20 fevereiro 2019

Berlinale 2019 - terceiro dia


Ao terceiro dia, o gelo típico de Fevereiro começou a dar lugar a dias chuvosos e cinzentos, e a minha Berlinale começou a ganhar forma. Aventurei-me com mais segurança pelo programa, comecei a fazer escolhas com menos ansiedade: Temblores em vez de Öndög (disseram-me depois que este último é excelente, mas não me arrependi da troca), Erde em vez de Shooting the Mafia, e as três horas de Brecht em vez dos documentários What We Left Unfinished e Estou-me Guardando Para Quando o Carnaval chegar.

Por essa altura já me tinha dado conta de que não é boa ideia ir para a Berlinale uma semana depois de ter sido operada: corria de um cinema para o outro segurando a barriga, temendo que os pontos se abrissem. As mãos protectoras sobre a barriga: sou eu, e a Meghan Markle (mas ela não corre, tem mais juízo que eu).



Na Haus der Berliner Festspiele, onde iam estrear o Brecht, estava tudo atrasado porque se aguardava a chegada do presidente da República, do presidente de Berlim e da ministra da Cultura. Entre outros. Fiquei sentada no balcão lateral, com boa vista para os figurões. A miúda ao meu lado não cabia em si de excitação: "o Tom Shilling está ali! Está ali o Tom Shilling! Não acredito que isto me está a acontecer!", repetia ela, e espreitava, e de novo virava para mim um sorriso enorme. Mas nem reparava no presidente da República, sentado praticamente ao lado do actor.

As três horas de Brecht foram afinal quatro, e já não me deixaram entrar em Système K.
Tive pena, claro, mas também me soube bem ir para casa mais cedo, para tentar trocar as voltas à famosa gripe da Berlinale.

Os meus filmes do dia 9:

Temblores, de Jayro Bustamante: Pablo, casado e pai de dois filhos, apaixona-se por um homem. Quando a sua família descobre, aperta-lhe um cerco tal que ele não tem outro remédio senão sujeitar-se ao tratamento para "curar a perversão", de modo a recuperar uma aparente normalidade. O filme mostra o que há de sadismo, manipulação e sentido de posse nas relações familiares e sociais, e revela o enorme poder das Igrejas na sociedade guatemalteca.
Na sala de cinema havia muitos casais do mesmo sexo. Vi o filme com o coração apertado - pelas cenas, e por empatia em relação aos casais à minha volta. Quantas histórias desta opressão do rebanho não teriam eles para contar? Quando acabou, o casal ao meu lado soltou suspiros fundos. Um perguntou ao outro: "a propósito, ouviste sobre aquele deputado brasileiro que teve de fugir do país?"
O team de Temblores subiu ao palco, e falou bastante sobre a situação na Guatemala. Descreveram um país com 98% de crentes, e acusaram o papel do ditador Rios Montt no aproveitamento político dessa religiosidade. Cimentando o seu poder no exército e na religião ("combatir con la Biblia en una mano y con una ametralladora en la otra"), deu tal força às Igrejas que hoje em dia as pessoas anunciam a sua religião no currículo e no próprio cartão de visita. Um motorista Uber, por exemplo, escreverá no seu cartão "Fulano de Tal, evangélico". A par da opressão das Igrejas, o machismo da sociedade e a tendência para manter as aparências à custa da felicidade individual combinam-se para impor aos homossexuais situações desumanas.
Uma das actrizes (ambas tiveram o seu primeiro papel neste filme) disse que sentiu que participar neste filme era um dever, porque é fundamental lutar contra as situações surreais que são afinal a realidade dos homossexuais na Guatemala. E o realizador Jayro Bustamante acrescentou ainda que falou com muitos homens, de todos os níveis sociais, e ouviu histórias terríveis. Escolheu pôr no filme as histórias menos pesadas, porque se incluísse também o pior do que lhe contaram o público não conseguiria acreditar e pensaria que se tratava de ficção cinematográfica.
Seguindo este link
é possível ver um pequeno trecho do filme.




Earth, de Nikolaus Geyrhalter:  um documentário sobre a banalidade da destruição do planeta. Começa com uma informação assustadora: dia após dia, a actividade humana remove um volume de solo três vezes superior ao que resulta do efeito conjugado de todos os elementos da natureza. Isso mesmo: nós destruímos três vezes mais que o vento, os rios, os mares, os terramotos e os vulcões. 
O documentário mostra sete lugares onde batalhões de escavadoras gigantes, explosivos e serras esburacam o planeta. Transforma as dimensões matemáticas - x milhões de hectares, x campos de futebol - em imagens que permitem entender a dimensão do desastre. Nas entrevistas, os operários encontram metáforas estranhamente poéticas para falar do seu trabalho: "a Natureza é uma amante ingrata", diz um deles, "não dá nada a bem." Muitos falam da Natureza como amante, vêem o seu trabalho como a desfloração de uma virgem, falam do imenso prazer da adrenalina.
O realizador teve o cuidado de evitar o maniqueísmo. Esta gente aplana colinas para fazer as novas zonas urbanas onde queremos construir as nossas casas, faz explodir e remove as entranhas da terra para encontrar o minério necessário às nossas ligações eléctricas, esburaca florestas para capturar o petróleo que alimenta os nossos carros. Trabalham para nós, para o nosso conforto e o nosso estilo de vida. Nós somos os predadores, eles são apenas o nosso braço direito. "Someone has to get this job done...", diz um deles. E a loucura não acaba: um deles acredita que dentro de dois ou três séculos este trabalho será feito em Marte.




Brecht, de Heinrich Breloer: um documentário de três horas que mistura vários géneros - imagens de arquivo, entrevistas e docudrama - para compor uma imagem muito multifacetada de Bertolt Brecht. Brecht e as mulheres, Brecht e o teatro, Brecht e a política, Brecht na História.
Gostei muito do documentário, e em particular dos momentos de entrevista à sua primeira namorada: ela conta a sua versão, e depois lê os apontamentos de Brecht sobre a vida dos dois e comenta "grande mentiroso!" ou "isto tem aqui muitas liberdades poéticas". Delicioso.
Notáveis são também as reconstruções dos momentos de criação, e do trabalho de encenação no palco do teatro Berliner Ensemble. Um Brecht genial, palpável, seguro do que faz, cheio de energia e amor ao teatro. Um Brecht apanhado na engrenagem de dois totalitarismos. E também um Brecht predador emocional, e o reforço da convicção: temos de separar o artista do carácter, caso contrário no fim só nos sobra o almanaque borda d‘agua Para ler. E mesmo esse...
Adele Neuhauser excelente no seu papel de Helene Weigel entre 1947 e 1956. Tom Shilling e Burghart Klaußner, os dois Brecht, também muito bons.
Disseram-me que este filme vai passar na Arte e na ARD em Março. Fiquem atentos.


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