24 março 2016

agora faz de conta que eu era alemã, e fazia um texto sobre os portugueses assim mais ou menos como a Maria João Marques faz textos sobre os muçulmanos


(foto: Wolfgang Haut)


A Maria João Marques tem um dom especial para falar do que não sabe como se fosse uma especialista. Estou ansiosa por ler um texto seu sobre os marcianos, tenho a certeza que vou aprender imenso sobre esse povo tão fascinante.

Antes de começar a brincadeira de hoje, um apontamento: fiz este texto trocando muçulmanos por portugueses na Alemanha, mas também podia trocar os muçulmanos por alemães em Portugal (algo como: essa gente odiosa que vem para Portugal ganhar dinheiro à nossa custa e não tem o menor respeito pela nossa cultura, que trata as mulheres de forma inacreditável, impondo-lhes que fiquem em casa a criar os filhos até estes saírem da universidade, que se organiza em seitas obscuras sem moral nem lei em montes alentejanos, etc.). Não é difícil encontrar coisas horrorosas para dizer sobre um povo qualquer. Basta querer. Tenho a certeza que os portugueses se vão sentir ofendidos por este retrato que tracei sobre o nosso povo, e isso será pedagógico: mostra bem como é que muitos muçulmanos se sentirão ao ler o texto da Maria João Marques. Penso, por exemplo, nos muçulmanos da mesquita na qual foi realizada uma cerimónia ecuménica por iniciativa da presidência da República. Que dirão eles ao ler no Observador este retrato das pessoas que partilham a sua Fé?


Ora então, parafraseando o texto "je suis já nem sei o quê":


Há tempos fui à Chancelaria e encontrei-me com a delegada dos assuntos de emigração. Perguntei-lhe que respostas tinha, se tinha algumas, para os abusos dos direitos humanos que as portuguesas residentes na Alemanha sofrem nas suas comunidades, e para os abusos que os portugueses em geral cometem no nosso país.

A violência doméstica sobre as mulheres (que quantas vezes nem sabem falar e escrever alemão) e filhas e irmãs caso estas não façam aquilo que dá na real gana aos machos da casa. O lugar de absoluta subalternidade que é imposto às mulheres na Igreja. Os piropos com que incomodam as mulheres que andam no espaço público. A vinda em massa de portugueses que querem aproveitar os benefícios do Estado Social alemão. O abuso das leis de protecção do trabalhador sem respeitar a nossa moral do trabalho. A resistência a aprender a nossa língua. E... e... e...

A minha interlocutora disse meia dúzia de banalidades sobre tolerância e liberdade. Percebeu-se que não havia resposta nem, sequer, um esboço de tentativa. O que havia era a esperança que este caldo periclitante não explodisse depressa, que a Alemanha nunca tivesse de confrontar a realidade feia que as comunidades portuguesas cá residentes criaram - com a conivência dos fracos políticos alemães que morrem de medo de usar um discurso a que os excitadinhos irresponsáveis possam dar o epíteto de xenófobo.

Mas o caldo explodiu, e temos de falar nele. Por mim, confesso que estou muito saturada do mantra que reza que os portugueses são um povo de brandos costumes e muito respeitador de tudo e de todos. Os casos de criminalidade (desde droga até homicídios, passando por violência doméstica), a sobrecarga dos fundos de Segurança Social devido à entrada destes parasitas, e o atroz panorama da violência de género que conhecemos em Portugal - tudo isso é invenção de mal-intencionados e xenófobos, mas felizmente as provocações desta má rês são ignoradas pela gente de bem e esclarecida que dedica ao assunto o que ele merece: silêncio.

Dizer que a violência de género sobre as mulheres é norma para o português médio é um desvario a raiar o racismo do KKK. Chamar a atenção que para os homens portugueses uma mulher na rua é, no mínimo, o alvo natural da expressão do poder e do desejo masculino e, no máximo, merece ser violada se não cobrir o corpo como deve, é uma heresia. Afirmar que é um tremendo risco ter uma parte crescente da população alemã com estas ideias encantadoras sobre a condição feminina é ousadia que deve ser recompensada com insultos sonoros.

Mas esta desculpabilização do machismo e do oportunismo português tem um preço: damos rédea livre para que o pior de Portugal decorra no meio das cidades alemãs.

Não tenho soluções para o machismo, o oportunismo e os maus fígados dos portugueses. Mas sei que enquanto diligentemente fizermos por ignorar este mal sob o sol que cresce nas comunidades portuguesas residentes na Alemanha, enquanto não afirmarmos com contundência (inclusivamente judicial e penal) que os valores alemães são incompatíveis com o estatuto das mulheres em Portugal (um exemplo), estaremos a apimentar o caldo periclitante. O primeiro passo para resolver um problema costuma ser perceber onde está e qual é.

[Escusado será dizer que não é isto que penso dos portugueses. Haverá alguns que correspondem ao retrato traçado, mas não podemos generalizar desta maneira. Nem com os portugueses, nem com os muçulmanos.]


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