07 fevereiro 2020

"querubim"

Dois posts sobre "querubim", no dia em que foi esse o tema na Enciclopédia Ilustrada:

1.
Na aldeia da minha avó havia uma família com mais de uma dúzia de filhos, e um deles era o Curbínhe.
Eu também dizia Curbínhe - como os irmãos dele com quem brincava na rua - mas depois, quando regressava à cidade, perguntava-me se o nome seria Curvim.
Só muitos anos mais tarde caiu a ficha: o nome era, claro, #Querubim.

2.
Quando eu era miúda não havia cá Bíblias para crianças, com figurinhas simpáticas e texto acessível. Deram-me o original: servido do púlpito aos domingos e dias santos, e também na catequese, num embrulho de medo e imposições. Já o meu marido, que foi criança na mesma época mas a alguns anos luz de mim, tinha uma Bíblia para crianças que era um luxo, com desenhos de Kees de Kort que me deixam verdinha de inveja das infâncias alemãs dos anos 60. Partilho uma das suas imagens, uma Anunciação, com o anjo Gabriel (infelizmente o Kees de Kort não desenhou nenhum #querubim).



Como ia dizendo: quando eu era miúda, a minha Bíblia era toda oralidade, e eu imaginava as cenas. Os querubins do Génesis, por exemplo, que Deus deixou a guardar a porta do Jardim do Éden depois de ter expulso Adão e Eva naquele estado de indigência e folhas de parra. Quantas vezes imaginei o casal, com uma mão à frente e outra atrás, a olhar para os querubins mal encarados que os impediam de regressar aonde tinha sido tão felizes: “pôs querubins a oriente do jardim, os quais com uma espada de fogo guardavam o caminho de acesso à árvore da vida.”
(agora ia falar do George Lucas, por causa daquela espada de fogo, mas adiante)

Para além dos securitas do paraíso, há outros querubins na Bíblia. Alguns são descritos de tal forma que rebentavam os fusíveis aos meus neurónios infantis: “e no meio do fogo havia quatro vultos que pareciam seres viventes. Na aparência tinham forma de homem, mas cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas. Suas pernas eram retas; seus pés eram como os de um bezerro e reluziam como bronze polido. Debaixo de suas asas, nos quatro lados, tinham mãos humanas. Os quatro tinham rostos e asas, e as suas asas encostavam umas nas outras. Quando se moviam andavam para a frente, e não se viravam. Quanto à aparência dos seus rostos, os quatro tinham rosto de homem, rosto de leão no lado direito, rosto de boi no lado esquerdo, e rosto de águia. Assim eram os seus rostos. Suas asas estavam estendidas para cima; cada um deles tinha duas asas que se encostavam na de outro ser vivente, de um lado e do outro, e duas asas que cobriam os seus corpos.” Ezequiel 1:5-11 (ainda está aí alguém, ou já desistiram de continuar a ler?)


Mais à frente no livro de Ezequiel acontece a tragédia: um querubim mete-se na má vida e cai em desgraça (Ez., 28, 14 e seguintes). É Lúcifer, bem nosso conhecido (apenas de nome, claro, claro...).

Sendo isto o que a Bíblia revela sobre os querubins, alguém faça o favor de me explicar como é que os seres celestiais da primeira hierarquia, classificados logo abaixo dos serafins, acabaram a ser confundidos com os putti? Que confusão terá andado nas cabeças renascentistas e barrocas que fizeram a troca? Bem sei que nessa época o trabalho infantil ainda não era crime, mas é preciso ver que os querubins têm funções de muita responsabilidade, que não é para ser feito por crianças: guardar o paraíso, carregar o trono divino, ou (na tradição islâmica) interceder junto de Deus e proteger os justos.

Tivessem esses artistas renascentistas e barrocos frequentado a minha missinha, e continuariam a pintar querubins como deve ser e se fazia tão bem na Idade Média. Mas não – em vez de darem ouvidos a quem sabe (o padre da aldeia da minha avó!), puseram-se com liberdades criativas e poéticas...

Depois queixam-se que a Inquisição tal e coisa, mas, convenhamos, alguém tinha de pôr ordem na casa! Que pelo caminho que a coisa levava, está-se mesmo a ver que um dia a coisa descambava de vez, e algum artista ainda havia de se lembrar de confundir Jesus com um judeu. Era o que mais nos faltava...

1 comentário:

jj.amarante disse...

É estranha a ambiguidade da definição do querubim, por um lado como guarda do jardim do Éden com uma espada de fogo, por outro como anjinhos com umas asinhas, género bébé alado, que é a mais comum para os tempos de hoje.

No meu blogue (passe a publicidade) tenho 3 posts sobre anjos, dois sobre serafins e um sobre arcanjos (Arqui-anjos):
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2016/02/os-serafins-da-igreja-de-santa-sofia.html
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2016/02/igreja-de-roma-e-igreja-de-moscovo_16.html
- https://imagenscomtexto.blogspot.com/2012/11/arcanjos.html