Se não tivesse visto, não acreditava. Porque é mesmo um daqueles casos de "quando a esmola é grande, o pobre desconfia". Mas é mesmo verdade, está neste vídeo (a partir de 00:20). O presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, diz o seguinte a propósito de um ucraniano que morreu às mãos de polícias do Estado português:
"Entendi que o Presidente de Portugal não devia pegar no telefone e ligar para a Ucrânia e abrir uma excepção sobre o procedimento em Portugal. Isso seria visto - o chefe de Estado de um país falar obviamente sobre o que tinha acontecido quando ainda o processo criminal estava a correr - como uma imiscuição na actividade de outras autoridades portuguesas e uma antecipação de juízo sobre aquela matéria."
Como disse? Imiscuição?! Antecipação de juízo sobre aquela matéria?!
Pensei imediatamente no escândalo do grupo NSU alemão, quando, em 2011, se descobriu que uma célula neonazi tinha andado durante uma década a matar aleatoriamente imigrantes turcos, sem que a polícia, os responsáveis políticos e a sociedade civil se dessem conta do que estava a acontecer, e se soube também que algumas actividades do terrorismo de extrema-direita eram financiadas com o dinheiro que os serviços de informação pagavam a informadores. Partilho aqui uma cronologia, assinalando com cor diferente os episódios de imiscuição e antecipação de juízo. O primeiro deles ocorreu duas semanas depois de a Alemanha começar a dar-se conta da gravidade da situação. Não quero com isto dizer que a Alemanha seja um modelo - dou simplesmente um exemplo de como não seria inédito um chefe de Estado pegar no telefone e ligar para os familiares de uma vítima quando o respectivo processo criminal ainda está a decorrer. E de como falar com as vítimas deve ser uma das prioridades do Estado quando apanhado em flagrante de terríveis falhas ao seu próprio Direito.
4.11.2011: Dois homens assaltam um banco. A polícia procura-os, e quando chega ao camper onde se encontram ouve dois tiros. O camper começa a arder. Lá dentro, estão os dois homens procurados, que se mataram depois de deitar fogo ao veículo. No mesmo dia, Beate Zschäpe - terceiro elemento do grupo - deita fogo ao apartamento onde viviam os três, e foge. Mais tarde dirá que o grupo tinha previsto um suicído colectivo caso estivessem em risco de ser apanhados pela polícia.
8.11.2011: Beate Zschäpe entrega-se à polícia depois de ter passado quatro dias a viajar de comboio sem destino nem plano.
No camper e no apartamento são encontradas muitas armas, entre as quais aquela com que foram assassinados nove imigrantes desde 2000, e ainda as armas de serviço de dois polícias que foram vítimas de um ataque (Michèle Kiesewetter morreu, o seu colega ficou gravemente ferido). Também havia listas com nomes e moradas de políticos e actores importantes da sociedade civil, bem como numerosos vídeos nos quais os autores dos atentados se vangloriavam dos seus feitos e faziam ameaças.
13.11.2011, e até 1.2.2012: A polícia prende vários suspeitos de estarem ligados a este núcleo de terroristas.
13.11.2011: O papel dos Gabinetes para a Protecção da Constituição (semelhante ao SIS) é duramente questionado pelos órgãos de comunicação social (aqui, em alemão), e muito em particular a acção do Gabinete da Turíngia, Estado onde viviam os terroristas. O jornal Süddeutsche Zeitung noticia que esses Gabinetes tinham 24 dossiers sobre este grupo, tinham vários agentes infiltrados no meio neonazi, e foram incapazes de descobrir o menor indício. Também refere que parte do (muito) dinheiro pago pelo Estado aos informadores era por estes usado para financiar actividades de terrorismo. Finalmente, levantavam a suspeita de haver alguém dentro dos Gabinetes para a Protecção da Constituição a proteger os três terroristas. Começa um aceso debate sobre estes serviços.
Por esta altura, a classe política alemã encontra-se em estado de choque. Dão-se conta de que, tal como a polícia, ignoraram sistematicamente a possibilidade de no país haver uma grave ameaça por parte da extrema-direita. A expressão "ser cego do olho direito" ocupa o lugar central do debate, mas é um eufemismo: o espantoso envolvimento de alguns serviços de informação estatais no sistema de extrema-direita é um sinal da prevalência no aparelho de Estado de uma certa cultura conservadora nacional com ligações ao extremismo de direita.
O debate sobre o funcionamento das instituições, a segurança, o racismo, a perda de confiança das comunidades de imigrantes no Estado alemão, o terrorismo de direita, etc., é acompanhado por medidas imediatas (meados de Novembro de 2011: criação de um arquivo central para estruturas e agentes neonazis), o estudo de uma reforma do sistema e até apelos para acabar com alguns dos seus vectores.
21.11.2011: No Parlamento Federal, os deputados fazem um minuto de silêncio em memória das vítimas. O presidente do Parlamento pede desculpa pelas suspeitas e pela hostilidade com que a polícia alemã tratou as vítimas e os seus familiares, e afirma que se sentia envergonhado pelo comportamento das forças de segurança. [Mais informações, inclusivamente tradução de parte deste discurso, neste post que escrevi na altura: "parlamento alemão pede desculpa às vítimas dos neonazis"]
23.11.2011: O presidente da República Christian Wulff recebe na sua residência os familiares das vítimas para uma conversa pessoal.
2.12.2011: É nomeada uma ombudswoman do governo federal para as famílias das vítimas, que rapidamente se dá conta das falhas graves do Estado no apoio financeiro a estas famílias.
Janeiro de 2012: "Döner-Morde" (homicídios dos kebab") é declarada a "Unwort de 2011", ou seja, a pior palavra do ano. A expressão fora cunhada pelas polícias e usada largamente pelos meios de comunicação social. Com a agravante de usar este nome no contexto de uma série de assassinatos, designar um grupo da população da Alemanha reduzindo-o a um dos seus pratos típicos é um acto de racismo que retirava gravidade aos crimes e discriminava as vítimas.
Janeiro 2012: É criada uma comissão parlamentar para investigar os crimes daquele grupo neonazi e o fracasso dos serviços de inteligência federais e estaduais que não os souberam evitar.
Paralelamente, decorrem investigações em oito parlamentos estaduais.
23.2.2012: Cerimónia solene do Estado em memória das vítimas no Teatro de Gendarmenmarkt, em Berlim. Merkel pede desculpa em nome da República Federal Alemã, e promete que tudo será feito para identificar os culpados e lhes dar o devido castigo. Promete ainda que se irá recorrer a todos os meios do Estado para evitar que tal possa voltar a acontecer.
Abril 2012: As cidades onde tiveram lugar os crimes dos neonazis emitem uma declaração comum: "Nove concidadãos que, com as suas famílias, tinham encontrado na Alemanha um novo lar, e uma mulher polícia. Estamos consternados e envergonhados por estes actos de violência terrorista não terem sido reconhecidos pelo que foram durante anos: assassinatos perpetrados por desprezo pelo ser humano. Afirmamos: nunca mais!" Este texto faz parte de memoriais que entre 2012 e 2014 foram construídos nessas cidades.
Junho 2012: A comissão parlamentar toma conhecimento da destruição de alguns dos dossiers que era imperioso analisar, levada a cabo na central do Gabinete Federal para a Protecção da Constituição. As famílias das vítimas abrem um processo contra os Gabinetes para a Protecção da Constituição Federal e da Turíngia, acusando-os de obstrução à Justiça. Muitos outros dossiers relativos à extrema-direita continuam a ser destruídos, mesmo vários anos após a descoberta do funcionamento escandaloso dos serviços de informação. Os processos jurídicos relativos às destruições continuam até pelo menos 2018.
2.7.2012: Heinz Fromm, presidente Gabinete Federal para a Protecção da Constituição, demite-se.
2.7.2012: Um jornal noticia que já em 2003 os serviços de informação italianos tinham avisado a Alemanha sobre a existência de um grupo de terroristas neonazis activo no país, e que essa informação foi ignorada pelas autoridades alemãs.
3.7.2012: Thomas Sippel, presidente do Gabinete para a Protecção da Constituição da Turíngia é afastado do cargo. Seguem-se o de Sachsen a 11 de Julho, o de Sachsen-Anhalt a 13 de Setembro, e a de Berlim a 13 de Setembro, bem como o vice-presidente do de Sachsen a 1 de Julho de 2013.
18.2.2013: O presidente da República Joachim Gauck convida familiares das vítimas para uma conversa. Vários dos convidados rejeitam o convite, em protesto por não terem sido convidados também os seus representantes: "Exigimos esclarecimento, e não consternação".
6.5.2013: Início do processo contra Beate Zschäpe e alguns cúmplices, que terminará cinco anos mais tarde, a 11.7.2018.
2.9.2013: A comissão parlamentar entrega o seu relatório. Reconhece erros graves dos serviços. Não consegue tomar posição sobre haver racismo estrutural ou institucional nas agências estatais. Também não consegue apurar os motivos para a destruição dos dossiers. O presidente Joachim Gauck assiste à sessão parlamentar sentado entre os familiares das vítimas. [Mais informações neste post que escrevi na altura: "a força de uma democracia não reside em ser perfeita, mas em saber corrigir os seus erros"]
Junho de 2014: Dez anos depois do atentado bombista na Keupstraße, o presidente da República Joachim Gauck participa num memorial e discursa para os 70.000 presentes da manifestação Birlikte.
14.10.2015: No Parlamento é pedida a criação de nova comissão parlamentar para investigar com mais detalhe o trabalho dos Gabinetes de Protecção da Constituição.
Junho de 2017: Familiares de duas das vítimas do NSU abrem processos de indemnização contra o governo federal, a Baviera e a Turíngia, por erros na investigação e o modo como a polícia os tratou. Mais processos estão em preparação, por parte de outros envolvidos.----
ADENDA:
Comentário de um amigo, no facebook:
"Convem acrescentar que não se deslindou um caraças e tudo caiu em águas de bacalhau. Foram destruidas actas e documentos. O papel das secretas ficou envolto em fumo, apesar de sabermos que um agente se encontrava, no momento de uma das execuções, no local. Testemunhas importantes morreram ou de hipoglicemia sem serem diabéticos, ou o carro em que seguiam entrou em autocombustão.
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