E ao quarto dia fez-se um domingo de chuva. Subi ao Berlinale Rooftop Café para tomar o pequeno-almoço, e a cidade mostrava-se tristonha. Este Berlinale Rooftop Café era simplesmente o café que existe no topo do edifício de tijolo escuro na Potsdamer Platz. Para chegar lá usa-se o elevador mais rápido da Europa, que nos leva do rés-do-chão ao 24º andar em oito segundos. Qualquer pessoa pode ir ao café e às galerias no topo da torre, mas tem de pagar 7,5 euros. Durante a Berlinale, os inscritos no festival tinham a possibilidade de ir ao café sem pagar o transporte. Mas poucos aproveitaram: sempre que lá fui, estava relativamente vazio.
Ao fim da tarde desse domingo encontrei-me com o Joachim e fomos para a loucura: dois filmes seguidos! E ainda um saltinho ao pavilhão da Audi mesmo em frente ao Berlinale Palast. Chegamos mesmo a tempo de ver a Diane Kruger no tapete vermelho, ali a meia dúzia de metros. Íamos para jantar alguma das deliciosas ofertas que têm sempre no menu, e para beber um café antes do último filme do dia, mas logo à entrada encontrámos um velho conhecido nosso, que ia moderar um debate sobre o tema "alcance" - iam falar de cinemas itinerantes com energia solar e de naves espaciais.
Berlim (também) é isto: uma cidade com quase quatro milhões de habitantes, e passamos a vida a cruzar-nos com conhecidos. Por sorte o debate começava antes do nosso filme, pelo que acabámos a conversinha e fomos para o cinema sem correr o risco de chegar atrasados.
Berlinale (também) é isto: correr permanentemente de um filme para uma conversa e de um debate para outro filme.
O que se vê nas duas fotos seguintes deve ser um carro eléctrico da Audi, todo XPTO do futuro dos carros eléctricos, mas não percebo nada de carros. Fotografei a correr, e desandei.
Na terceira foto vê-se a Filarmonia, ali à esquina da Berlinale. Linda como sempre.
Os meus filmes do dia 10:
Gospod postoi,imeto i’ e Petrunija / GodExists, Her Name Is Petrunya da realizadora Teona Strugar Mitevska: um filme da Macedónia que, com uma simplicidade quase berrante, demonstra a necessidade e a urgência da emancipação feminina. Baseado num facto real, conta a história de uma mulher de 32 anos (Zorica Nusheva, excelente), desempregada e a viver com um pai doente e uma mãe sádica e dominadora. No impulso de um momento invade um domínio tradicional dos homens, e vê-se metida em apuros com a polícia, o padre, o procurador e um mob de machos feridos no seu orgulho. O quarto poder também está presente na história, através da jornalista que explica detalhadamente aos telespectadores o choque cultural em causa, nos intervalos das gravações discute ao telefone com o marido sobre quem deve ir buscar a filha à escola, e tem ainda de resistir ao desinteresse do seu chefe por aquele tema. O quadro institucional é completado pela figura do Estado de Direito, mais concretamente, pela sua precariedade patente no comentário que repetem quando Petrunya exige que os seus direitos sejam respeitados: "pensas que estás na televisão?"Teona Strugar Mitevska oferece com este filme uma radiografia actual das estruturas patriarcais da Macedónia e da situação das mulheres jovens, com estudos mas sem perspectivas, e a actriz Zorica Nusheva oferece uma Petrunya que se nos torna cada vez mais simpática. Há, em particular, um momento que vai directo ao coração do espectador: quando o polícia, despeitado por ela não fazer o que ele quer, lhe diz: - Tenho uma filha de dez anos que é uma criança amorosa e muito bem-educada. Amo-a mais do que tudo no mundo, mas se ela daqui a uns anos começar a portar-se como tu, parto-lhe todos os ossos do corpo. E Petrunya responde: - Em contrapartida, eu tenho um pai que me apoia.
Born in Evin de Maryam Zaree: esta realizadora alemã só por acaso descobriu que nasceu em Evin, a pior prisão política do Irão, e nela viveu dois anos. O pesado silêncio familiar à volta desse tema foi uma constante que acompanhou o seu crescimento, e abriu feridas que Maryam tentou sarar recorrendo à psicanálise durante vários anos, escrevendo uma peça de teatro ("Denial"), e fazendo agora este documentário que corresponde a uma fase sua mais madura e estável. O documentário regista, de forma simultaneamente divertida e profunda, a pesquisa do que aconteceu às crianças que nasceram ou passaram por aquela prisão e do que aconteceu às suas mães, questiona os motivos do silêncio à volta desses factos e as suas consequências para as gerações seguintes. Um documentário bem feito e equilibrado, que surge quando a revolução islâmica iraniana cumpre quarenta anos, e quando na Turquia as cadeias políticas se enchem de mulheres e crianças. Neste link encontram um pequeno trecho em inglês.
Talking money de Sebastian Winkels (secção Lola): neste documentário, a câmara filma a perspectiva de um empregado bancário por cuja mesa desfilam os problemas e os sonhos dos clientes que vêm pedir um empréstimo ou condições especiais para o reembolso. Filmado em vários continentes, em todos eles a secretária do escritório bancário toma ares de confessionário e assume-se como lugar de poder. A ideia é interessante, mas para fazer um bom documentário não basta gravar as conversas das pessoas escolhidas ao acaso, e somá-las em filme.
Malchik russkiy / A Russian Youth de Alexander Zolotukhin: um filme pacifista russo, com boa fotografia e bons cenários. Surpreendeu-me a coragem de fazer uma alusão clara a Putin naquele contexto de crítica à loucura bélica. No fim, o realizador falou da actualidade deste filme: é assustador sentir que o ambiente que precedeu a primeira guerra mundial está a instalar-se de novo entre nós.
Aktfotografie, z.B. Gundula Schulze e Wer fürchtet sich vorm schwarzen Mann / Who’s Afraid of the Bogeyman, ambos de Helke Misselwitz. A secção Retrospectiva, que em 2019 era inteiramente dedicada a trabalhos de mulheres, incluiu estes dois documentários de uma realizadora da RDA. O "Who's Afraid of the Bogeyman" é um documentário delicioso sobre uma empresa de Berlim Leste que venda de carvão e entrega ao domicílio, gerida por uma mulher. Filmado pouco antes da queda do muro, mostra-nos as difíceis condições de vida na RDA (aquecimento a carvão dentro dos apartamentos, transporte em baldes enormes e carrinhas minúsculas) e ao mesmo tempo o papel de poder das mulheres da RDA nas relações laborais. Não encontrei nenhum vestígio do filme na internet, e é pena, porque é um documentário que vale realmente a pena ver. No fim do filme, o moderador da conversa com a realizadora e o público sintetizou o trabalho de Helke Misselwitz com esta frase: "esta mulher tem muito amor ao que filma". É isso que torna este seu documentário delicioso - e me deixa curiosa para conhecer outros trabalhos dela.
1 comentário:
Gosto de dizer:
- Tive um pai que me apoiou.
Abraços
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