06 maio 2019

onde estão os adultos?

Ontem, o carro dos fitados de História participou no cortejo da Queima das Fitas sem o odioso nome "Alcoholocausto". A infâmia não aconteceu. Mas esteve por pouco, e o país não soube estar à altura da gravidade da situação. 

O que me incomoda mais neste caso é que o respeito pelas vítimas de um crime tão horrendo parece ter ficado  apenas dependente da coragem e da inteligência de alguns professores e meia dúzia de alunos com mais sentido cívico. Ou estou muito mal informada, ou não houve tomada de posição clara por parte de nenhuma instituição.

Isto devia ter sido tema em todo o país - inclusivamente ao nível do governo. Nos últimos dias perguntei-me muitas vezes onde estão os adultos - ou seja: qual é o motivo de tanta passividade por parte das instituições? Onde estão os que, por força do cargo que ocupam, deviam ter tomado uma posição de responsabilidade e autoridade?


Visto da Alemanha, este silêncio torna-se ainda mais estranho. Neste país, a reacção teria sido assim:
um ou dois dias depois da primeira notícia, os jornais mais sérios dariam destaque a artigos de fundo sobre o caso, na televisão haveria debates em horário nobre (os alemães adoram debates na televisão) sobre "o que está a falhar na nossa sociedade para o anti-semitismo se mostrar sem máscaras na universidade", os alunos envolvidos seriam levados a tribunal, e em menos de nada o Ministério da Educação e da Investigação e a Chanceler estariam a condenar publicamente a acção dos estudantes e a anunciar medidas para corrigir tais situações nas universidades.

É de adultos assim que sinto a falta em Portugal. Com posições firmes, e fundadas em princípios fundamentais dos quais todo o país se orgulha.

Este episódio de Coimbra contribuiu para desfocar ainda mais os princípios que deviam ser claramente formulados e evidentes para todos os portugueses. A cereja no topo é aquele golpe de os alunos do carro se autovitimizarem com mordaças. Parece saído de um manual escrito pelo Bannon.

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ADENDA - Não me entendam mal: não quero dizer que os alunos e professores que resistiram não são adultos. A pergunta "onde estão os adultos" pretende apontar a ausência de uma posição clara de autoridade por parte de quem de direito (e de dever) que lembre princípios e estabeleça regras.



9 comentários:

the revolution of not-yet disse...

os adultos estão alcoolizados

Helena Araújo disse...

Não me referia a esses.

Jaime Santos disse...

Como lhe disse, acho que o nosso País é notavelmente insular. Mais ainda, não carrega o peso da culpa que carrega a Alemanha. Tivemos 48 de ditadura, mas que não se caracterizou pelo anti-semitismo.

Havia, é certo, pró-nazis no regime de Salazar, sobretudo antes da II Guerra e apesar de Sousa Mendes ter sido irradiado da carreira diplomática, Salazar honrou os vistos todos que ele passou, levando a crer que o diplomata foi um bode expiatório. As organizações judaicas trabalharam sem restrições, segundo julgo saber e no final da Guerra os diplomatas de Budapeste que salvaram judeus tiveram o apoio do Governo.

Não estou com isto a dizer que o que aconteceu a Sousa Mendes não foi horrível, que o regime de Salazar não era autoritário e fascista e que a atitude dos estudantes não é profundamente censurável e que deveria ter sido objeto de censura da parte da Universidade e do ME.

Mas comparar Portugal com a Alemanha nestas matérias não me parece correto. Os alemães tomaram e bem, a atitude de educar a população contra os perigos dos fascismo e do anti-semitismo. No geral, os alemães são anti-fascistas, incluindo a maioria dos apoiantes da CDU. Mas fizeram-no em face de uma tremenda responsabilidade histórica, por terem sido o País que implementou o genocídio do Povo Judeu.

Em Portugal, o anti-fascismo tem sido um apanágio das Esquerdas, quer pela sua monopolização por estas, quer por uma rejeição dos chamados valores de Abril pela Direita, por má consciência, que só as novas gerações estão a quebrar.

Claro que deveríamos quebrar com a cultura de esquecimento, mas pela nossa parte até seria mais importante que nos lembrássemos da nossa responsabilidade no tráfico negreiro e no colonialismo, em África em particular. O meu Pai, que fez tropa na Guiné-Bissau, diz-me que a escravatura de facto só acabou com a administração militar da Guiné, nos anos 60!

As recentes polémicas com o Museu dos Descobrimentos e com a questão da violência racista por parte da Polícia vieram mostrar que há, isso sim, muitas vacas sagradas relativamente quer à nossa relação passada com outros povos, quer à forma como os nossos compatriotas que são membros de minorias étnicas são tratados...

Helena Araújo disse...

Jaime, o facto de Portugal ter estado muito longe do Holocausto não nos demite a todos da nossa responsabilidade histórica. Muito menos nos tempos que correm, em que estamos à distância de um clique uns dos outros.
Há meia dúzia de anos ouvi na Bolívia um índio da floresta amazónica a dizer, ao ver passar um grupo de turistas israelitas, "Hitler devia ter feito o trabalhinho até ao fim". A Bolívia é ainda mais "insular" que Portugal, mas uma frase destas não se admite nem lá nem em lugar nenhum do mundo.
Não é uma questão da culpa de Portugal no Holocausto, mas da responsabilidade dos portugueses de hoje para que tragédias como o Holocausto não se repitam.
E é claro que há ainda muito trabalho a fazer de confronto com a nossa História de colonialismo.

Jaime Santos disse...

Pois, Helena, mas o meu ponto é que não se devem aplicar certas categorias para julgar pessoas como os estudantes de Coimbra, sob pena de as trivializarmos.

Não há banalidade do Mal na sua atuação, porque Arendt usou esse termo para classificar as ações de Eichmann que ela via como um indivíduo destituído de consciência, meramente interessado na prossecução dos seus objetivos carreiristas (parece que ele era muito mais fanático do que isso, mas isso não vem ao caso), mas capaz de assassinar pessoas para tal.

É a atitude dos estudantes condenável? Claro que é, em particular nos tempos em que vivemos. Mas é provavelmente fruto da irresponsabilidade da sua juventude e da sua ignorância.

Há muitos anos, o Príncipe Harry foi fotografado numa festa vestido de Nazi e duramente criticado por isso. Quem diria que ele se tornaria num homem sensível e responsável? Aliás, atacou aqueles que injuriaram a então noiva por causa da sua origem em termos bastante duros para o que é comum a um Windsor, denotando coragem cívica...

Como lhe disse, penso que por vezes temos mesmo que tirar as luvas e ser capazes de chamar fascista a um fascista. Mas só quando ele for de facto um fascista. De outro modo, trivializamos os termos e retiramos-lhes a sua carga objetiva.

Penso que o contexto importa. Por isso é que digo que Portugal não é a Alemanha (ainda bem por um lado, porque não carregamos com a responsabilidade que carregam os alemães, ainda mal por outro, porque não temos a cultura cívica e democrática que eles têm, mas podemos aprender a tê-la :-) )...

E por achar que o dito contexto importa é que considero, por outro lado, que caricaturas como a de António ou a de Serena Williams não são aceitáveis, porque os seus autores, por muito bem intencionados que tenham sido ao desenhá-las, mostraram no mínimo um profundo desconhecimento da História e dos estereótipos de Judeus ou Negros, para além dos limites da sensibilidade... Exatamente como os nossos estudantes.

Helena Araújo disse...

No que estamos plenamente de acordo: "não se devem aplicar certas categorias para julgar pessoas como os estudantes de Coimbra, sob pena de as trivializarmos" - muito bom.
Mas como é que isso se aplica nesta caso prático?
Chamar "fascista" a estudantes de História que, aparentemente, só queriam enfeitar o seu carro de celebração da cerveja com um nome bombástico, cujo alcance nem sequer entenderam, é um exagero. Mas mantenho que a atitude de usar a palavra Holocausto (e o símbolo de um comboio, para não haver dúvidas) naquele contexto é uma falta de respeito e de responsabilidade histórica que serve às mil maravilhas o anti-semitismo. A ignorância não desculpa tudo, sobretudo depois de terem sido alertados para o que estava em causa, e vendo como reagiram ás críticas ("não há vacas sagradas"!). Mesmo que o tenham feito "apenas" por ignorância (pelo menos alguns) ("apenas" entre aspas, porque não se admite esta ignorância a alunos finalistas de História), o modo como reagiram às críticas revelou o seu carácter e - o mais tardar neste momento - a atitude anti-semita.
Não há como dar volta a isto: tiveram uma ideia, foram alertados para a carga anti-semita da ideia que tiveram, e em vez de retroceder desataram a escrever respostas no facebook do tipo "quero cá saber! não há vacas sagradas! deixem-me dizer o que me apetece! não me policiem o pensamento! não me censurem!"
Perante isto, que razões nos impedem de lhes chamar anti-semitas?

Bem diferente foi o caso do príncipe Harry, que aos 19 anos foi a uma festa de Carnaval vestido de nazi: percebe-se a ideia (no Carnaval, há quem goste de se disfarçar de pesadelo) mas quando foi criticado pediu imediatamente desculpa e nem tentou sequer justificar-se. "I'm very sorry if I have caused any offense. It was a poor choice of costume, and I apologize."

Quanto à "banalidade do mal": Arendt chegou a esse conceito observando atentamente Eichmann. Mas Eichmann não fez o Holocausto sozinho. Este só foi possível devido à falta de empatia de milhões de alemães, todos eles "boa gente", "pessoas banais", que viram mas não sentiram, e deixaram acontecer. Encontro alguns paralelos entre a atitude daqueles alemães indiferentes ao sofrimento dos judeus e estes estudantes de História que sabem o que é o Holocausto (enfim, depois de ler o comunicado deles, tenho sérias dúvidas de que saibam...), mas manifestamente não se importam de conspurcar aquela palavra com a sua cerveja, e estão-se nas tintas para as consequências daquilo que fazem.

Irresponsabilidade da juventude? São finalistas de um curso de História, não são crianças de três anos em fase de birras - basta de infantilizações! São adultos, e revelaram a sua ignorância, a sua falta de consciência histórica, e o seu carácter. E o comunicado que publicaram ontem só agrava as conclusões que temos de tirar sobre o carácter deles.

Já contei o episódio que aconteceu na escola do meu filho: eram mais novos (16, 17 anos), mas a turma inteira ia ser duramente castigada pelo acto de bullying de dois alunos. Nem pensar em ser complacente e em infantilizar aqueles jovens. A escola cumpriu o seu papel de educar e de mostrar os limites.

Jaime Santos disse...

Claro que a atitude é anti-semita, como anti-semita é o cartoon de António, ou como racista é o de Serena Williams. Só que eu acho que a ofensa, mesmo grave, não se coloca ao nível de quem ativamente colabora para perseguir e mesmo matar pessoas ou pior (já correr riscos para ajudar outrem requer coragem física e moral), de quem participa no processo enquanto líder do mesmo e depois alega que se limitava a cumprir ordens ou estava apenas interessado na prossecução da carreira.

Não chamei fascistas aos estudantes, não sei o que pensam politicamente, se este anti-semitismo é próprio da imbecilidade, ou revela algo mais profundo. Estava a referir-me ao que disse atrás, quando considerei que se alguns fazem ou dizem parvoíces por ignorância, outros o fazem com absoluta consciência, como o Sr. Trump com os seus tweets. Ora, parece-me que no caso deles, a razão é a primeira.

Se quiser, ainda não estou disposto a usar um termo como maldade para classificar estas atitudes. Já quanto à questão do castigo, perfeitamente de acordo. Pelo menos a UC deveria ter avançado com ações disciplinares, se o MP não pode agir (o que duvido que possa).

Helena Araújo disse...

Jaime, isto é curioso: parece que concordamos praticamente em tudo, mas vamo-nos arrastando em comentários. :)

Da próxima vez, se eu fosse o António escolhia, em vez do ceguinho e do seu cão, o ceguinho e o escuteiro que o ajuda a atravessar a rua. Passa a mesma ideia, mas os judeus não se podem queixar de serem ofendidos por serem equiparados a animais.
Tenho a certeza que o António não tinha a menor intenção de ofender os judeus. Só não se terá lembrado de que há 70 anos os judeus foram realmente considerados e tratados como animais, e que essa ferida profunda ainda está - e estará - aberta.

Concordo que estes estudantes (pelo menos a maior parte deles) fazem e dizem parvoíces por ignorância e/ou absoluta falta de consciência.
O que é grave é o modo como insistem no erro, mesmo depois de alertados para ele.

Jaime Santos disse...

Exato, o ponto é esse, um líder judeu foi retratado como um cão, o que evoca estereótipos passados. Já se estivéssemos a retratar Blair como poodle de Bush, seria perfeitamente aceitável (mesmo se ofensivo para o ex-PM britânico, mas isso são os ossos do ofício de quem desempenha cargos públicos).

Também penso que António não queria ofender os Judeus.

E, olhando para aquele post dos estudantes, que citou, achei-o de tal modo desarticulado, que só posso concluir que aqueles tontinhos de facto não perceberam nada e não foram capazes de fazer uma coisa muito simples que seria pedir desculpa...

Agora, que alguma coisa está profundamente errada no ensino da História em Portugal, ou pelo menos na UC, isso está...