10 junho 2020

Plomodiern



Confesso: foi por mero acaso que descobrimos Plomodiern: era a terra onde encontrámos o apartamento mais barato com vista para o mar. A praia de dois quilómetros em frente ao apartamento não nos pareceu nada mal. Na própria tarde em que chegámos percorremo-la de ponta a ponta. O regresso é que foi difícil, porque a maré subiu, e de repente todas as pessoas ficaram umas em cima das outras numa faixa estreita de areia. Vestimos os fatos de banho, e regressámos pelo mar.
Ainda temos de aprender algumas coisas sobre desconfinamento, praias e marés.  


Tínhamos a praia em frente à janela, e já teríamos ficado muito satisfeitos com o que tínhamos se não fosse o mercado da sexta-feira de manhã que nos atraiu ao centro da localidade, a uns bons 4 km da costa. Foi onde nos demos conta do que estávamos a perder enquanto pensávamos que o que tínhamos já bastava. Ao lado do mercado havia uma igreja impressionante, que não vinha em nenhum dos nossos guias turísticos. E ao lado da igreja havia uma padaria com kouign-amann em forma de rosa, que também não vi em lado nenhum e foi o melhor de todos os que comi até hoje. 

Já a caminho de Plomodiern tínhamos parado numa padaria em Argol, uma terrinha minúscula também ela fora do mapa turístico, e ficámos surpreendidos com a riqueza do  enclos paroquial. Um magnífico portal, em cujo centro se vê o rei Gradlon a cavalo. 

Há registos históricos sobre este rei, mas a lenda é muito mais interessante: apaixonou-se por Malgwenn, uma rainha do norte que era meio mulher meio fada. Tudo estava a correr bem para ambos quando Malgwenn se sentiu profundamente ofendida pela decisão dele de se converter ao cristianismo. Zangada, foi-se embora da vida dele por um rio de corrente perigosa. Gradlon lançou-se no seu encalço, e atirou-se ao rio apesar dos avisos dela para que não a seguisse. Ao vê-lo debater-se na corrente, ela sentiu-se obrigada a voltar atrás para lhe salvar a vida. Abandonou-o em seguida, furiosa por aquele sinal de que afinal ainda o amava. Muitos anos mais tarde Malgwenn voltou para desencaminhar Dahut, a filha que deixara a Gradlon. Pai e filha moravam na lendária, muito rica e ainda mais pecaminosa cidade de Ys, protegida das águas do mar por fortíssimas muralhas. No meio de tanto deboche, e de igrejas tão pouco frequentadas que as ervas lhes cresciam nos degraus, só o rei Gradlon mantinha uma vida pia  e regrada. A sua estouvada filha, em compensação, ganhou o hábito de atrair homens aos seus aposentos e obrigá-los a pôr uma máscara para não a verem durante os actos do amor. De madrugada, uma mola escondida na máscara mandava os amantes daquela para ainda melhor. O diabo, que estava à coca como sempre, seduziu a jovem e conseguiu que ela roubasse ao pai e lhe desse a chave de ouro que abria e fechava as eclusas que protegiam a cidade. Foi assim que as portas do mar se abriram e submergiram a lendária cidade de Ys, com a sua riqueza e o seu pecado. Aconteceu que, nessa noite, São Corentim era hóspede do rei, e ouviu o ruído da água a invadir as ruas. Acordou o rei e escaparam a cavalo. A meio da fuga o rei viu a filha, e puxou-a para cima do cavalo. O excesso de peso atrasava o galope do bicho, as águas estavam cada vez mais perto. São Corentim exigiu que o rei deixasse a filha para trás. Gradlon recusou. Determinado, São Corentim empurrou-a com o seu báculo. Dahut afoga-se nas águas que libertara, o rei salva-se no seu cavalo - e reaparece no portal do enclos paroissial de Argol, a tal cidadezinha fora de todos os guias turísticos que fica no caminho para Plomodiern. 




Moral da história: it's a men's world, é só o que vos digo. Quando as cenas metem água, numa a mulher salva o homem, na outra o homem deita a mulher a perder. É verdade que aquela Dahut não havia de ser flor que se cheirasse, mas também houve um grão-vizir que fazia mais ou menos o mesmo que ela, e o pior que lhe aconteceu foi arranjar uma mulher inteligente e lindíssima que lhe contava histórias antes de adormecer. Já a Dahut, coitada, parece que se transformou em sereia e anda pela baía de Douarnenez feita alma-penada. 
  
Entretanto, as primeiras conclusões para os turistas na Bretanha são estas: desconfiem dos vossos guias turísticos. Provavelmente não vos contam nem da missa a metade. E procurem as padarias centrais de todas as localidades por onde passarem: pode ser que descubram uma igreja quinhentista extraordinária. E bom kouign-amann.

A igreja do centro de Plomodiern é assim (e nós que só queríamos ir espreitar o mercado da terrinha...):








A beleza sóbria de granito desta igreja é animada pelas flores que crescem selvagens na sua fachada - e não pude evitar lembrar as ervas nos degraus das igrejas de Ys.
Serão sinal de um novo dilúvio prestes a despenhar-se sobre nós?



É aqui, em Plomodiern, que começa a história de São Corentim, e da sua relação com o rei Gradlon. São Corentim era um eremita no sopé do Menez Hom, e tinha num poço um peixe mágico: se o santo lhe tirava um pedaço para o almoço, em chegando à hora do jantar o peixe já estava outra vez como novo, pronto a dar mais um bocado. E assim sucessivamente, refeição após refeição. 
Um dia o rei Gradlon foi à caça para aqueles lados, e perdeu-se. Cheio de fome, foi bater à porta do São Corentim, que lhe deu uma boa posta do seu peixinho. Ficaram bons amigos. Anos mais tarde, depois de perder Ys e criar a nova capital, o rei agradecido viria a nomeá-lo para ser o primeiro bispo de Quimper, assim lhe dando entrado no clube dos sete santos fundadores.

São Corentim teve foi muita sorte de ter vivido naquele tempo, porque se fosse hoje, em vez de um lugar de bispo o que conseguia era um trinta e um nas redes sociais por andar a consumir o bicho em vez de o entregar à Ciência. 

Ora bem: isto sou eu a dar a minha opinião. Porque se em vez de ser para dar a minha opinião fosse para tentar perceber alguma coisa do que estou a falar, num instante descobriria que a imagem do peixe que se dá e não acaba nunca é, muito provavelmente, uma alegoria do cristianismo e da partilha do corpo de Cristo, que apresenta aqui ecos do milagre da multiplicação dos peixes. Suspeitaria que aquele bocado de peixe que São Corentim deu ao rei Gradlon marca simbolicamente a conversão deste ao cristianismo. E que aquela história de amores, desamores, desencaminhamentos e perdições do rei cristão e da rainha fada é uma metáfora dos desencontros no processo de cristianização dos pagãos.

Tudo isto é Plomodiern. E a praia: enorme. Linda. Cheia de medusas azuis, de estranhas algas que me pareceram a princípio restos de garrafas de plástico, centenas de gaivotas, milhões de pulgas da areia e um grupo de pilritos destemidos que procuravam o jantar na margem gentil da maré baixa. 








Num passeio descobri uma casa no topo da encosta sobre a praia, onde alugam a turistas um apartamento de terraço virado para a imensidão do pôr-do-sol. A casa da esquerda, na primeira fotografia que se segue, com a paisagem que se vê na segunda. E já sei onde quero ficar da próxima vez que voltar a Plomodiern.



E o tempo?, perguntarão. Tivemos direito a dias cinzentos e a dias radiosos. A vento, a chuva, a calor. Banhos de mar a uma hora, camisolas e casacos a outra. A variedade da paleta bretã. 






4 comentários:

Arthur Claro disse...

Que post lindo, lindas fotos, meus parabéns.

Arthur Claro
http://www.arthur-claro.blogspot.com

" R y k @ r d o " disse...

Ainda existem momentos bons na vida
.
Tenha um dia amoroso
Cumprimentos

Unknown disse...

A sra escreve bem e tem um belíssimosentido estético Obrigada pelapartilha dias felizes gostava de a conhecer.

redonda disse...

Imagens e histórias incríveis!