"Mayflower in Plymouth Harbor," de William Halsall, 1882.
Foto: Pilgrim Hall Museum, Plymouth, Massachusetts, USA
A primeira vez que ouvi falar nos pilgrims foi alguns dias antes do primeiro Thanksgiving que passámos na Califórnia. Os miúdos tinham de ir para o infantário vestidos de pilgrims ou de índios, para festejarem a festa que uniu pessoas de povos tão diferentes: um momento de paz e amor!
No tempo em que eu própria frequentei o infantário, nos anos sessenta do século passado
(caramba! "nos anos sessenta do século passado"! é assim que uma pessoa se põe velha...)
também tínhamos brincadeiras de construção de identidade nacional, mas não eram de paz e amor, muito pelo contrário: cristãos a assaltar o castelo dos mouros. Os mouros estavam em cima das mesas, e os cristãos tentavam subir pelas cadeiras – até que uma das freiras reparava e ralhava connosco. Suspeito que não era por causa da falta de paz e amor, era mesmo só por ser perigoso.
No tempo em que eu própria frequentei o infantário, nos anos sessenta do século passado
(caramba! "nos anos sessenta do século passado"! é assim que uma pessoa se põe velha...)
também tínhamos brincadeiras de construção de identidade nacional, mas não eram de paz e amor, muito pelo contrário: cristãos a assaltar o castelo dos mouros. Os mouros estavam em cima das mesas, e os cristãos tentavam subir pelas cadeiras – até que uma das freiras reparava e ralhava connosco. Suspeito que não era por causa da falta de paz e amor, era mesmo só por ser perigoso.
Mas quem eram esses pilgrims homenageados no Forefathers' Day que se celebra a 21 de Dezembro?
Do que li neste site, parece-me que não seriam o tipo de pessoas com quem gostaria de me sentar a beber uma cervejinha – e nem eles gostariam de a beber comigo, verdade seja dita. Eram protestantes separatistas que se autodenominavam Santos e se afastaram dos Puritanos porque estes não lhes pareciam suficientemente radicais na sua decisão de ruptura com os pecados e a idolatria da Igreja Anglicana. Os Puritanos criticavam o modo como a nova Igreja mantinha certos erros da Católica, mas queriam reformá-la por dentro. Os Santos queriam fazer tudo de novo, e trataram de se pôr a andar para uma terra onde isso fosse possível, já que na terra deles ninguém lhes dava ouvidos.
Na sua incrível ingenuidade, começaram pela Holanda. Mal eles sabiam onde se foram meter! É certo que ali encontraram liberdade de culto. Mas – para além da enorme dificuldade de arranjar um bom trabalho de artesão, que estava proibido aos imigrantes - também encontraram outras liberdades que os incomodaram muito, porque lhes estavam a desviar os filhos para maus caminhos (These young people were “drawn away,” escreveu o líder separatista William Bradford, “by evill [sic] example into extravagance and dangerous courses.”).
Para fugirem também a esses maus e pecaminosos exemplos, decidiram ir para a América. Começaram por regressar a Londres, onde conseguiram autorização, por parte da Virginia Company, para se estabelecerem algures entre Chesapeake Bay e a foz do Hudson; por parte do rei conseguiram também autorização para se afastarem da Igreja Anglicana.
(O que me lembra um comentário que li há dias sobre o modo como os alemães fazem revoluções: se a revolução consistisse em invadir um comboio, os alemães começavam por comprar um bilhete de cais.)
Na sua incrível ingenuidade, começaram pela Holanda. Mal eles sabiam onde se foram meter! É certo que ali encontraram liberdade de culto. Mas – para além da enorme dificuldade de arranjar um bom trabalho de artesão, que estava proibido aos imigrantes - também encontraram outras liberdades que os incomodaram muito, porque lhes estavam a desviar os filhos para maus caminhos (These young people were “drawn away,” escreveu o líder separatista William Bradford, “by evill [sic] example into extravagance and dangerous courses.”).
Para fugirem também a esses maus e pecaminosos exemplos, decidiram ir para a América. Começaram por regressar a Londres, onde conseguiram autorização, por parte da Virginia Company, para se estabelecerem algures entre Chesapeake Bay e a foz do Hudson; por parte do rei conseguiram também autorização para se afastarem da Igreja Anglicana.
(O que me lembra um comentário que li há dias sobre o modo como os alemães fazem revoluções: se a revolução consistisse em invadir um comboio, os alemães começavam por comprar um bilhete de cais.)
Em Agosto de 1620, 40 Santos partiram de Plymouth em dois navios, juntamente com uma grande quantidade de outros viajantes bastante mais profanos, aos quais os Santos deram o nome de Strangers. Um dos navios começou logo a meter água, pelo que tiveram de regressar, meter toda a gente no navio que ainda estava bom – o famoso Mayflower - e zarpar de novo. A viagem já começou mal, e eles bem podiam ter tomado isso como um sinal dos céus, avisando-os de que não era boa ideia. Mas partiram, apanharam grandes tempestades, um dos Strangers foi varrido por uma onda e morreu no mar (comentário do William Bradford: “the just hand of God upon him", porque o jovem marinheiro era “a proud and very profane yonge man.”), enjoaram imenso, a viagem demorou muito mais tempo do que o previsto, e quando finalmente chegaram, em meados de Novembro, descobriram que estavam muito a norte da região onde tinham sido autorizados a instalar-se (fui verificar, e é longíssimo: 4 horas de avião).
Fizeram várias tentativas de descer para a Virgínia, mas não tiveram sucesso. E foi assim que no dia 21 de Dezembro se resolveram a ficar ali mesmo, e deram o nome de Plymouth àquele local, em homenagem ao porto do qual tinham saído. Mas antes, 41 Santos e Strangers entenderam-se sobre o governo na comunidade, com “leis justas e iguais para todos”, criando com esse “Mayflower Compact” as primeiras bases para uma democracia equalitária, que viria a influenciar outros colonos.
Instalaram-se numa zona onde houvera uma aldeia de indígenas, cujas ossadas ainda se viam pelo local. Não se sabe porque é que morreram tantos, e porque é que abandonaram a aldeia. Talvez tenham contraído doenças mortais para eles, trazidas por pescadores ingleses?
O primeiro inverno dos pilgrims no seu novo mundo foi terrível: a região era muito mais fria do que aquelas a que estavam habituados, não sabiam como tirar daquela terra congelada algo que se pudesse comer, não sabiam como pescar os bacalhaus que pululavam naquele mar, e foram dizimados por terríveis doenças. Só a ajuda dos indígenas da região fez com que a tragédia não fosse maior ainda. Mesmo assim, mais de metade dos viajantes morreu nesses meses. Das 19 mulheres que tinham embarcado, só 5 sobreviveram.
Estou a tentar controlar-me para não fazer ilações de ordem teológica, mas é difícil, porque estes Santos fundamentalistas que queriam recomeçar o mundo a partir do zero, sem ter de negociar nada nem fazer concessões a ninguém, e que são deixados a morrer de fome e de frio pelo seu Deus, dão um cenário muito apetecível para conclusões baratas. Adiante.
Estou a tentar controlar-me para não fazer ilações de ordem teológica, mas é difícil, porque estes Santos fundamentalistas que queriam recomeçar o mundo a partir do zero, sem ter de negociar nada nem fazer concessões a ninguém, e que são deixados a morrer de fome e de frio pelo seu Deus, dão um cenário muito apetecível para conclusões baratas. Adiante.
Com a ajuda dos indígenas as coisas acabaram por melhorar. Um ano depois, no Outono, Santos e Strangers festejaram a sua primeira festa das colheitas no novo continente, e convidaram os seus novos amigos locais. Não terá sido o primeiro Thanksgiving de europeus em solo americano, mas foi escolhido posteriormente para ser o primeiro Thanksgiving oficial, o tal que os meus filhos encenavam no infantário californiano. Uns anos depois, a história passou – infelizmente - a ser mais parecida com o meu infantário de freiras no Estado Novo: cristãos contra os outros, e ganham os cristãos. Juntando as invasões, os combates e as doenças trazidas pelos europeus, os indígenas norte-americanos têm poucas razões para romantizar da mesma maneira esses primeiros encontros entre europeus e habitantes da América do Norte.
Estes Forefathers multiplicaram-se de forma espantosa - dez milhões de descendentes seus nos EUA, 35 milhões no mundo inteiro - e deram origem a muita gente famosa: vários presidentes norte-americanos, a Julia Child e o Richard Gere, a Marilyn Monroe e o Orson Welles, e mais o Clint Eastwood, o Alec Baldwin, o Lee Harvey Oswald, a Amelia Earhart, o Humphrey Bogart, para citar apenas meia dúzia deles. Não sei como fizeram aquelas contas dos milhões, mas não me surpreendo que tenham descendentes famosos: entre tanta gente, algum havia de se evidenciar.
Por outro lado, se apenas cinco mulheres deram origem a dez milhões de norte-americanos, pergunto-me o que é que as outras todas estavam a fazer, que não tiveram a mesma produtividade.
(Não liguem, estou a divagar. Deve ser do adiantado da hora.)
Os Santos de Plymouth acabaram por ser absorvidos pelos Puritanos de Massachusetts, mas continuaram a acreditar que eles é que eram os escolhidos por Deus. Mais de um século depois, um grupo de cavalheiros criou o que se tornaria o mais antigo gentlemen’s club do Novo Mundo, e deu início às celebrações do Forefathers’ Day para homenagear esses fundamentalistas: “an occasion to highlight the great tradition of civil and religious liberty under God, bequeathed to our nation by the Mayflower Pilgrims”.
Os Santos de Plymouth acabaram por ser absorvidos pelos Puritanos de Massachusetts, mas continuaram a acreditar que eles é que eram os escolhidos por Deus. Mais de um século depois, um grupo de cavalheiros criou o que se tornaria o mais antigo gentlemen’s club do Novo Mundo, e deu início às celebrações do Forefathers’ Day para homenagear esses fundamentalistas: “an occasion to highlight the great tradition of civil and religious liberty under God, bequeathed to our nation by the Mayflower Pilgrims”.
Os governantes usariam a festa de Thanksgiving para unir o povo em volta de uma narrativa identitária e – no caso de Roosevelt – dar também uma ajudinha ao comércio, que bem precisava. (Enfim, precisa sempre...)
Esta narrativa dos heróicos pilgrims e dos seus amigos índios tem sido posta em causa, como acusa uma publicação ligada às comemorações do quarto centenário da chegada dos pilgrims à América: “For the 400th anniversary celebration, the Pilgrim story has largely been subject to revisionism within the mainstream media. Much of the new material, including those produced by the government-sponsored 1619 Project, posit an interpretation of Pilgrim history as the story of theft, genocide, and intolerance. The primary source materials reveal a very different reality. The result of this wave of anti-Pilgrim revisionism is that a generation of children have been taught to look with contempt on the Pilgrims and to regard even the celebration of Thanksgiving Day, as an homage to colonialism and bigotry.“
E assim vai a vida.
Tivesse o Mayflower trazido para o Novo Mundo os holandeses dos maus caminhos em vez dos pilgrims fundamentalistas, e talvez a História tivesse sido outra...
(Isto sou eu a brincar outra vez. Independentemente do país europeu de origem, estes encontros seriam sempre fatais para os indígenas.)
Quatrocentos anos mais tarde, o facto que se ergue - maior do que os restantes - ao encontro da História é o gesto humanitário daqueles indígenas que salvaram da morte certa aquele grupo de estrangeiros invasores espantosamente incompetentes. Infelizmente, é esse o aspecto menos celebrado no Forefathers' Day.
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