no meio do caminho havia uma árvore,
havia uma árvore no meio do caminho...
havia uma árvore no meio do caminho...
Durante a semana da Berlinale, é este o ritmo: sair de casa às sete e um quarto com o Joachim, e atravessar o Tiergarten de lés a lés ainda antes do sol nascer (tenho várias provas fotográficas, e até partilho aqui duas delas). Ir para a fila dos bilhetes, escolher os do dia seguinte, pequeno-almoçar a correr num sítio que não posso dizer porque os meus filhos são visceralmente contra ("mas é só durante a Berlinale..." - tento alegar em minha fraca defesa), e correr para a sessão das nove da manhã para a imprensa, normalmente um dos filmes do concurso.
Este quinto dia foi um pouco mais complicado: saí do carro na zona da Haus der Kulturen der Welt, atravessei o Tiergarten para ir buscar os bilhetes, voltei a atravessar para ir ver o primeiro filme na Haus der Kulturen der Welt, daí fui para a Friedrichstrasse, de lá para o Zoo, e de novo para a Haus der Kulturen der Welt - há-de ter sido meia maratona.
Berlinale, dois em um: cinema e desporto.
O último filme do dia foi com a família. A Christina perguntou-me pelos filmes que vi, e falei-lhe do "Of Fathers and Sons", do qual acabara de sair. Ia começar a recomendar-lho imenso, quando ela me interrompeu: "Mãe, esse é o filme do Talal! Já te falei dele, é o realizador sírio que está muito interessado no teu filme sobre os arménios!"
(Se calhar devia melhorar os meus skills de comunicação com a minha família...)
Os filmes do quinto dia:
Baracoa, de Pablo Briones, ou: uma infância em Cuba. O filme é uma mistura de documentário e ficção, com momentos cheios da poesia, da graça e das esperas infinitas da infância, mas também com alguns diálogos um pouco forçados.
O realizador contou que foi a Pueblo Textil em busca de um rapazinho para fazer uma curta-metragem. Quando já tinha uma boa dúzia de possibilidades, apareceram os dois amigos deste filme, tal e qual como se vêem no trailer: lado a lado, a mão do mais velho pousada no ombro do pequenito. Foram ter com ele, quiseram saber o que se passava ali, e ele explicou que estava a escolher um rapaz para fazer um filme.
- E sobre o que é o seu filme?
- É um gato que foge e um menino que vai à sua procura.
- Señor, - disse o mais pequenino - se tiver dois rapazes a procurar, encontra o gato mais depressa!
O realizador mudou ali mesmo os seus planos. Ficou com os dois miúdos, e encostou a sua história às histórias deles. O resultado foi Baracoa, sobre a infância universal num país único.
The operative, de
Of Fathers and Sons, de
Há uma passagem no filme ainda mais brutal que as restantes: imagens do pátio de uma prisão onde alinham prisioneiros de guerra. Rapazes novos, capturados pela al-Nusra e ali mantidos indefinidamente. Enquanto o seu operador de câmara gravava as cenas que os guerrilheiros queriam exibir ao Ocidente, Derki filmou discretamente grandes planos das caras daqueles jovens que acreditavam ter chegado o seu último momento. Insuportável. Naqueles rostos vi os amigos sírios dos meus filhos, e percebi melhor de que fugiram e porque é que se fizeram ao mar e à travessia de meia Europa em condições terríveis. Contaram-me eles que já estavam a ser perseguidos pelo regime de Assad, e se viram obrigados a fugir precipitadamente quando se deram conta de que havia grupos a raptar rapazes nas ruas do bairro onde viviam. Quem os raptava? Para quê?
No fim, falei com um dos elementos da equipa do filme, que revelou que a inclusão daquelas cenas foi a decisão mais difícil de tomar. Disse que no dia em que filmaram nenhum prisioneiro foi assassinado, mas na semana seguinte houve uma chacina naquela prisão. Não sabem quantos mataram, e quantos dos filmados estão ainda vivos. Também me disse que os guerrilheiros ficaram furiosos quando viram o filme, e que Talal Derki tem agora a cabeça a prémio na Síria.
- E fora da Síria, não?
- Não tanto. Não se conhece uma rede internacional à Frente al-Nusra.
Talal Derki. Se não fosse por mais nada, ter arriscado a vida e o seu futuro para fazer este filme seria já um bom motivo para o ver. Mas há mais motivos: o filme é um documento sobre o que se passa na Síria e os problemas que teremos de resolver nos anos que vêm.
Deixou-me a pensar sobre o pacifismo, o impulso de salvar a própria vida e o dever de lutar contra um mal tão terrível como o Daesh. Que é que eu faria se isto tivesse acontecido no meu país?
Deixou-me também a rogar pragas ao Bush e aos seus amigos Aznar, Blair e Barroso, que na cimeira dos Açores deram início à invasão do Iraque, essa guerra que alterou o precário equilíbrio da região e abriu o caminho ao daesh.
"37 Seconds" (2019, Drama, Japan) Teaser from HIKARI FILMS on Vimeo.
37 Seconds, de HIKARI. Yuma tem 23 anos, e a par dos problemas de mobilidade devido à sua paralisia cerebral sofre ainda às mãos de uma mãe superprotectora e de uma chefe que não a respeita. Quando decide começar um novo trabalho, desenhando manga erótico, a responsável da agência sugere-lhe que faça ela própria a experiência de uma relação sexual antes de começar a trabalhar naquela área. O resultado é um percurso acidentado que leva Yuma à descoberta de segredos familiares, à conquista de amigos pouco convencionais, e ao alargamento do seu mundo.
A realizadora contou que encontrou Mei Kayama - a actriz principal, com paralisia cerebral - já bastante tarde (11 meses antes da estreia do filme) e que a sua história pessoal inspirou algumas alterações à história. Talvez essas alterações de última hora e a realização demasiado apressada expliquem o excesso de temas no filme e a falta de um desenlace mais lógico. O filme abarca demasiados temas sem levar quase nenhum deles a bom porto, mas é salvo por uma Mei Kayama que lhe dá dignidade e o torna muito cativante. Não sendo um grande caso de cinema, é um filme que nos enriquece, diverte e dá que pensar.
Em conversa com o público, a realizadora falou da sexualidade das pessoas com certas deficiências, e alertou para a necessidade de mudarmos a perspectiva: essas pessoas não são disabled, são differently abled. Gostei muito da expressão: differently abled.
"Mesmo pessoas paralisadas podem ter relações sexuais e até orgasmos", disse a realizadora. E logo a seguir: "Oooops! Será que podia dizer orgasmo neste palco? Ah, que cabeça a minha! Claro que sim - estamos na Europa!" - e riu-se. Rimos todos.
Alguém do público perguntou porque é que numa determinada cena a banheira estava cheia de água à noite, e a actriz Misuzu Kanno explicou que no Japão é normal a banheira ficar cheia para as pessoas da família tomarem banho umas após as outras. "Quando o marido chega a casa depois do trabalho", disse ela, "a mulher pergunta-lhe se quer jantar primeiro, ou tomar banho antes."
"Hehe", riu-se a realizadora, "quem me dera que me perguntassem isso quando chego a casa depois do trabalho: queres já o jantar, ou vais primeiro tomar banho?"
Algo me diz que cada vez se fazem menos japonesas como antigamente...
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