04 maio 2019

O Ricardo Araújo Pereira e a Liberdade de Expressão

Miguel Monteiro escreveu num post do facebook o que eu gostava de ter sido capaz de dizer sobre o assunto, mas nunca conseguiria explicar tão bem. Partilho aqui, porque me parece que é um texto indispensável para o debate sobre a liberdade de expressão, e merece um palco mais permanente que o que é dado pelo facebook.


O Ricardo Araújo Pereira e a Liberdade de Expressão

Miguel Monteiro


Nesta história do Alcoholocausto, uma referência que quase todas as pessoas à baila trazem é o Ricardo Araújo Pereira [RAP], devido à sua conhecida e mediática opinião sobre a Liberdade de Expressão. Posicionando-se algures entre a reflexão académica, o "public intellectual", e o comentador político, ele faz uso da sua notoriedade mediática para advogar por uma visão segundo a qual o direito a falar é virtualmente absoluto (uma visão que tem o Kant do seu "O que é o Iluminismo?" como antepassado intelectual directo, onde é formulado um dos mais cogentes e influentes argumentos sobre a liberdade de imprensa).
Por "virtualmente absoluto" ele entende que nada a não ser ameaças de morte directas podem ser condenadas. Mobiliza consequentemente o "direito a ofender" contra o seu grande alvo, que é o dito "politicamente correcto". Tendo em conta o facto de ter um grande púlpito graças à sua presença mediática, e tê-lo ainda mais devido ao facto de ser um humorista genial com muita piada, muitas pessoas que opinam sobre o tema fazem-no baseadas unicamente nele. Como eu escrevia noutro comentário, ele é muitas vezes tratado como um oráculo cujas palavras têm de ser reveladas a nosso favor, em vez de, como fazenos com as restantes vozes do discurso público, aceitar simplesmente que às vezes, ou mesmo muitas vezes, não há truque: ele está simplesmente enganado.
Em concreto sobre a liberdade de expressão, ao contrário do que os seus defensores acham, a verdade é que o RAP tem uma opinião antiquada sobre todo o assunto: "Antigamente" as pessoas achavam que esse tipo de ideia maximalista sobre a liberdade de expressão era realmente a recta via habermasiana para combater a extrema direita etc, e a expressão popular da crença de que "é a falar que a gente se entende".
Digo antiquada porque os factos histórico-políticos deixaram-no para trás. A ascensão da extrema-direita e o colapso de um discurso cívico baseado numa ideia, por muito hipócrita que fosse, de decência, vieram mostrar que não é mesmo a falar que a gente se entende, e ouviu-se falar pela primeira vez em larga escala do tal "paradoxo da tolerância" que várias pessoas têm vindo a citar.
Foi em grande medida a eleição do Trump que precipitou tudo isto, embora já tivesse sido antecipado antes. Mas gradualmente o mundo vai despertando para o facto de que essa visão maximalista da liberdade de expressão é pouco mais que masturbação ética. Ao invés do que prometera, não impede, aliás fomenta o crescimento da extrema-direita. Como alguém acima disse ficar a saber quem são os parvos não é de grande consolo se eles detiverem já as rédeas do poder. Em Itália, nos EUA, etc, isso acontece já.
O mundo vai, dizia eu, despertando para a falácia desse argumento pobre & podre, e é esse despertar que protagoniza decisões recentes como a do Facebook de banir das plataformas online o Alex Jones etc de forma a privá-los de uma plataforma e de oxigénio.
O RAP está antiquado porque ainda não se apercebeu que as suas bonitas ideias são "uma arma elegante para uma era mais civilizada que esta". O mundo mudou, e nós ou mudamos com ele ou arriscamo-nos a que ele nos devore. A sua posição desculpabilizante sobre o caso recente das "pedras para os zucas" da UL revela o quão senil se tornou a sua posição ética e inútil para nós nos nossos novos problemas. Tem de ser abandonado.
Abandonado em prol de uma visão mais desencantada, menos iluminista, menos crente na racionalidade humana, e mais pronta a aceitar a situação de cerco em que estamos. Mais preparada para tomar decisões que desagradem a quem quer arrasar os limites do discurso público, expandindo os limites para tipos de discurso de ódio mais em geral ou para apelos em abstracto (não apenas práticos e directos) à existência de grupos específico. Esse tipo de discurso, pela forma banal como acaba por banalizar, inclusive por meio do humor, o desprezo pela vida de pessoas pertencentes a esses grupos, gera o ambiente intelectual e emocional que normaliza a crítica à existência de grupos específicos e é o primeiro passo duma longa corrente cuja coroa é o extermínio.
Esta visão é difícil porque exige uma postura de convicção ética que a simplicidade formal do RAP não precisa. "Só se estiver a ameaçar de morte", ou então, "Mas quem és tu para dizer que isto é ofensivo?", ou ainda finalmente, "Ai o politicamente correcto!", são respostas fáceis, abstractas, mas em última instância carecem de solidez moral e serão incapazes de nos ajudar a resistir às trevas que se amontoam.

6 comentários:

Isabel Melo disse...

Percebo e tendo a concordar. O problema no entanto é sempre o mesmo. Onde se traça a linha que separa. Obviamente sou contra as ações dos estudantes de história de Coimbra ou da faculdade de direito de Lisboa. Mas quando me dizem. Mas quanto a ações como por exemplo o carnaval "das culturas" naquela escola em Matosinhos... Já não consigo ser tão veementemente contra. Tive essa discussão num seminário sobre discriminação em que algumas pessoas defendiam este discurso de, as crianças não vêem diferença por isso não devemos mostrar-la. Mas eu acho que devemos, porque o alvo a abater não é a diferença mas o medo da diferença, substituindo-o pelo gosto pela diferença. Porque, entrando numa frase feita, no final, somos todos individualmente diferentes e ainda bem. Ainda sobre este assunto, tenho muitos amigos activistas nos diretos dos afrodescendentes, e concordo plenamente que são tratados de forma diferente e isso deve mudar radicalmente e farei tudo o que poder nesse sentido. No entanto quando defendem que perguntar de onde são é ofensivo deixa-me imensamente triste. A censura a mim mesma de não fazer perguntas que possam parecer que estou a discriminar é pesada. E no entanto queria mesmo fazer essa pergunta. E no entanto mesmo sabendo que são plenamente portugueses têm origens como qualquer um de nós e para mim essa mistura de culturas é das melhores conversas que já tive. A autocensura e limitadora de conversas, histórias, compreensão e empatia entre as pessoas. Para terminar, e escrevo precisamente porque este tema do que se pode e não se pode e um dos temas para os quais ainda estou a espera de ter uma "solução" para a minha própria atuação. Ideias?

josépacheco disse...

A não ser que se entenda a liberdade de expressão como um valor em si mesmo, não a medindo, apenas, ou como servindo para esvaziar a Extrema-Direita (e seria boa), ou como dando-lhe voz, palco e meios (e seria má). O mesmo tipo de crítica pode fazer-se à democracia, que tem a fragilidade de permitir que a Extrema-Direita e a estupidez dos grunhos também votem.

Helena Araújo disse...

Isabel, o lugar da linha de separação é muito difícil de traçar. Em muitos casos, só os tribunais podem decidir. Mas o que aqui está em causa é a recusa sequer da possibilidade de essa linha existir. Um dos argumentos para manter o nome "Alcoholocausto" era "não há vacas sagradas".
Outra questão, ligada a esta, é a desculpa de chamar "brincadeira" a actos de pura xenofobia, como o episódio das pedras para atirar aos estudantes brasileiros.
O problema do "carnaval das culturas" na escola de Matosinhos era o do reforço de um preconceito: o africano como primitivo. Se houvesse, a par dos disfarces de primitivos africanos, disfarces de portugueses vestidos como no tempo do Viriato, ainda vá - o absurdo da situação ficava mais evidente, e em todo o caso havia equilíbrio. Ou então, os miúdos disfarçados de africanos vestiam-se de Nelson Mandela, de Desmond Tutu, de Kofi Annan, de Miriam Makeba, de Chimamanda Ngozi Adichie, etc.
Finalmente, a pergunta "de onde és?". Alguma vez te aconteceu de a primeira pergunta que te fizeram numa festa ou num encontro ser "mas os teus avós são mesmo mesmo do Porto, ou de onde vieram? vá, fala-me mais sobre o mundo cultural dos teus avós."
Imagina o que seria a tua vida se essa fosse sempre a primeira pergunta (e muitas vezes a única) que te faziam. A realidade é que, quando olham para ti, ninguém se lembra de te perguntar logo pela história dos teus avós. (Desculpa que te diga, mas, entre brancos, toda a gente se está nas tintas para a história dos teus avós... ;))
Porque é que, então, as pessoas de pele escura ou de olhos amendoados têm de ser permanentemente sujeitas a essa pergunta, que apenas mostra que o seu interlocutor vê nelas, antes de tudo, uma diferença e de certo modo uma não-pertença?
Uma vez vi um brasileiro com cara de japonês a dançar samba como um deus carioca. Achei esquisito. Por sorte fiquei muito caladinha. Qualquer comentário que tivesse feito era uma vergonha.
A autocensura não custa tanto como isso. Na Alemanha, por exemplo, habituei-me a dirigir-me a todas as pessoas em alemão. Se não entenderem, estou preparada para mudar imediatamente para outro idioma. Mas nem pensar em dar-lhes a ideia logo no primeiro segundo de que concluí, a partir dos seus traços físicos, que não pertencem a esta comunidade. Mais tarde, depois de termos falado sobre mil e uma coisas, podemos falar das suas origens. Mas essa é uma pergunta que só pode ter lugar quando houver muita confiança entre nós, e não houver dúvidas quanto ao lugar dessa pessoa como membro de pleno direito desta comunidade nacional.
Voltando um pouco atrás: o que é que tu acharias de uma pessoa que, antes de te conhecer, se mostrasse extremamente interessada nos teus avós, ou na vida na aldeia deles? O interesse até pode ser genuíno, mas o que é que ficarias a pensar do teu interlocutor? E como te sentirias se por sistema toda a gente te fizesse sempre essa pergunta mal começasse a falar contigo?

Helena Araújo disse...

José Pacheco, tanto quanto sei, a Democracia não permite tudo. A partir de determinados limites, os partidos não podem concorrer a eleições.
(Pelo menos é assim na Democracia alemã, que conheço melhor)

Unknown disse...

Eu sou, talvez, das poucas que não acha graça nenhuma ao RAP. Sobre a sua postura, relativamente a estas questões, não há que haver desculpas nem condescendência. O fascismo usa muitos instrumentos para se impor, nomeadamente os ideológicos. E para dar voz, precisa de bobos credíveis e admirados. Sendo assim, nada mais natural que o RP tenha as portas abertas nos mcs
Torna se o porta voz de um certo poder , que embora gostasse de exprimir esse tipo de opinião, se inibe para tera cara lavada

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Após o 25 de Abril ensinaram-me que a nossa preciosa Liberdade acaba onde começa a do Outro.

A defesa da Liberdade, porém, nunca deveria ter sido transformada na promoção da liberdade de fazer aos outros o que nos der na real gana!

Em última análise, quem assim defende a "liberdade", também defenderia a Escravatura, ou seja, a sacro-santa liberdade de possuir escravos...

Eu sou frontalmente pela Liberdade, por isso tenho de ser radicalmente contra esse tipo de liberdades abusivas.

Quanto às diferenças e ao possível melindre das pessoas que se sentem tratadas como diferentes, é mais uma questão de sensibilidade e bom senso: quando vejo um cego na rua, não me passa pela cabeça dirigir-me a ele e felicitá-lo por se orientar tão bem nas passadeiras.