29 maio 2019

para quem pensa que a reunificação alemã já está concluída (2)


(fonte: Spiegel)


O post anterior suscitou duas perguntas no facebook:

- O que é a AfD?
- "O homem novo do socialismo é neo nazi? A forma como foi feita a reunificação explica tudo? Quer dizer, a revolta contra o capital sem ética leva à AfD?"
Não sou jornalista nem especialista de análises sociais. Limito-me a relatar o que tenho observado nestes anos que tenho vivido na Alemanha, para onde vim viver em 1989, três dias antes da queda do muro.

1. A AfD é a "Alternativa para a Alemanha", o partido populista de extrema-direita que nasceu na internet, começou por ser contra o euro, depois optou por ser contra os refugiados porque viu que o tema euro não lhe dava votos. Alguns dos seus dirigentes fazem afirmações que provocam sempre enorme comoção no país (ideias como: se for preciso, defenderemos as fronteiras da Europa a tiro; ou: os alemães têm o direito de se orgulharem da sua gloriosa História - o período nazi foi apenas uma cagadela de pássaro que não deve ofuscar o resto). Uma vez ditas, estas frases instalam-se no debate público e muitas pessoas sentem-se autorizadas a baixar ainda mais o limiar da decência.
Os refugiados, que não chegam a 2% da população,
não são propriamente um problema para a Alemanha, mas a AfD soube incutir medos e capitalizar invejas para conquistar eleitorado, e conseguiu transformar um não-problema numa questão central para quase todos os partidos. A coligação CDU/CSU foi profundamente abalada e castigada por isso, enquanto a opção dos Verdes de se manterem à margem dessa discussão foi muito premiada por parte do eleitorado nas últimas legislativas. 


2. O mapa mostra como a AfD se instala na região da antiga RDA, e faz-me imediatamente pensar
no nome que se dava ao pessoal da zona de Dresden: Tal der Ahnungslosen (Vale dos "Que Estão a Leste"). As ondas de rádio e televisão da Alemanha ocidental não chegavam lá. Trinta anos depois, ainda se nota bastante bem neste mapa quais eram as regiões inteiramente à mercê da propaganda do regime comunista.
Para além da propaganda comunista como impedimento para a maturidade democrática, há o problema da reunificação em si: muitos desses eleitores são pessoas que
perderam  o seu país, e em troca receberam desemprego e falta de perspectivas. A reunificação foi uma "anexação": demasiado rápida, pouco transparente, economica e simbolicamente muito violenta e arrogante. As pessoas da RDA perderam o país, o trabalho, as creches ("o lugar da mãe é em casa"), e a ideia de que eram respeitadas.
Em Forst, antiga cidade têxtil, contaram-me que a Treuhand (o organismo que privatizou essa economia) fez questão de ignorar as iniciativas de operários para comprar as empresas, vendendo-as por tuta e meia a investidores internacionais que levaram as melhores máquinas e fecharam o resto. Em Weimar, vi como um desses investidores arrasava as pessoas e a moral empresarial (aquela coisa da responsabilidade social do capital, etc.) para poder vender as empresas com lucro. Em Jena vi fecharem a secção de peças de vidro com design da Bauhaus (Wagenfeld, etc.), que teria imenso mercado internacional se quisessem apostar nela, para começarem a fazer apenas placas cerâmicas para fogões. Em Berlim, dando a desculpa de ser preciso tirar o amianto, arrasaram o Palast der Republik (o Parlamento da RDA, que tinha espaços públicos para iniciativas culturais e eventos vários, onde os cidadãos podiam fazer as suas festas privadas e portanto estava ligado a recordações felizes de inúmeros cidadãos da RDA). E como se não bastasse, em substituição do Parlamento da RDA construíram de novo o palácio do Kaiser.

Para completar o quadro, alguns factos, por ordem cronológica:
- A RDA não foi confrontada com a herança nazi. Os nazis ficaram na Alemanha ocidental, e na RDA só havia o homem novo do socia
lismo. Por definição, claro. A verdade é que houve muitos nazis que fugiram da parte ocidental para a oriental, porque lá se sentiam mais seguros.
- Na RDA não havia muitos estrangeiros - o que contribui para aumentar a xenofobia e a desconfiança.
- A reunificação - e depois o alargamento da UE a Leste - destruiu a já de si muito frágil economia da região da antiga RDA. Ninguém investe em fábricas na Saxónia, por exemplo, se tem mesmo ao lado trabalhadores polacos e checos igualmente excelentes e muito mais baratos. Em Berlim, que fica a 80 km da Polónia, há muitas empreitadas entregues a polacos, com custos bem inferiores aos dos alemães.
- Muitas regiões da antiga RDA estão em processo de desertificação. As pessoas que restam têm condições de vida cada vez mais difíceis. Por exemplo: os médico s especialistas cobrem uma área cada vez maior, o que significa que as pessoas têm de fazer longas viagens para ir ao médico.
- Muitos pais de família vão trabalhar durante a semana na parte ocidental do país, e vêm a casa ao fim-de-semana (onde a mulher fica a tomar conta dos filhos e dos avós da família): nas gerações mais jovens, geralmente são as raparigas que saem em busca de emprego, deixando para trás homens jovens frustrados, zangados e sem uma companheira que lhes dê algum equilíbrio emocional.
- Desertificação rápida significa que há muitos edifícios vazios. Em 2015, quando entravam milhares de refugiados no país todos os dias, esses edifícios foram uma boa solução de recurso para os alojar. O problema é que em alguns casos havia demasiados estrangeiros para as poucas pessoas da localidade.
- A inveja: "para os refugiados há dinheiro, e para nós não há?"
- Começou-se a falar agora no fenómeno dos filhos dos deserdados da RDA, que mesmo tendo nascido já na Alemanha reunificada sentem a perda com mais intensidade que os próprios pais.

Penso que o problema não é bem a revolta contra o capital sem ética. O problema é sentirem-se abandonados pelo Estado, que na RDA garantia a satisfação de todas as necessidades básicas (excepto a liberdade...) e na Alemanha unificada deixa as pessoas num limbo de insegurança e falta de perspectivas. 

 
No verão passado apareceu um vídeo que exemplificava muito bem o fenómeno. Em Chemnitz, uma manifestação de neonazis e AfDs com as palavras de ordem habituais ("esta terra é nossa" e "nós somos o povo") descarrilou completamente quando bandos de homens desataram a correr atrás dos estrangeiros que encontrassem na rua, para os intimidar e agredir.
A televisão foi a Chemnitz, entrevistou alguns dos participantes, e um deles disse: "eu trabalhei quarenta anos!"
É preciso resolver o problema destas pessoas que trabalharam quarenta anos e agora se vêem em risco de ter uma reforma miserável, e daqueles que não encontram emprego na região à qual se sentem ligados (e não querem ser tratados como "estrangeiros" noutro Estado da Federação).


Os partidos democráticos têm de saber manter uma posição firme em relação a discursos xenófobos e nacionalistas, e simultaneamente dar às pessoas perspectivas de resolução dos seus problemas  concretos. Que, na região da antiga RDA, estão longe de ser a ameaça da "islamização do ocidente", mas são sobretudo resultado de uma reunificação feita a toda a velocidade, mal concebida e mal resolvida. A par dos outros problemas que afectam o país como um todo: a distribuição cada vez mais desigual da riqueza e a destruição do planeta e do futuro dos nossos filhos.


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