19 janeiro 2019

"varanda" (2)

(foto: ap - aqui)


Em Berlim há uma #varanda muito digna de menção.
E se a varanda de uma terrinha como Weimar já deu uma história tão longa, preparem-se, porque a de Berlim tem ainda mais para contar.
(O que se segue é em grande parte síntese de um artigo de Stefan Reinecke publicado no TAZ a 8.11.2018, juntamente com informações e apartes meus.)

Falo da varanda sobre o portal IV do palácio do Kaiser, virada para o Lustgarten, o conjunto dos museus e a catedral. Como toda a gente sabe, foi dessa varanda que Karl Liebknecht proclamou a República no dia 9 de Novembro de 1918. Pois: parece que toda a gente sabe, mas não é verdade. O artigo do TAZ pelo qual tentei verificar o conjunto de informações soltas que tenho sobre esse dia afirma que o 9 de Novembro não terá sido uma das horas mais brilhantes do jornalismo alemão no que diz respeito à informação factual: a acreditar nas descrições dos três maiores jornais de Berlim, nesse dia Liebknecht terá chegado ao palácio por três lados diferentes. Um jornal informa que ele fez a proclamação da República a partir da varanda sobre o portal IV, outro afirma que foi de uma janela. Por sorte, cinquenta anos mais tarde, a 9.11.1968, o jornal Neues Deutschland, do partido único da RDA, soube relatar com segurança a versão que assim entraria para a História: "Ao som dos gritos de júbilo da multidão, a bandeira vermelha é içada no mastro imperial. Da varanda do palácio, Karl Liebkencht proclama a República Socialista Alemã".

Karl Liebknecht: saído da prisão em Outubro, onde cumprira pena por se ter oposto à primeira guerra mundial (ele e Rosa Luxemburgo não tinham conseguido compreender, e muito menos aceitar, a cedência dos socialistas aos propósitos do Kaiser de declarar guerra aos primos), andava por esses dias em febril actividade revolucionária. Mas era olhado com desconfiança, e não conseguia aliados, porque o mundo pacífico que prometia não batia certo com as notícias alarmantes que vinham da Rússia: o assassinato da família do czar e os traços cada vez mais ditatoriais dos bolcheviques. A esquerda alemã estava dividida em duas grandes correntes ideológicas - a revolucionária, de Liebknecht e do seu Spartacus, e a reformadora. Esta conseguiu antecipar-se no domínio dos acontecimentos: a República foi proclamada pelo social-democrata Scheidemann no Reichstag no dia 9.11.1918 às duas da tarde.

E Liebknecht? Não se sabe sequer se ele teve conhecimento do que estava a acontecer no Reichstag. Aparentemente, andava por Schöneberg e Steglitz, a proclamar a República Socialista de cima de um carro. E em algum momento terá chegado ao palácio do Kaiser, já sem protecção depois da abdicação do monarca, e terá subido a um andar superior. Mas chegou à famosa varanda? Ou abriu uma janela e gritou daí? Ninguém sabe dizê-lo com toda a segurança, excepto o jornal Neues Deutschland, naquela sua famosa edição de 1968.

A carta que Gertrud Müller enviou em 1967 ao Instituto do Marxismo-Leninismo, contando os acontecimentos que testemunhou nesse dia, foi ignorada. Aparentemente, ninguém queria saber da descrição de um Liebknecht a chegar ao palácio ao escurecer, e a assomar a uma janela parcamente iluminada por velas - a mesma janela de onde já dois homens tinham discursado para a multidão na praça, para a acalmar e evitar pilhagens.

É que uma janela mal iluminada combina mal com um herói. Tinha de ser uma varanda. E nem podia ser uma varanda qualquer. Escolheram aquela, por estar directamente ligada ao anúncio da guerra feito pelo Kaiser - a guerra que Liebknecht recusou liminarmente. A escolha do local para a História inventada (ou retocada, pelo menos) foi também o acto simbólico de voltar à encruzilhada de 1914, quando os sociais-democratas aceitaram a senda da guerra e se afastaram dos seus irmãos socialistas.

O palácio imperial foi atacado no Natal de 1918 e bombardeado no fim da guerra, em 1945. Em 1950, o regime decidiu destruí-lo inteiramente, para criar no centro de Berlim, junto ao seu novo Palácio da República, uma praça para as grandes manifestações, e para acabar com aquele símbolo do feudalismo. Mesmo assim, guardaram em lugar seguro alguns elementos mais significativos do edifício, que foi rebentado com 13 t de dinamite. E um desses elementos era a varanda da qual se dizia que foi a escolhida por Liebknecht para anunciar a República Socialista. Nos anos sessenta do século passado, a famosa varanda seria reconstruída a um par de metros de distância do seu lugar original, e integrada na fachada do moderno edifício do Conselho de Estado da RDA - mas em versão politicamente correcta: sem a águia imperial, por exemplo.
Diz o jornalista do TAZ: "À volta do portal de Liebknecht, essa relíquia socialista, foi construída uma casa para receber visitas de Estado. A política histórica do SED era tão subtil como uma carga de dinamite."

Em 1989 o muro caiu. Após a reunificação, o Palácio da República da RDA foi destruído numa manobra tão imperdoavelmente traiçoeira quanto pouco original: repetia o que o SED fizera ao palácio do Kaiser quatro décadas antes. Em Berlim nasceu um grupo muito forte que conseguiu impor a reconstrução do antigo palácio. Um pastiche de 700 milhões de euros.
 
Este novo edifício tem uma fachada barroca e um interior muito moderno, onde se exibirão as colecções que até agora estavam nos museus de Dahlem. Apesar do local, da fachada, e até de integrar alguns dos elementos arquitectónicos que foram salvos do palácio original, não se chama palácio imperial. É o Humboldt Forum. 

E a famosa varanda do Liebknecht lá está, novinha em folha, a poucos metros da original, a tal que foi reconstruída no meio de um edifício feioso dos anos sessenta da RDA.

Moral da história: quem estiver na ilha dos Museus e vir duas varandas iguais em edifícios diferentes, não precisa de desconfiar da quantidade de cervejas que bebeu.
Quem anda a beber demais, pelos vistos, é Berlim.

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O que se segue já não é sobre a varanda do Liebknecht, mas é um apontamento digno de nota: Karl Liebknecht continuou a sua linha de "tudo ou nada", como anotou no seu diário nesse 9 de Novembro. Recusou-se a entrar num governo com os sociais-democratas, por lhe parecer demasiado reformista e pouco ambicioso. Diz o jornal: "Liebknecht representa o esplendor e a miséria do radicalismo de esquerda, a coragem inabalável e o zelo cego, a energia infinita e o arrogante moralismo. Faltava-lhe o que Ebert e Scheidemann tinham em abundância: pragmatismo". Dois meses depois - fez agora cem anos -, seria assassinado, tal como Rosa Luxemburgo, em circunstâncias até hoje não inteiramente esclarecidas. Na Potsdamer Platz (junto à entrada para o metro U2, no início da Stresemann Strasse) há um pedestal em pedra para uma estátua de Liebknecht, que foi iniciativa da RDA em 1951, para lembrar o protesto do político contra a guerra, no primeiro de Maio de 1916, que o levaria à prisão até 1918. Mas, com a construção do muro de Berlim, o pedestal ficou esquecido naquela terra de ninguém entre o Leste e o Ocidente. Depois de 1989 foi desmontado, e mais tarde reconstruído no mesmo lugar.
Diz o jornal: "Liebknecht foi uma personagem trágica da História alemã: a revolução que sonhava não passou de uma miragem, e não conseguiu entender a revolução que aconteceu realmente.
Um pedestal sem estátua é disso uma boa metáfora." 


2 comentários:

Jaime Santos disse...

Os comunistas decidiram destruir o que sobrava de um edifício histórico, em jeito de vingança contra homens e um regime há muito morto. Os modernos democratas alemães decidiram fazer o mesmo. Já sei que se diz que o 'Palast der Republik' tinha que vir abaixo por causa do amianto, mas será que isso é mesmo verdade? De todo o modo, se o preço do novo pastiche foi de 700 M€, a pergunta não é o que os berlinenses andaram a beber, mas sim a fumar...

Ainda bem que entre nós não decidimos deitar abaixo a arquitectura salazarista (alguma dela bem feia, com o PdR o era). Além de fazer parte da História, fica como aviso...

Helena Araújo disse...

A destruição do Palácio da República foi um dos maiores erros do processo de reunificação.