05 setembro 2022

já não se pode brincar com nada...


Por causa dos identitários, dos wokes, e sei lá de que mais gentes que se lembraram de nos vir questionar os hábitos, ouve-se muito o queixume de que agora já não se pode brincar com nada, porque há sempre alguém que se sinta ofendido.

Oh, como os compreendo! É que dá imenso trabalho, 1. abrir os olhos para o contexto da vida dos outros; 2. abrir os olhos para o modo como, do mais fundo da ignorância que nem nos damos conta que temos (como é da própria natureza da ignorância), mantemos vivo o discurso instalado de micro (ou macro) agressões que eterniza o mal-estar de alguns; e 3. renunciar a fazer piadinhas que nos parecem muito engraçadas.

É nesse processo que me encontro. Sobre o sofrimento daqueles que não pertencem ao que é sentido por todos como o "standard" da nossa sociedade, pouco sei. Tento abrir os olhos, a inteligência e a sensibilidade. Sei que me é impossível entender realmente como é a vida deles.

E tenho a certeza que quem se queixa de já não poder brincar com nada se lamuria assim porque também está apenas no início deste processo de tomada de consciência.

Para agilizar um pouco o processo, proponho uma experiência à escala nacional:

1. Combinamos que durante esses seis meses, o novo neutro gramatical é feminino: as trabalhadoras das empresas em vez de os trabalhadores, as funcionárias públicas em vez de os funcionários públicos, as alunas em vez de os alunos de uma escola. Se numa sala houver 99 homens e 1 mulher, fala-se em "elas". Um governo com seis ministros e seis ministras reune em conselho de ministras. Se virmos ao fundo da rua vários homens e uma cadela, dizemos que "elas estão a chegar". Isto, para começar, só para desinstalar um bocadinho.

2. Durante esses seis meses, tratamos os homens brancos sis com mais de quarenta anos como "homens velhos brancos". É fácil: basta comentar tudo o que dizem com um "pfffff... isso é mesmo típico de homem velho branco sis." E as mulheres?, perguntarão. Coitadas das mulheres! Para além de terem de suportar a falta de paridade salarial e de acesso a cargos de topo, os comentários sexistas e a menção à sua histeria natural, ainda vão sofrer imenso ao verem tratar os pais, os maridos, os filhos e os irmãos com esta falta de respeito. Sofrem por interposta pessoa, também aprendem. Depois, daqui a seis meses, voltamos a falar sobre esses chatos dos identitários, dos wokes, dos snowflakes, e revemos a queixa "ai que chatice, as pessoas sentem-se ofendidas com tudo e com nada".

(Foi um sonho de uma noite de verão, deixem estar, daqui a nada passa-me.)  

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