Dois posts sobre "querubim", no dia em que foi esse o tema na Enciclopédia Ilustrada:
1.
Na aldeia da minha avó havia uma família com mais de uma dúzia de filhos, e um deles era o Curbínhe.
Eu também dizia Curbínhe - como os irmãos dele com quem brincava na rua
- mas depois, quando regressava à cidade, perguntava-me se o nome seria
Curvim.
Só muitos anos mais tarde caiu a ficha: o nome era, claro, #Querubim.
2.
Quando eu era miúda não havia cá Bíblias para crianças, com figurinhas
simpáticas e texto acessível. Deram-me o original: servido do púlpito
aos domingos e dias santos, e também na catequese, num embrulho de medo e imposições. Já o meu marido, que foi criança na mesma
época mas a alguns anos luz de mim, tinha uma Bíblia para crianças que
era um luxo, com desenhos de Kees de Kort que me deixam verdinha de
inveja das infâncias alemãs dos anos 60. Partilho uma das suas imagens,
uma Anunciação, com o anjo Gabriel (infelizmente o Kees de Kort não
desenhou nenhum #querubim).
Como ia dizendo: quando eu era miúda, a minha Bíblia era toda
oralidade, e eu imaginava as cenas. Os querubins do Génesis, por
exemplo, que Deus deixou a guardar a porta do Jardim do Éden depois de
ter expulso Adão e Eva naquele estado de indigência e folhas de parra.
Quantas vezes imaginei o casal, com uma mão à frente e outra atrás, a
olhar para os querubins mal encarados que os impediam de regressar aonde
tinha sido tão felizes: “pôs querubins a oriente do jardim, os quais
com uma espada de fogo guardavam o caminho de acesso à árvore da vida.”
(agora ia falar do George Lucas, por causa daquela espada de fogo, mas
adiante)
Para além dos
securitas do paraíso, há outros querubins na Bíblia. Alguns são
descritos de tal forma que rebentavam os fusíveis aos meus neurónios
infantis: “e no meio do fogo havia quatro vultos que pareciam seres
viventes. Na aparência tinham forma de homem, mas cada um deles tinha
quatro rostos e quatro asas. Suas pernas eram retas; seus pés eram como
os de um bezerro e reluziam como bronze polido. Debaixo de suas asas,
nos quatro lados, tinham mãos humanas. Os quatro tinham rostos e asas, e
as suas asas encostavam umas nas outras. Quando se moviam andavam para a
frente, e não se viravam. Quanto à aparência dos seus rostos, os quatro
tinham rosto de homem, rosto de leão no lado direito, rosto de boi no
lado esquerdo, e rosto de águia. Assim eram os seus rostos. Suas asas
estavam estendidas para cima; cada um deles tinha duas asas que se
encostavam na de outro ser vivente, de um lado e do outro, e duas asas
que cobriam os seus corpos.” Ezequiel 1:5-11 (ainda está aí alguém, ou
já desistiram de continuar a ler?)
Mais à frente no livro de
Ezequiel acontece a tragédia: um querubim mete-se na má vida e cai em
desgraça (Ez., 28, 14 e seguintes). É Lúcifer, bem nosso conhecido
(apenas de nome, claro, claro...).
Sendo isto o que a Bíblia revela sobre os
querubins, alguém faça o favor de me explicar como é que os seres
celestiais da primeira hierarquia, classificados logo abaixo dos
serafins, acabaram a ser confundidos com os putti? Que confusão terá
andado nas cabeças renascentistas e barrocas que fizeram a troca? Bem
sei que nessa época o trabalho infantil ainda não era crime, mas é
preciso ver que os querubins têm funções de muita responsabilidade, que
não é para ser feito por crianças: guardar o paraíso, carregar o trono
divino, ou (na tradição islâmica) interceder junto de Deus e proteger
os justos.
Tivessem esses artistas renascentistas e barrocos
frequentado a minha missinha, e continuariam a pintar querubins como
deve ser e se fazia tão bem na Idade Média. Mas não – em vez de darem
ouvidos a quem sabe (o padre da aldeia da minha avó!), puseram-se com
liberdades criativas e poéticas...
Depois queixam-se que a
Inquisição tal e coisa, mas, convenhamos, alguém tinha de pôr ordem na
casa! Que pelo caminho que a coisa levava, está-se mesmo a ver que um
dia a coisa descambava de vez, e algum artista ainda havia de se lembrar
de confundir Jesus com um judeu. Era o que mais nos faltava...
1 comentário:
É estranha a ambiguidade da definição do querubim, por um lado como guarda do jardim do Éden com uma espada de fogo, por outro como anjinhos com umas asinhas, género bébé alado, que é a mais comum para os tempos de hoje.
No meu blogue (passe a publicidade) tenho 3 posts sobre anjos, dois sobre serafins e um sobre arcanjos (Arqui-anjos):
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2016/02/os-serafins-da-igreja-de-santa-sofia.html
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2016/02/igreja-de-roma-e-igreja-de-moscovo_16.html
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2012/11/arcanjos.html
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