06 maio 2019
para memória futura
Para memória futura, partilho mais um post de Miguel Monteiro publicado na página do facebook "No Cortejo da Queima das Fitas diz NÃO ao 'Alcoholocausto'!"
O que se segue é o texto de Miguel Monteiro:
Sobre a manifestação de Domingo no Cortejo da Queima das Fitas
Os fitados de História passaram algures a informação de que o carro passaria sem o nome "Alcoholocausto". Essa alegada decisão foi a portas fechadas, sem nenhuma confirmação pública, e ainda ontem Afonso Sousa, da comissão do carro, garantia no Facebook, "Amigo, o Alcoholocausto vai andar... Podes ter a certeza"
Não nos resta outra opção. Amanhã, pelas 15h, estaremos em frente à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra para protestar não só contra a banalização da Shoah levada a cabo ao longo deste ano pelos finalistas do curso de História, desde os macabros disfarces de Judeus dos campos de concentração até ao "Alcoholocausto", passando por uma enxurrada podre de anti-semitismo inqualificável que foi sendo produzida e disseminada quer ao vivo quer pelas redes sociais pelas pessoas do carro e seus apoiantes. Lá estaremos. Não podemos não o fazer. Digam aos vossos amigos para dizerem aos vossos amigos.
Notas:
1) Tendo em conta o ambiente de confusão do Cortejo da Queima das Fitas, encorajamos as pessoas a estarem lá a horas para nos podermos organizar;
2) Reiteramos quer à comunidade de Coimbra, às pessoas contra quem vamos protestar, e a quem nos apoia que esta é uma manifestação pacífica, e que não causaremos nem desejamos quaisquer danos físicos ou materiais, e, em particular devido ao ambiente de álcool que caracteriza o evento, exortamos as pessoas do carro a assumirem a mesma responsabilidade;
3) Tendo em conta a situação de álcool aerodinâmico que se costuma presenciar, tragam roupas dispensáveis.
—//—
Quando pela primeira vez ouvimos falar de que os fitados de História de 2019 iriam usar "Alcoholocausto" como nome, todos nós fomos incredulidade. Tudo isto tinha de ser um mal-entendido. Mas as explicações alegadas ("por causa do caos", "protesto contra o álcool na Queima", "nenhuma relação com a Shoah") emergiram todas elas transparentemente ridículas e precisámos de pouco tempo para as refutar.
Os fitados de História e os seus apoiantes abandonaram então esse insustentável barbacã para se concentrarem no protesto de que troçar com a Shoah era algo lícito segundo os sins da liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão é um garante democrático inegável, e se o reconhecemos é porque atribuímos às palavras um poder de acção sobre a sociedade e a própria realidade, que, por isso, nunca são só palavras. Verbalizar e apelar à violência, à morte e à discriminação, prestar falsos testemunhos jurídicos, gritar “Fogo!” num concerto lotado, podem ser acções nocivas ou mesmo letais sobre outras pessoas. Usar da palavra implica neste sentido uma responsabilidade que vai além da desculpabilização de toda e qualquer ideia que encoraje ou banalize a mais fria crueldade.
Quando usamos da palavra para normalizar a aniquilação de seres humanos estamos a praticar um uso autodestrutivo da liberdade de expressão. Levado às suas extremas consequências, este uso conduziria à aceitação do extermínio em nome da defesa dessa mesma liberdade. A liberdade de expressão tem portanto de ser balizada para que tanto ela mesma como a própria democracia possam sobreviver. Estas balizas não são um conjunto de assuntos tabu, mas traduzem-se na responsabilidade de um discurso comprometido com uma existência cívica partilhada.
Neste caso em concreto, a baliza que exigimos, o limite que declararemos intransponível, é o do anti-semitismo. Algumas pessoas terão seguido as caixas de comentários, as publicações deste evento, as discussões paralelas noutras páginas ou noutros grupos, ou as mensagens privadas. Quem o tenha feito não poderá ter deixado de se horrorizar com dois grupos igualmente monstruosos.
Em primeiro lugar os anti-semitas convictos, pessoas sem nível, sem coração, duma crueldade atroz, algozes e carrascos, que com as suas palavras trucidam às gargalhadas as vítimas já trucidadas. Há-os abundantemente neste grupo e nos seus apoiantes. Pessoas cujo ódio destilado contra a existência do povo judaico ao que tudo indica é constitutiva do seu ser, e que pervertem o seu saber e insultam a memória dos mortos com negações de que a Shoah tenha sequer existido.
O segundo grupo é igualmente abominável: os que fecharam os olhos e permitiram. A banalidade do mal, que primeiro aceitou que se troçasse dos caloiros vestindo-os de prisioneiros dos campos, e depois aceitou que se desse o nome do carro a Alcoholocausto, e depois aceitou que os anti-semitas dominassem a discussão e identificassem a defesa do carro e portanto a defesa do curso e da "honra do grupo", com a defesa do seu próprio anti-semitismo. O extermínio nunca mobiliza todos: mobiliza alguns poucos, e imobiliza os demais.
Fazemos uma última exortação às pessoas de História para que não manchem a memória do fim da vossa licenciatura com uma petulância juvenil, e que em vez disso honrem o conhecimento que adquiriram ao longo destes três anos, coroando-os com uma, mesmo que tardia, tomada de consciência e de memória histórica: não participem do carro. É a decisão correcta, corajosa, mesmo se vos vai fazer perder a amizade de gente vil.
Claro que os fitados sempre se recusaram a dar o nome. Espalharam até a mentira grotesca de que estariam a ser ameaçados e perseguidos, e que tinham tido de fazer denúncia junto da polícia. Curioso, que quando nós fomos às várias esquadras da polícia registar a nossa manifestação, ninguém nunca tivesse ouvido falar do caso.
Um desses anónimos comentou, para legitimar o uso da palavra Holocausto e argumentar em má fé que a palavra era mais antiga que a sua associação à Shoah, que os fitados têm direito a utilizá-la, "A menos que tenha sido comprada por alguém que terá o direito, como proprietário, de a usar como entende." Respondeu Helena Araújo que «é claro que a palavra "Holocausto" foi "comprada por alguém que tem o direito, como proprietário, de a usar como entender" - nem sei porque é que pergunta. Foi paga com um preço altíssimo: o sangue de seis milhões de pessoas.»
O sangue. Vítimas de anti-semitismo costumam ser nomeadas com a expressão "Que Deus vingue o seu sangue", השם יקום דמם. É esse o sangue que vamos amanhã lembrar e honrar.
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