22 dezembro 2020

"galochas"

 


Quando eu tinha seis anos abriu em Braga o conservatório da Gulbenkian, que tinha escola primária (pelo menos, mas não me peçam para saber tudo, porque só tinha seis anos e só registei o que me interessava) e uma série de ofertas artísticas, entre as quais ballet e violino.
Matricularam-me na segunda classe, no violino (senhora professora: desculpe! a sério que não fiz de propósito para passar um ano inteiro sem atinar com a maneira de pegar no arco e no violino) e no ballet (senhora professora: desculpe! garanto que não foi por resistência ao regime que dei cabo daquela coreografia tão bonita da flor a abrir, e logo na cerimónia de inauguração, e logo em frente ao Marcelo Caetano!).
A minha mãe comprou-me a roupa adequada para aquela escola, inclusivamente o sapatinho luva e as meias azuis, e lá ia eu todos os dias no autocarro escolar que me vinha buscar a casa (senhor condutor: desculpe! se me atrasava quase todos os dias era por estar na cozinha a limpar o leite que viera por fora, porque me tinha distraído a dar a volta ao mundo pelos sulcos abertos no terrazzo do chão).
Aconteceu que num fim-de-semana de inverno os meus pais foram a Espanha (aquela interminável viagem de Braga a Tui) e trouxeram-me umas #galochas impecáveis, com um motivo em xadrez, do género destas da foto mas muito mais bonitas. Achei-as bem mais interessantes e práticas que os sapatinhos luva, e na segunda-feira seguinte calcei-as, toda contente, para ir para a escola. Quando entrei no autocarro, fui apanhada por uma gargalhada geral: as meninas-sapatinhos-luva apontavam para as minhas galochas e riam com toda a crueldade de uma terra pequena, provinciana, e com um rigoroso sistema de castas. Sentei-me no meu lugar ("no meu lugar"... 🙁 ), sentindo-me profundamente infeliz e furiosa (miúdas que frequentavam a segunda classe da escola da Gulbenkian em 1969/1970: desculpem que vos diga assim directamente, mas vocês eram mesmo inacreditavelmente mesquinhas; gostava de saber se 50 anos depois ainda continuam a ter sapatinhos-luva no lugar do coração).
Ano e meio depois mudámos para o Porto, e lembro-me de me sentir aliviada: o ambiente de Braga oprimia a miúda de oito anos que eu era.
Aliás: a miúda que sou. Mesmo agora, que vivo em Berlim, olho para Munique e penso que não seria cidade para mim. Tem demasiada gente tipo sapatinho-luva.
Viva a liberdade de usar galochas!
(E o mais que apetecer.)


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