19 fevereiro 2020

Berlinale 2019 - nono dia







Ao nono dia houve greve dos transportes públicos e o frio aproveitou para se mostrar em todo o seu esplendor. As plantas no jardim da Haus der Kulturen der Welt enregeladas, o Tiergarten com ainda mais ciclistas que de costume. Sossego no topo da Potsdamer Platz, no Berlinale Rooftop.




Amazing Grace, de Alan Elliott a partir de uma gravação feita em 1972. Inesquecível, tocante, de nos deixar a pairar sobre o abismo algures dentro de nós: a força e a alma de Aretha, a força e a alma do gospel.
O meu problema é o filme de Agnès Varda me estragou: estava condicionada pela sua explicação dos trípticos. Passei o filme inquieta por me terem filmado aquela polifonia sem planos paralelos: a cantora, o maestro, o Cleveland, o coro, o público. E pensei nessa falha com tamanha intensidade, que lá para o fim do filme mudaram, e começaram a mostrar - ao menos isso, vá - dois planos lado a lado: Aretha e Cleveland.




Flesh out, de Michela Occhipinti. O corpo da mulher, esse eterno campo de batalha, desta vez no contexto de uma tradição da Mauritânia: engordar as mulheres antes do casamento. Com imagens belíssimas e um excesso de comida capaz de atirar qualquer espectador para a bulimia, o filme mostra uma jovem mulher dividida entre o mundo moderno, as tradições que a sua família ainda lhe impõe, e a maldita balança para a qual oitenta quilos são sinal de mulher demasiado magra.




The day after I'm gone, de Nimrod Eldar. Um filme sobre o impasse de um pai perante o sofrimento da filha que se quer suicidar, e talvez também sobre o impasse de um país, Israel, a viver um processo autodestrutivo - de que a tensão que atravessa as cenas passadas no colonato é o sinal mais evidente.




2040, de Damon Gameau. O realizador australiano começa por se perguntar como será o mundo da sua filha em 2040, quando ela chegar à idade adulta, e tenta dar uma resposta optimista: como pode ser o mundo da sua filha se começarmos hoje mesmo a usar os recursos que já temos à nossa disposição.
Alguns exemplos: regenerar a natureza / car sharing / carros eléctricos autónomos / transformar o espaço excessivo de estacionamento em área verde (2/3 de Los Angeles é espaço de estacionamento) / telhados verdes / jardins públicos com legumes e frutos / mais jardins e parques no centro das cidades /  agricultura biológica para melhorar a qualidade da terra e reter dióxido de carbono / reduzir a agro-indústria, de cuja actividade só 20% se destina directamente à alimentação humana - o restante é destinado à produção de animais / pasto para animais / usar as algas como alimento e retenção de dióxido de carbono / reabilitação da vida marinha / redes locais de electricidade / lixo biológico: captação de metano para produzir energia e adubo biológico / etc.
Algumas das propostas pareceram-me pouco credíveis mas, à distância de um ano, o conjunto pareceu-me uma boa sugestão para começar a agir imediatamente.
Hoje, contudo, parece-me que este filme já está a anos-luz da realidade do planeta. É preciso muito mais que isto, e muito mais do que a simples boa vontade dos cidadãos, para impedir que o planeta se aproxime ainda mais dos pontos de não retorno.





African mirror, de Mischa Hedinger. Usando o exemplo das imagens e das palestras do suíço René Gardi sobre África, Mischa Hedinger mostra como se construiu na Europa um certa ideia dos africanos predeterminada pelos produtores de imagens.
O debate com o público foi extremamente acesso, quase violento, porque algumas pessoas se sentiram agredidas pelo tom demasiado neutro do documentário, que se limita a repassar as imagens originais sem comentário. Outros participantes no debate insistiam que o público não precisa de legendas para ver o que é evidente, ao que muitos faziam notar que o racismo daquelas imagens não é tão evidente como alguns possam pensar, uma vez que estamos por demais habituados a elas.
Também me parece que o filme é demasiado neutro, e que a referência à acusação de abuso sexual de menores que foi feita a René Gardi é um desvio ao que devia ser o tema central do documentário: o modo como a Europa construiu a sua imagem de África e dos africanos, e as consequências que se prolongam até ao nosso tempo e para além dele.


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