà anos incontáveis , ainda nos tempos áureos dos blogues e que muito lhe agradeço nunca ter abandonado ); informa—me, diverte—me, cultiva—me e faz—me reflectir com qualquer „nada“ ou „tudo“ que passa para escrito.

Helena Araújo disse...

Obrigada, Alexandra. E agora me ocorre que ainda não traduzi o texto do Kaminer. Mas não vai ser hoje - o trabalho está complicado, de momento.