10 junho 2020

Île de Batz





Para o primeiro fim-de-semana depois do desconfinamento parcial - ou seja, quando fomos autorizados a ir além da distância de 1 km a que ficámos confinados durante dois meses - escolhemos a Île de Batz, ainda dentro dos 100 km da nova liberdade condicionada.

Preparámos o farnel e partimos de Brest para Roscoff. Chegámos ao porto a meio da manhã, mesmo à justa para a travessia. Como a maré estava muito baixa, o barco estava na ponta de um passadiço de 1 km que tivemos de percorrer a toda a velocidade. Por sorte - para nós - havia uma família com várias crianças, e  nenhum deles tinha máscara. Enquanto pedinchavam para os deixarem entrar, tivemos tempo de apanhar aquela carreira. A família ficou em terra. 

Há inúmeras ilhas na Bretanha, e cada uma tem características próprias. Batz é uma das que tem o clima mais ameno, o que torna possível haver nela plantas de países tropicais, e faz com que os produtos hortícolas da ilha possam ser colhidos cerca de um mês antes dos seus equivalentes do continente. A viagem de Roscoff até Batz demora quinze minutos. Mais não é preciso para chegar a um lugar paradisíaco.






Atravessámos o burgo adormecido, com as suas casas típicas de telhado de duas águas, passámos pelo largo da igreja, percorremos as ruas floridas ao deus-dará. 







Depois de passar a última casa, dirigimo-nos para sul, ao longo de enormes campos de alcachofras. Aqui e ali grupos de casas, moinhos abandonados ou convertidos em habitação, e ao longe, sempre de guarda e sinal, o farol da ilha. 




Chegámos ao mar (o que não é difícil numa ilha que tem 3,5 km de comprimento e 1,5 km de largura) e caminhámos pela encosta ao longo das praias de areia branca, em direcção a poente. As praias estavam praticamente desertas, e todas elas nos convidavam a parar. Escolhemos uma com um vasto areal, rematada por uma casa antiga com terraço. A casa, inicialmente destinada a guardar o barco e o material do centro do salvamento no mar, em algum momento foi convertida em habitação. Teria sido facílimo passar a vedação para nos sentarmos a almoçar nos seus bancos de madeira, mas optámos por respeitar a propriedade privada, e estendemos o nosso piquenique no murinho das escadas para a praia, do lado de fora do portão baixo.  
Por cima de nós viam-se os primeiros riscos brancos no céu: o regresso dos aviões. 





A meio do almoço vimos chegar um barco. Os seus ocupantes foram avançando pela praia na nossa direcção, como quem anda em passeio. Quando pararam mesmo à nossa frente estranhei escolherem justamente o nosso cantinho quando tinham a praia toda à sua disposição. Só depois é que percebi: eram os donos da casa! Mais uma vez se verifica que o respeitinho é uma coisa muito bonita: tivéssemos nós saltado a cerca baixa para almoçar confortavelmente nos bancos do terraço, e íamos passar a vergonha da nossa vida. 

Eles pediram desculpa por incomodar, mas precisavam de subir as escadas. Fizemos o distanciamento social que se pedia, e depois ficámos a conversar um pouco. 
- Como é que se arranja uma casa destas?, perguntei eu.
- Com imensa paciência, respondeu o dono. A dona era uma velhinha de mais de oitenta anos, e eu fui apalavrando a venda para quando ela decidisse que já não queria morar aqui sozinha. Aos noventa anos ela foi para um lar, e vendeu-nos a casa. Também precisámos de muita paciência para fazer as obras, mas está a valer a pena. 
Acrescente-se o Evangelho: felizes os pacientes, pois deles será uma casa de praia à porta dos céus. 


Depois do almoço e de um mergulho nas águas plácidas continuámos o passeio em direcção à costa norte. Esta é bem mais selvagem: praias com chão de pedras, e quase sem casas. 



Reparo agora que o post já vai longo e ainda não falei de santo nenhum. Não perdem pela demora! Também na Île de Batz há um santo, e é um santo de luxo - um autêntico dragon whisperer

Saint Pol Aurélien é um dos sete santos fundadores. Nasceu na Grã-Bretanha, onde se preparava para fazer uma boa carreira de clérigo quando Deus lhe apareceu numa visão, pedindo-lhe que fosse pregar para a Armórica. Tratava-se de combater o Pelagianismo, essa doutrina - considerada herética - de que as pessoas nascem sem pecado original, e cada uma é livre e capaz de se esforçar para conseguir a salvação eterna. Em suma, um caso sério da teologia cristã: o livre-arbítrio dos humanos nascidos sem pecado versus a graça divina que os salva do pecado original. 

A primeira paragem de Pol Aurélien foi na ilha de Ouessant, onde fundou um mosteiro num lugar a que chamaram Lampaul (em bretão: eremitério de Pol), mas a vida ali correu-lhe um bocado mal. No continente criou mais dois Lampaul (Lampaul-Plouarzel e Lampaul-Ploudalmezeau) com bastantes dificuldades. Já na ilha de Batz, numa região governada por um conde que era seu primo, os esforços do missionário foram mais bem recebidos, permitindo-lhe instalar-se facilmente e começar a fazer algumas curas milagrosas. A sua fama cresceu ainda mais quando salvou a população da ilha de um dragão carniceiro que lá vivia. A pedido do seu primo, Pol Aurélien foi ter com o dragão e pôs-lhe a sua estola à volta do pescoço. O monstro deixou-se conduzir docilmente até um rochedo (o "Trou du serpent", "Toull ar sarpant" em bretão - que se vê na fotografia abaixo) e, a um sinal do santo, atirou-se para as vagas. Nunca mais foi visto, e com ele foi também (isto agora sou eu a supor) a tal teoria do livre-arbítrio, atirada para fora de campo por muitos e muitos séculos.   
O primo ofereceu-lhe para residência Kastell Paol, uma antiga fortaleza romana. E o rei Childebert I nomeia-o bispo desse burgo, que virá a chamar-se Saint Pol de Leon (e hoje tem o melhor supermercado Leclerc que conheço, com uma secção de marisco inacreditavelmente boa - talvez o derradeiro milagre do santo).
Pol Aurélien acabou por delegar o seu trabalho a um discípulo, e retirar-se para o seu mosteiro na Île de Batz, onde viria a morrer santamente a 12 de Março de 594.



Saint Pol Aurélien não foi o único habitante famoso desta ilha. Também por lá andou no princípio do séc. XIX um corsário português: o destemido, belo, distinto e modesto António Balidar. Poderia contar muitas das suas extraordinárias façanhas no mar, mas fico-me pelo romântico detalhe do seu casamento com uma bela moça da cidade portuária onde comprou e mobilou sumptuosamente uma bela moradia, mandando inclusivamente trocar a balaustrada de ferro da varanda por uma de prata maciça. Mas: que pode fazer um homem que nasceu para o mar? Poucos dias depois do casamento, Balidar embarcou rumo a novas aventuras, deixando a sua jovem mulher na varanda de prata com o olhar perdido no horizonte.

Outro habitante famoso da ilha foi Yvez Trémintin, o lendário marinheiro bretão que nasceu em finais do séc. XVIII e morreu em 1862, depois de mais de oitenta anos de aventuras. Trago da Wikipedia dois relatos deliciosos da pena de Anatole Le Braz, a partir do que ouviu a um pescador da Île de Batz em 1895:

« Sur la prière des Ouessantins, il conta lui-même, tel qu'il l'avait entendu. Il montra le Panayoti entouré de barques ennemies, le pont envahi par les pirates. « Comment nous débarrasser de cette racaille, lieutenant ? ». « En les faisant sauter avec nous, Trémintin ». La soute aux poudres est ouverte, l'enseigne Bisson y lance un brandon enflammé. « Adieu Trémintin ! ». « Au revoir là-haut, lieutenant ! ». Un peu de fumée blanche, un fracas formidable, et voilà tout le monde en l'air. Trémintin cependant a eu le temps de faire le signe de la croix et de se recommander à Notre-Dame. Et maintenant, en route pour le Paradis !.. Mais le paradis ne veut pas encore de lui : après une tournée dans les nuages, il se retrouve au fond de la mer. L'eau salée, çà le connait, il est chez lui; un bon coup de jarret le ramène à la surface. Il s'ébroue, respire longuement, lève les yeux vers le ciel nocturne, piqué d'étoiles, et là-bas, devant lui, debout sur les vagues encore agitées par l'explosion, il voit se dessiner une svelte image de femme qu'à son accoutrement il reconnaît pour la Vierge de Roscoff. Elle sourit, incline la tête, semble lui crier : « Courage, Trémintin ! Tu reverras ton pays de Bretagne, et la flèche du Kreisker, et ta maison de l'Île de Batz ». L'apparition s'évanouit, mais au même instant, il sent sa figure frôlée par un cordage : c'est un bout de filin qui traîne à l'arrière d'une yole turque, fuyant à force de rames ; il s'y cramponne des deux mains et se fait remorquer jusqu'à terre. Il était sauvé. »

« Louis-Philippe, aux dires du conteur, témoignait un pressant désir de voir Trémintin et le mandait à Paris. Sa femme, Chaïk-Al-Lez21, insista pour l'accompagner : elle craignait pour lui les fatigues de la route, d'autant plus qu'en îlienne qui n'avait jamais quitté son île, elle s'imaginait Paris à l'autre bout du monde. Elle revêtit donc ses plus beaux atours, sa coiffe de fil de lin, l'ample jupe qu'elle ne portait qu'une fois l'an, le dimanche de Pâques, son tablier garni de dentelles et son petit châle de mérinos noir brodé de fleurs de soie ; puis tous deux prirent la diligence à Morlaix, munis d'un fort panier de provisions. Aux Tuileries, on leur fit l'accueil le plus chaleureux, et la bonne îlienne eut un succès presque égal à celui de son mari. Mais tous ces honneurs la troublaient sans la séduire. Et d'ailleurs, avec sa finesse de paysanne, elle eût bientôt remarqué que la flatteuse curiosité dont Trémintin et elle étaient l'objet n'allait pas sans quelque ironie. Impatientée, un peu froissée aussi, elle tira le pilote par le bord de sa vareuse et lui dit en breton : « Yvoun, déomp d'ar gér ! » (« Yves, retournons-en chez nous !». À quoi Louis-Philippe, se figurant avoir compris, se hâta de répondre : « Oui, oui, ma brave femme, vous pouvez être tranquille, nous l'enverrons encore à la guerre ». Vous pensez si Chaïk-Al-Lez rit fort à part soi de ce quiproquo, et si à l'Île de Batz, les commères en firent des gorges chaudes. La chose passa même en proverbe. Et l'on dit encore, dans le pays, de quelqu'un qui veut parler de ce qu'il ne sait pas, qu'il s'y entend à peu près aussi bien que le roi de France au breton. »   

Mas os meus habitantes favoritos desta ilha foram as mulheres sem nome que em 1905 se levantaram contra os gendarmes que vinham fazer o arrolamento dos bens da igreja do burgo. A história começara um século antes, quando, na sequência da revolução francesa, os bens da Igreja foram nacionalizados e passaram a ser geridos por organismos públicos, ficando aquela apenas com o seu usufruto. Um século mais tarde o governo decidiu passar a gestão desses bens para associações culturais, e mandou inventariar o que havia em cada um dos edifícios religiosos. Os crentes - nomeadamente aqueles que no período pós-revolução tinham pago do seu bolso novos edifícios e respectivo recheio para a sua comunidade - sentiram aquele inventário como um preparativo para a espoliação, e prepararam a resistência ao poder do Estado. A Bretanha, com uma sólida tradição de reserva e desconfiança em relação ao poder central - que por várias vezes tomara decisões nefastas para a economia regional, e tivera inclusivamente a petulância de impor a proibição de falar o bretão para abrir caminho à unificação linguística dos franceses -, foi uma das regiões que mais se opôs à realização desses inventários. 
Na Île de Batz os gendarmes chegaram quando a maioria dos homens andava na pesca. Foram recebidos por um grupo constituído maioritariamente por mulheres, que barrava o caminho para a igreja gritando "viva a liberdade!". Seguiram-se cenas de grande violência, um dos gendarmes partiu a perna direita a Madame Chapalain, de 45 anos e mãe de 15 filhos, e foram feitos vários prisioneiros. As portas da igreja e da sacristia, firmemente barricadas por dentro, foram arrombadas. E o triste inventário acabou por se fazer. 

 
Volto ao nosso passeio, deixando para trás a rocha de onde o dragão de Saint Pol Aurélien se lançou ao mar, no extremo ocidental da ilha. A Île de Batz espraia-se para norte e leste em terrenos agrícolas, protegidos dos ventos marítimos por cercas vegetais densas. Ainda hoje se mantém a divisão tradicional dos trabalhos: as mulheres recolhem algas do mar e tratam da horta, os homens pescam e lavram os campos. Na nossa época algumas tarefas estão facilitadas pelo uso de tractores - e parece-me que há muitos mais tractores que carros na ilha. Também há algumas lojas que alugam bicicletas aos turistas, que naquela fase do desconfinamento ainda estavam fechadas. 



Não sendo grande, a Île de Batz tem muitas curvas e contracurvas, pequenas subidas e pequenas descidas, caminhos de pedras e caminhos de areia. Tudo isso, adicionado ao calor pouco habitual que houve neste princípio de Maio de 2020, fez com que já não tivéssemos força para ir até ao seu extremo oriental, onde há algumas praias bonitas, as ruínas de uma capela milenar, e o jardim tropical Georges Delaselle. 

Antes de nos pormos a caminho do porto parámos numa praia para lanchar e descansar um pouco. Nas arribas da praia, mesmo por trás dos pedregulhos onde nos sentámos, havia ninhos de andorinhas. Comemos o que restava do nosso farnel ao som do restolhar rápido dos pássaros sobre as nossas cabeças. Podia ser um filme de Hitchcock, mas era mais tipo David Attenborough: à nossa frente, alguns patos-brancos nadavam no mar, em convívio pacífico - ou indiferente - com os ostraceiros empoleirados nas rochas.



No porto, enquanto esperávamos o nosso barco, vimos passar um pescador exibindo um lavagante acabado de pescar. Compramos? Não compramos? Vendeu-o a outros turistas, os que se mostraram menos hesitantes.
Mais longe, as casas e a igreja despediam-se de nós. 

Fizemos a travessia já com pena de deixar a ilha. Temos de voltar - tanto mais que viemos depois a saber que a célebre estola que domesticou o dragão está exposta na igreja, e é mais um dos milagres do Saint Pol Aurélien: ele viveu no séc. VI, mas a estola, feita de um valioso tecido importado do Oriente,  é do séc. VIII. Aleluia!



Roscoff recebeu-nos iluminada pelo sol do entardecer, mas preferimos não entrar na cidade porque os turistas que enxameavam as ruas junto ao porto nos pareceram um exagero de gente. Dois meses quase sem sair de casa, com passeios curtos em ruas e parques desertos, tornaram-nos muito mais sensíveis à densidade de ocupação dos espaços públicos.
 


Regressámos a Brest com a convicção de que nesse dia tínhamos estado na nossa ilha favorita da Bretanha. Mesmo sem conhecer nenhuma das outras. 


[Para ver melhor as fotografias: clicar na primeira imagem]

1 comentário:

redonda disse...

As fotografias são lindíssimas.
Fiquei a pensar que gostaria muito de um dia ir passear por aí.