11 agosto 2020

tochas, máscaras brancas, e a escolha do número 8

No dia 7 de Agosto, o grupo "Resistência Nacional" publicou no youtube um vídeo com o seu símbolo, o título "o crepúsculo dos deuses" e música de Wagner, para anunciar isto:

8/8
2020

(para quem ainda não sabe: o H é a oitava letra do alfabeto, e 88 é um código para "Heil Hitler" nos grupos neonazis) 

O mesmo grupo publicou dias depois um vídeo sobre a manifestação que fez em Lisboa, na noite de 8.8.2020, em frente à sede do SOS Racismo: um punhado de franduleiros empunhando tochas e escondendo o rosto com uma máscara branca de teatro. A notícia vem no Públicoe é corroborada por, entre outros, um post que o próprio grupo pôs na sua página de facebook ("A sede do SOS Racismo recebeu hoje uma visita nossa. Obrigado a todos os que compareceram"), e pelo tal filme no youtube. Este abre com a simbólica data 8/8/2020, e acusa o SOS Racismo de "em vinte anos" não ter defendido "um único português"; depois avisa que não esquecem e não perdoam, e que isto é apenas o começo. Em comunicado, o mesmo grupo diz que "A acção consistiu numa vigilia em honra das forças de segurança mortas por "Jovens", mas que aos olhos do SOS Racismo nunca é racismo", que "Não causámos qualquer desacato ao contrário dos grupelhos antifa" (os neo-nazis alemães da campanha "os imortais" também se gabam muito disso) e que "o artigo 45 da constituição permite-nos estar em qualquer lugar a qualquer hora,sem necessidade de qualquer explicação ou autorização. Não agredimos ninguem nem partimos ou daníficamos seja o que for". (copiei os textos entre aspas sem corrigir a ortografia)

Perante estas caras brancas e estas tochas em frente à sede de uma organização anti-racista, a primeira ideia que nos vem à cabeça são as acções de intimidação do Ku Klux Klan. No entanto, as máscaras brancas e as tochas não vieram dos racistas dos EUA, mas dos racistas neonazis alemães. Deixo uma tradução rapidíssima da Wikipedia alemã sobre a campanha "os imortais":

"Os Imortais foi uma campanha conduzida por neonazis e realizada em toda a Alemanha. Semelhante a um flash mob, formava-se um número de até 300 participantes, que, usando máscaras brancas, na maioria das vezes à noite, com tochas, realizavam um desfile que se desintegrava após alguns minutos. Este método foi utilizado pela primeira vez pelo Spreelichtern, um grupo dentro do "movimento de resistência no sul de Brandenburgo", que foi proibido em Junho de 2012. Estas marchas eram seguidas de uma produção mediática através da Internet, que procurava alcançar um amplo impacto.

Durante as suas aparições inesperadas em festivais populares ou durante desfiles nocturnos, os activistas de extrema-direita usavam geralmente máscaras de teatro brancas. Marchavam pela área em formações de cerca de cinquenta a cem pessoas e cantavam slogans de extrema-direita. Normalmente desapareciam tão repentinamente como tinham chegado. As actuações nocturnas, em particular, faziam lembrar as procissões de tochas dos nacional-socialistas.

A máscara destinava-se a evitar que os indivíduos fossem acusados de acções ou declarações concretas. A intenção é assim semelhante à do Bloco Negro do Antifa ou dos "nacionalistas autónomos".

O que é novo nos Imortais, segundo o cientista político de Potsdam Gideon Botsch, "é que os extremistas de direita abriram novos meios de comunicação e novas formas de acção, e podem assim romper, até certo ponto, a sua marginalização por parte do mainstream."

A revista Stern também fez um artigo sobre este fenómeno (aqui, em alemão). No youtube encontram-se vários vídeos desses cortejos (os muito curiosos podem procurar por "die unsterblichen"), com as imagens manipuladas para parecerem muitos. A um deles juntaram a canção "das volk steht auf der sturm bricht los" do filme Kolberg (um filme de propaganda encomendado por Goebbels).

Voltemos a Portugal: o SOS Racismo apresentou queixa ao Ministério Público. Esperemos que a Justiça actue, pegue nas provas que o próprio grupo publicou na internet, e explique a esta gente que a intimidação também é crime. Nós cá estaremos para acompanhar este processo de perto e escrutinar.

Para além da Justiça, é imperioso que o Governo e a Presidência tomem uma posição sobre o assunto, e deixem muito claro que no Portugal democrático não se admitem manobras de intimidação, muito menos imitando os métodos do Ku Klux Klan e dos neonazis alemães.
Quanto à encenação propriamente dita: aquela dúzia e meia de párias fez a encenação não apenas para testar o sistema democrático português, mas também para tentar ganhar palco com imagens "vistosas" na net. Precisam de palco, e contam connosco para o ganhar: as imagens foram feitas para o nosso instagram, o nosso twitter, o nosso facebook. E é justamente por isso que não as partilho. Não deixo que usem o meu repúdio como elemento multiplicador de um palco que de outro modo não teriam. Essa gente não merece a fama - merece ser confrontada em tribunal com as leis do seu país, e receber a justa pena pelos crimes que comete. Por isso, temos de aprender a desprezar estas imagens que eles criam com o único propósito de lhes servirmos como departamento gratuito de marketing. Não daremos palco às imagens, mas divulgamos o abuso e exigimos do Estado democrático que faça respeitar os valores da Constituição.
--- A propósito, partilho dois textos, trazidos do mural de facebook do jornalista Ricardo Cabral Fernandes, que nos informam sobre o que está a acontecer em Portugal neste momento:
1. A extrema-direita está cada vez mais arrojada nas redes sociais, numa tentativa de espalhar medo e criar um clima de perseguição permanente. Há militantes seus a criar páginas dedicadas a identificar e denunciar pessoas associadas à esquerda. É mais um sinal de acompanhamento das tendências da extrema-direita vistas noutros países.
No início deste mês, foi criada no Facebook uma página chamada Piratas do Regime. O seu objectivo? Denunciar o marxismo cultural na sociedade portuguesa. Fotografias com os rostos de académicos, jornalistas e dirigentes de organizações de apoio a refugiados são acompanhados por pequenos textos em que se explica as razões de serem inimigos da pátria e ideólogos do anti-racismo na sociedade, principalmente no meio académico. Os alvos foram sobretudo académicos da Universidade de Coimbra, mas também houve do ISCTE-IUL, do Politécnico de Setúbal e da Universidade Nova de Lisboa.
As suas publicações, muitas das vezes com dezenas de partilhas, circularam em grupos da extrema-direita portuguesa e algumas tiveram centenas de 'gostos'. É como se as publicações fossem uma lista pública de alvos, algo comum entre a extrema-direita, olhe-se para a Alemanha, por exemplo. É intolerável em democracia.
Contrariando o "sucesso" que a página estava a ter, os administradores anunciaram que iria, "por agora", ficar adormecida, sem dar mais explicações. Mas, poucos dias depois, foi criada uma outra ferramenta com o mesmo objectivo, desta vez no Twitter.
Chama-se PIDE e na sua apresentação declara que tem o dever de "expor aqueles que estão activos em processos destinados a prejudicar os portugueses e os seus aliados europeus", para "ajudar na segurança do povo português e da sua nação".
Ao contrário dos Piratas do Regimes, esta nova página anónima parece agir de forma descentralizada, apelando aos seus seguidores para enviarem todo o material que puderem (fotos, textos, perfis, etc) sobre quem considerem uma ameaça para Portugal. E já se sabe o que querem dizer com isso.
A PIDE diz ter uma "cooperação com a Legião Portuguesa", não se sabendo se é humor, dado que as suas publicações têm essa característica, ou se é uma referência à organização criada depois de uma cisão da Nova Ordem Social de Mário Machado. Inclino-me para a primeira hipótese, mas não afasto a segunda. A conta não revelou até agora as identidades de pessoas associadas à esquerda, optando por denunciar os Antifa portugueses e as suas ligações ao Curdistão.
Na primeira vez que o vi, o Twitter da PIDE ainda tinha poucos seguidores (menos de 100) e não seguia ninguém. Até ao momento, os seus seguidores, entre os quais a Frente Nacional Portuguesa, usam contas com nomes a gozar e claramente associados à extrema-direita. Mas o número de contas "reais" está a aumentar, e sempre de pessoas associadas à fachoesfera.

2. Na calada da noite, duas dezenas de militantes de extrema-direita organizaram este domingo um protesto em frente à sede do SOS Racismo em "homenagem aos polícias mortos em serviço" e contra o seu "racismo anti-nacional". É o mais recente protesto contra a organização, depois de a fachada da sua sede ter sido vandalizada e recebido um e-mail com ameaças de uma recém-formada "milícia" de extrema-direita.
Este novo grupo, fundado no início de Julho, chama-se Resistência Nacional e é composto por antigos elementos da Nova Ordem Social, de Mário Machado, do Partido Nacional Renovador e por membros dos Portugal Hammer Skins. Também tem ligações a claques de futebol ilegais, como os 1143 do Sporting Clube de Portugal, e a apoiantes do Chega.
A militância de extrema-direita mais hardcore continua reduzida em Portugal e, portanto, é normal haver esta sobreposição de membros. Grupos nascem e morrem, fruto de divergências ideológicas e disputas de poder, para depois outros serem fundados, e os elementos vão circulando por este universo. É possível que daqui a uns meses este grupo acabe por definhar ou evolua para algo mais num país cada vez mais polarizado. Mas é de destacar o ganhar confiança e o uso de novas formas de protesto.
A organização está a tentar evitar a continuação das guerras que durante anos caracterizaram a extrema-direita portuguesa, tentando promover a unidade. “Não nos queremos sobrepor aos outros movimentos, nem nos interessam guerras internas do Nacionalismo no passado. Não interessa se és identitário, Chega, PNR, MON, NOS…”, lê-se numa publicação de Facebook. “Com todas as nossas diferenças, entendemos que o inimigo é a esquerda e os liberais. Mais ninguém! Basta de grupos e grupinhos, só com uma ponte de entendimento chegaremos a algum lado”.
A extrema-direita portuguesa tem nos últimos tempos tentado ultrapassar as suas divergências ideológicas e guerras de grupelhos, em grande parte incentivada pela entrada do Chega na Assembleia da República. Já houve dois encontros, um no Porto e outro em Lisboa, em Julho, com o objectivo explícito de se ultrapassarem as divergências – do segundo terá resultado a auto-denominada milícia Nova Ordem de Avis.
O objectivo da Resistência Nacional é, de acordo com uma fonte, organizar “protestos silenciosos” em frente a instituições que consideram anti-patriotas - vêem o SOS Racismo como "anti-nacional". É o mínimo denominador comum – o ódio ao SOS Racismo e aos Antifas é transversal – para uma certa unidade e, se assim for, é também um sinal de replicação de tipologias de protesto e estética vistos noutros países – as máscaras e tochas são objectos usados na Europa de Leste.
O grupo está a recrutar activamente, difundido propaganda pouco elaborada no YouTube, e organiza-se na rede social de mensagens encriptadas Telegram e no Facebook, onde tem uma página e um grupo onde abundam publicações racistas e favoráveis ao Chega. Também tem um fórum de discussão "dedicado a todos os nacionalistas portugueses". O clássico.
Um dos principais elementos da Resistência Nacional esteve vários anos emigrado na Bulgária, onde se integrou no circuito da extrema-direita búlgaro, e chegou a representar o Nova Ordem Social numa manifestação com mais de dois mil nacionais-socialistas em Sófia, em Fevereiro de 2019, em homenagem ao general pró-nazi búlgaro Hristo Lukok, assassinado por dois militantes antifascistas em 1943.
Não é a única relação internacional. A organização já está a tentar estreitar laços com outros países da Europa de Leste, nomeadamente com a Polónia. A organização anunciou que vai estar presente na marcha de extrema-direita do dia da independência polaco, a 11 de Novembro. É a maior marcha de extrema-direita na Europa e serve como ponto de encontro internacional. Porém, não é de esperar uma grande comitiva de portugueses, antes uns poucos para estabelecerem contactos, o que já aconteceu no ano passado.
A extrema-direita polaca é elogiada pela restante extrema-direita europeia, incluindo a portuguesa, por ter uma máquina muito bem oleada.


5 comentários:

DRD disse...

Obrigada Helena! Sinto-me tão envergonhada por estas manifestações ... É medonho ver como isto ainda acontece!

Cláudia Coimbra disse...

Well said.

Lucy disse...

Para ti e todos os que lutam vai parte do poema "Para os que virão" de Thiago de Mello

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente alguém
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo...


Noc@s disse...

Obrigada por ter exposto tão bem esta situação. Vou partilhar.

Helena Araújo disse...

Obrigada pelo poema, Lucy.
Vou partilhá-lo já.