22 novembro 2016

"acaso sou o guarda do meu irmão?" (2)

Conheço uma judia berlinense que em criança, em pleno programa de genocídio do povo judeu, foi protegida por uma mulher que era casada com um Blockwart (o "guarda do bloco", o nazi responsável por vigiar o que se passava num determinado núcleo habitacional). Durante bastante tempo teve uma vida relativamente normal, mas, quando se tornou claro que também ela seria deportada, a mulher escondeu-a numa cave. Foi ali que passou os últimos meses da guerra, deitada num colchão, até ser libertada por soldados russos. Tinha apenas sete anos. Estava num estado de terrível fraqueza, e os soldados russos tiveram de a alimentar com pequenas quantidades de leite condensado até o estômago conseguir suportar outros alimentos.

Conta ela que um dia - teria talvez cinco anos - escapou à vigilância para subir ao andar onde se tinha instalado recentemente uma família com crianças. Queria brincar com elas. Nesse preciso momento ouviu-se uma enorme confusão no pátio, e soldados subiram as escadas de roldão para levar a família. A mulher do guarda do bloco subiu também as escadas, e viu, horrorizada, que a sua protegida estava no meio das outras crianças.
- Que se passa aqui?, perguntou ela aos soldados.
- Viemos buscar uma família judia com cinco filhos.
- Ali estão seis. Aquela menina é minha.
- Então leve-a, e desapareça.
De volta ao apartamento no rés-do-chão, a miúda deslizou para uma janela, para ver o que se passava no pátio. O pai e quatro filhos já estavam dentro do camião, a mãe resistia ainda, com o bebé ao colo, que chorava. Um dos soldados agarrou no bebé pelas pernas e bateu-o contra o camião, uma e outra vez. Depois atirou o corpo inanimado para os braços da família.
A miúda de cinco anos olhou para as casas à volta: em todas as janelas havia alguém a olhar, e ninguém fez nada.

6 comentários:

Unknown disse...

o medo é um poderoso disuasor e continua hoje tão activo como então.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...



E que excelsa educação, ou "educação", teria tido esse "valente" (ou valente?) Soldado alemão, para fazer uma monstruosidade dessas? E o seu "ilustre" comandante?

Ou também sentiriam simplesmente o mesmo MEDO, ao agirem assim?...

E que excelsa educação estaremos nós a dar hoje às nossas Crianças, no nosso Mundo ocidental, moderno e desenvolvido (ou "desenvolvido", já não sei...)?

Temos mesmo a certeza de que ela é melhor do que a que receberam os Filhos da mui instruída e civilizada Alemanha pós-Bismarck?

E temos a certeza de que elas nunca fariam, em idêntica situação de MEDO, brutalidades como essa? Temos?

Helena Araújo disse...

Pois é...
No verão passado ouvi em Portugal afirmações tão estranhas sobre os refugiados, que não sei responder com certeza às tuas perguntas.

(E os massacres que soldados portugueses fizeram na guerra colonial? As crianças foram poupadas? Não sei - não se fala muito disso.)

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Pois é, Helena, fala-se seguramente muito menos da guerra de África aqui em Portugal, do que se fala do Holocausto na Alemanha, disso podes tu ter a certeza...

Como também ficas sabendo que o César, na inocência dos seus dez aninhos, já ouviu de um Colega de Turma (com pretensões a loirinho de olhos azuis, mas apenas um pouco menos moreno do que ele) um sonoro e inexplicável "Sai daqui, ó PRETO!", nos corredores duma Escola, supostamente educada e civilizada, do mui pedante e abastado bairro da Estrela, bem no centro da cosmopolita Lisboa.

Coitado, vai ter de se habituar bem cedo a lidar com a discriminação racial...

Helena Araújo disse...

Esse "vai ter de se habituar" doeu.
Quem devia ter de se habituar era o outro - habituar-se a um raspanete valente sempre que disse coisas dessas. Essa escola não tem professores? Essa criança não tem pais?

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Boas questões. Quanto aos Professores, acho que esse tipo de comportamento e de preconceitos nos Alunos é inculcado muito precocemente, em casa (e, dum modo geral, no meio onde se habita), e portanto quando se chega ao 2º Ciclo já é demasiado tarde para se fazer sentir a (eventual) boa influência dos Professores. Quanto aos Pais, pois já deves estar a ver a resposta: sim, essas Crianças geralmente têm Pais - e foi precisamente neles que elas beberam muito do que as fez serem assim...

E reconheço que, apesar de tudo, a Escola dele até deve ser das melhores de Lisboa, mesmo neste aspeto das inclusões. Aliás, ele vai integrar um Programa muito interessante, chamado "VoArte", que procura integrar os Alunos com NEE's (Necessidades Educativas Especiais) através da Arte - Dança, Música, Teatro.

Depois hei-de dar-te notícias dos resultados.