03 novembro 2020

um tema começado por K para o dia de hoje: "Keith Jarrett"

Hoje, na Enciclopédia Ilustrada, o tema a escolher tinha de começar por K.

Hesitei imenso, porque o mais adequado para este 3 de Novembro nos EUA era "Key Swing States". Mas seria isso o mais adequado para o grupo?

Finalmente, decidi que já temos "aicanervos" que chegue, e decidi propor antes "Keith Jarrett": para encher o nosso espaço de música e lembrar que há muito mais para além do horizonte deste dia.

Pouco depois a Cláudia Coimbra publicou este texto, que partilho aqui com sua autorização. Espero que gostem tanto quanto eu gostei.

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O problema das pessoas que vivem dentro de uma caixa e se fecham nela é que não expandem os seus conhecimentos sobre o mundo lá fora.

Já vos contei certamente pelo menos uma meia dúzia de vezes que, ao contrário das minhas muito competentes amigas com os mesmos 16 anos, eu não tinha plano estabelecido sobre o futuro - não queria ir trabalhar para a CEE, não pensava casar e ter um mar de filhos, não pretendia ser advogada, médica, vestir tailleurs de corte impecável e carteiras que fizessem virar cabeças ao passar pela rua, não supus ter uma boina na cabeça e sentar-me num café a ler literatura russa e ser feliz apenas com o dinheiro suficiente para uma bica diária no Chiado. Não tinha planos a não ser estes três: não falhar redondamente em tudo, sobreviver pelo menos até aos 30, tentar não perder filhos num qualquer corredor de supermercado. Esqueci-me de desejar coisas mais importantes. Estava focada no avesso da vida e não no lado de fora dela. Ainda estou.

Um dia fui surpreendida pela maternidade e, para mim, a coisa foi passada assim: cheguei perto de uma casa com uma porta enorme, semelhante à da minha escola primária em Celas ou à do Convento de Mafra mas não tão grande, e perguntei se também podia receber um embrulhinho. Não tinha a certeza do que pudesse estar lá dentro, mas fiz aquilo que era suposto fazer, pedir um embrulhinho. Eles avaliaram-me de alto a baixo, como se já existissem digitalizadores e, com a boca fechada e os lábios cerrados a qualquer vislumbre de sorriso ou complacência, suspiraram e entregaram-me um cesto. Foi assim que o meu primeiro filho chegou. Sem que ninguém ouvisse disse-lhe baixinho: vais ensinar-me a fazer bem, não vais?. A coisa não correu tão mal como eu esperava, ou os serviços estavam francamente lotados, porque 13 meses depois enviaram-me à mesma morada e, sem palavras de explicação, entregaram-me outra cesta. O primeiro nada tinha que ver com o segundo, a doçura apaixonante do primeiro era diferente em tudo da doçura apaixonante do segundo. Eram graus diferentes de açúcar. Secretamente fiquei feliz que fosse mais um rapaz. Qual era o meu grande problema na altura? Tentar disfarçar a mente errante, dar-lhes estabilidade sem que eu soubesse muito bem como é que isso se fazia. Eu não estava muito consciente das minhas competências, mas sabia perfeitamente e de cor a lista das minhas incompetências. Seria incapaz de cumprir horários, rotinas, a execução de sopas iguais, formas de fazer geometricamente idênticas, repetir gestos, cantarolar canções maternas, usar agendas para além de Março, desenhar gráficos de crescimento, construir álbuns fotográficos, registar conquistas de desenvolvimento. E os bebés precisavam de ritmos, de estabilidade. Então escolhi o meu disfarce perfeito: um álbum de música para cada um deles, que eu colocaria a tocar na hora que só a cada um deles correspondia - aí aconteceria tudo o que era realmente importante: a amamentação, as massagens, as brincadeiras calmas e mimos com risos, os banhos maravilhosos com o murmurar da água e os salpicos, as danças ao colo entre a luz coada pelas janelas, a leitura de livros em línguas que nem eles e nem eu entendíamos por vezes só para ouvir a sonoridade, os beijos em cada um dos dedos dos pés. E era uma espécie de local de encantamento. Eu subia ao sótão onde era o quarto, punha o álbum a tocar e eles reconheciam tudo, sabiam que era A Rotina da Estabilidade Essencial, mesmo que a hora não apontasse sempre as 13, ou as 19, ou os números desejáveis. O meu irmão tinha-me enviado num pacote postal, The Melody at Night, with You de #Keith_Jarrett. Era um álbum-milagre, que o compositor tinha lançado em 99 após um período de depressão - que seria da criação sem a melancolia? - e era em tudo o que precisávamos, o Luki e eu, nos primeiros dias de vida em Novembro, e depois, meses fora até à chegada da primavera imensa e mais além, já depois de ele conseguir palmilhar a casa e o jardim e descer e subir as escadas de rabo no chão e de perceber que sabia dar gargalhadas com o irmão.
[há 18 anos que não o oiço, vou fazer isso agora mesmo. adeus.]

PS: a capa do álbum é delicadíssima. Keith Jarrett queria oferecer um presente de natal à mulher pelo Natal e esteve, creio que terá começado em 1997, a criar o álbum no seu próprio estúdio e no seu próprio piano. É uma obra genial, delicadíssima como a imagem diz, com solos absolutamente incríveis.

PS2: é um life-changing album, por isso, preparem-se antes de o ouvirem: chá quente, copo de vinho, luz ideal. Ele consegue ser completamente truthful em relação à composição de cada música.



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