"O medo é uma cena que não me assiste", mas desde ontem comecei a olhar para a gaveta das cuecas com outros olhos: de manhã, escolho as que não sejam embaraçosas se tiver de ir de urgência para um hospital. Sinto-me cansada e sem energia, estou desconcentrada. Ontem, quase a chegar a casa, ao fotografar uma bicicleta na rua dei-me conta de que me tinha esquecido da minha na outra estação da S-Bahn. Hoje fui passear com o Fox para o lago - a luz rasa do sol de Inverno tornava-o lindíssimo, mas não me apeteceu tirar fotografias - e ao regressar, a fome lembrou-me que tinha saído de casa para ir à padaria e não ao lago.
Os meios de comunicação social falam de uma população berlinense que não se deixa impressionar. "Máxima imperturbabilidade" é um título do Spiegel. Sinto que é um pouco diferente: as pessoas estão mais próximas, mais atentas umas às outras, mais pacientes. Notei ao atravessar a cidade de carro (não havia as típicas buzinadelas "sai da frente!"), e também no metro. É certo que quase todos estavam como habitualmente entregues aos seus sms, jogos de telemóvel, jornais ou livros, mas quando entrou um grupo de músicos pedintes com a artilharia toda (gravação, trompete e melódica) e se puseram a interpretar "Hit the road, Jack" muito alto e muito mal, eu fiz uma careta bem-humorada e todas as pessoas à minha volta se começaram a rir. Geralmente consigo a cumplicidade de uma - ou duas, no máximo.
Tenho espreitado a página do Bild, porque costuma dar informações antes dos outros e com mais detalhes, mas vou começar a evitá-la de novo. O tom, os pontos de exclamação, a barulheira visual e as restantes notícias que aparecem na página põem-me doente.
Volto ao Spiegel online, onde tantas vezes encontro palavras ponderadas e sábias, e noto mais uma vez a importância de meios de comunicação social sérios para reforçar o comportamento maduro de uma sociedade.
1.
Roland Nelles fala da descoberta da nossa vulnerabilidade, e apela para que permaneçamos razoáveis.
Razoável é: Não propagar ainda mais o ódio, a desconfiança entre alemães, estrangeiros, muçulmanos, o Ocidente ou o Sul, o Leste. Histeria, xenofobia, e desatar a bater em tudo o que mexe não resolve nenhum problema e não ajuda ninguém.
Razoável é: Não iludir e não silenciar. O suspeito parece ter entrado no país como refugiado. O que constitui um problema. Por isso é preciso falar nas falhas de segurança na entrada dos refugiados, e reduzi-las. É preciso corrigir o que está a correr mal, e essa é uma tarefa dos governos, dos parlamentos e dos órgãos de segurança.
Razoável é: Reconhecer a nossa força: a Alemanha é um alvo dos terroristas. Mas também é uma Democracia forte. As instituições do Estado funcionam. Há muito que se temia a ocorrência de um atentado como este. Não há segurança absoluta contra o terror. Mas os órgãos de segurança já conseguiram evitar muitos outros atentados. Os terroristas e os seus apoiantes no país e no estrangeiro podem ser e serão perseguidos sem contemplações. Temos, entre outros, o §129 do Código de Direito Penal [sobre formação de associações criminosas], temos o Sistema de Informações, os melhores Procuradores da República, as melhores unidades especiais da Polícia.
Razoável é: Bloquear o caminho dos semeadores de ódio: quem se aproveita da situação, como os cínicos da AfD, para virar as pessoas umas contra as outras, está a fazer o jogo dos terroristas. Eles querem dividir-nos, pôr-nos inseguros e criar um conflito de culturas. O seu ódio deve sempre dar origem a novo ódio. Este é o caminho que leva à perdição, e não o devemos fazer com eles.
2.
Algumas reacções nos jornais alemães:
Frankfurter Rundschau: Os terroristas têm sucesso. Além de provocar o medo e o choque, atiram outras pessoas para um frenesim cheio de ódio feito de fantasias violentas e raiva cega contra tudo o que é diferente. Naturalmente criam assim uma divisão no nosso país entre as pessoas tolerantes e solidárias e as pessoas intolerantes que se deixam orientar pela raiva e pelos medos. É óbvio que o barulho que fazem não nos deve iludir sobre a dimensão deste fenómeno de extrema-direita. São muitos, são demasiados. Mas estão longe de chegar ao número daqueles que não fazem alarde dos seus gestos de ajuda aos desfavorecidos, perseguidos, pobres e fragilizados. Esses que não papagueiam no twitter ou numa qualquer função de comentário a sua tolerância e disponibilidade para ajudar. Esses que acreditam no entendimento mútuo, na unidade, no equilíbrio social, na Democracia.
Stuttgarter Zeitung: Este ataque abalou a nossa sociedade. Mas ela é, apesar de todas as diferenças, suficientemente forte para dar a resposta correcta: os valores que defendemos podem ser atingidos por um acto de terror, mas não podem ser destruídos por ele. Caso contrário, isso seria uma vitória para o terror. São estas as ideias que nos devem orientar quando o processo de luto dos mortos de Berlim o permitir.
Berliner Morgenpost (cuja capa é a fotografia deste post): O ataque da Breitscheidplatz aproximou-nos involuntariamente do sentido original da festa de Natal. Que vale a loucura dos presentes comparada com o valor de um convívio simples, bom e em segurança? "Paz na Terra", anunciam os anjos celestiais, e sobretudo: "não tenhais medo". É essa a mensagem eternamente correcta, simultaneamente consolo e desafio. As celebrações religiosas de Natal vão estar cheias, os berlinenses irão procurar o convívio com os seus concidadãos ainda mais que habitualmente, nem que seja por meia hora. Seja na igreja, com amigos ou com a família, este ano é a proximidade humana que pode, deve e vai marcar o Natal berlinense.
Morgenpost (Hamburgo): Na capa escreve em letras grandes, sobre uma bola de pinheiro de Natal, "não há espaço para o ódio". E acrescenta: "o terror em Berlim e os semeadores de ódio: por que motivos é importante agora manter a calma."
3.
Bento, o segmento para jovens do Spiegel Online, tem um artigo sobre a interrupção do espectáculo do humorista Böhmermann (aquele que suscitou há tempos um debate acalorado devido ao poema satírico sobre o Erdogan) e do músico Olli Schulz, e partilha os vídeos que mostram os dois artistas consternados a improvisar no palco, procurando as palavras certas para a ocasião.
"Não sabemos o que dizer, mas esta não é a hora de continuar a fazer humor quando a 3 km daqui há pessoas a morrer. Quem quiser ir para casa pode ir, quem não quiser, ou tiver medo, pode ficar aqui. Quem tem pessoas lá fora, o melhor é sair e ir ver se estão bem. Muito importante: não espalhem rumores. Se acham que sabem alguma coisa, tirem os dedos do telemóvel e deixem a polícia fazer o seu trabalho. (...) Guardem os vossos bilhetes, havemos de descobrir uma solução. E ainda algo muito importante para todos: se tiverem o impulso de fazer uma manifestação para dizer que não nos deixamos destruir por isto, esqueçam. Morreram pessoas, é uma merda. Não há um sentimento certo sobre o que temos de ir apregoar por aí neste momento. Isso não significa que temos de nos apoucar e submeter, é simplesmente a decisão certa por uma questão de respeito. Vão para casa em segurança, vejam onde estão os vossos amigos, não espalhem boatos, e não dêem ouvidos aos cabrões que já estão a instrumentalizar isto para os seus objectivos políticos [muitos aplausos]. Recebemos agora uma informação: a polícia aconselha toda a gente a ir para casa. Vamos para casa."
4.
E algumas reacções de pessoas em Berlim:
José Lima, 44, designer, vive em Berlim, é de Portugal: "Temo que depois deste atentado se assista à "trumpetização" da política alemã. Pessoalmente, confio nas estatísticas segundo as quais é muito pouco provável ser-se vítima de um ataque terrorista na Alemanha. A minha vida vai continuar igual, vou aos mercados de Natal, levo os meus filhos à escola e vou trabalhar."
Wolf G., 63, consultor financeiro: "Sinto impotência. O terror não está a diminuir. Pelo contrário. E de cada vez são ditas as mesmas palavras. Como berlinense, não encontro nos mercados de Natal, por exemplo, o menor indício de um conceito de segurança pública. Preferia que a Política agisse de outra forma - e tenho a sensação de que noutras cidades, como Munique, já o faz. Aqui em Berlim, parece que ainda estão a aprender. A situação é muito difícil: não podemos de modo algum suspeitar indiscriminadamente de pessoas com aspecto de estrangeiro e ter medo deles, como por exemplo os refugiados menores não acompanhados. Mas ao mesmo tempo, muitas vezes tenho de me dizer isso racionalmente e fazer algo contra o sentimento de medo."
Niklas Schelten, 19, estudante: "A caminho do trabalho passei pelo local da tragédia, vi as flores e os polícias fortemente armados, é deprimente. Mas a minha vida continua tranquilamente. É mais provável morrer num acidente de automóvel. Além disso, com tantos polícias agora sinto-me mais seguro que antes."
Tamara: "Sinto-me horrivelmente, tenho a sensação de que já não se está seguro em lado nenhum. Agora foi em Berlim, no verão tínhamos reservado uma viagem a Nice, e aconteceu aquele ataque. Sou a favor de controlarem melhor quem vem como refugiado para a Alemanha. E penso que é tempo de acabar com os mal-entendidos em relação a nós e não a outros só por terem determinada religião ou nacionalidade, preconceitos. Por exemplo: eu sou muçulmana, gosto do Natal, também temos um pinheirinho em casa. Penso que o terror não tem religião, em todo o lado há crimes horrorosos."
Ali: "Muitas vezes damo-nos conta de que as pessoas olham para nós com medo, sobretudo porque a minha mulher usa a cabeça coberta."
4 comentários:
Gostei muito. Não imagino o que será estar perto de uma situação destas. Tenho muita dificuldade de explicar ao meu filho, 7 anos, sem simplificar demais e passando a mensagem que gostaria.
Por outro lado, é serviço público.
Eu repito-me, mas nestas alturas tenho mesmo de dizer que gosto tanto o que escreves! Sempre calma, ponderada, boas escolhas do que traduzir. Obrigada!
Paulo, conto muitas vezes esta história: quando fomos morar para Weimar, enganei-me no caminho para subir a encosta e em vez de ir ter ao supermercado fui parar às portas de Buchenwald. Os miúdos, de 5 e 7 anos, quiseram saber o que era aquilo. Falei-lhes de pessoas más que metiam na cadeia todas as pessoas que odiavam. Eles perguntaram o que é que eu teria feito nessa altura, eu respondi que não sabia, e devolvi a resposta: e vocês?
O Matthias, de 5 anos, disse: "eu perguntava-lhes porque é que eles fazem isso."
Tenho uma enorme confiança na capacidade das crianças para se defenderem - desde que os adultos lhes falem com verdade.
Obrigada, Goldfish. :)
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