14 janeiro 2016

histórias de Berlim: um centro de formação para mulheres refugiadas



Esta semana estive num centro de formação de mulheres refugiadas, que funciona nas instalações de uma paróquia católica.

A responsável começou por contar o historial de serviço social da paróquia, nomeadamente no acolhimento e apoio a pessoas sem-abrigo, e o momento em que se aperceberam da situação dramática das pessoas que pedem asilo à Alemanha e ficam num autêntico limbo social, enquanto o sistema não decide se podem ficar ou se têm de partir. Foi há quatro anos. Um grupo de voluntárias dessa paróquia juntou-se para sonhar uma solução, e para rezar pedindo uma inspiração. Tempos depois, aconteceu de uma senhora ir falar com elas, para saber pormenores do projecto e das necessidades financeiras. Mal preparada, a actual responsável atirou uma quantia, praticamente às cegas. A senhora deu o dobro. Era a herança que recebera de um filho que morreu, e que ela queria aplicar no serviço aos mais frágeis desta sociedade. Esse dinheiro permitiu financiar os dois primeiros anos do centro de formação. Tentaram continuar com apoio estatal, mas infelizmente as instalações não cumprem os requisitos mínimos dos regulamentos alemães (detalhes como o tamanho ou a altura das mesas, a largura dos corredores, etc.), pelo que não pode ter financiamento do Estado. Desesperada, pediu ajuda a paróquias berlinenses com mais dinheiro, e recebeu-a. O centro de formação dá agora aulas a cerca de 100 mulheres, e as mulheres do primeiro grupo que recebeu aulas já estão todas bem integradas na sociedade alemã, têm trabalho e vivem numa casa com um contrato de arrendamento normal (um problema gravíssimo dos refugiados). Em 2015, quando começou a enorme vaga de refugiados, o centro já tinha alguns anos de experiência, e uma rede de voluntários e instituições a funcionar. O movimento de solidariedade que desde então anima a sociedade alemã, levando as pessoas a dar coisas e o seu próprio trabalho ou espaço para ajudar os refugiados, encontrou neste grupo um interlocutor válido, e mais voluntários vieram juntar-se ao projecto. Muitos deles são ateus ou de outras religiões, mas não se importam nada de trabalhar num centro católico. A única coisa que lhes interessa é que ali existe uma estrutura que funciona de forma organizada.

O trabalho aumentou imenso, mas a responsável do projecto sente-me mais calma do que nunca. Na sua voz de sereno entusiasmo, diz-nos: este é um momento histórico, um tempo em que vemos com muita clareza que está nas nossas mãos fazer do nosso mundo um lugar melhor, e vemos que isso é possível. O seu grupo está bem preparado e tem uma rede sólida de apoio. O trabalho dá resultados muito positivos. Além disso, sente que recebe dos refugiados muito mais do que lhes dá. Ganhou uma nova família, e sente-me grata e comovida por isso.

Retive algumas das histórias que contou, e frases simples que revelam os valores que a movem:

- O casal que veio da Somália. Na travessia da Europa, a mulher teve dois abortos. O primeiro, por ter sido vítima de violência em Itália ("não foi em África, não foi na travessia do mediterrâneo - foi na nossa Europa!"), o segundo ao chegar a Berlim. O centro arranjou um hospital que a operasse. Terceira gravidez, anunciada com alegria na paróquia. Um aborto espontâneo na véspera de Natal, e a responsável do centro a visitar o casal no hospital, no dia 25 de Dezembro. Ia triste, preparada para o pior, procurando palavras de consolo, e deu com eles sentados no quarto, a ver um filme de índios. Ao notar o seu desconcerto, sorriram-lhe, e explicaram que o filho deles repousava em paz na mão de Deus.
Perguntou-nos: "É preciso virem muçulmanos da Somália darem-nos uma lição de Fé tão simples?!"
A mulher continuou a frequentar o curso, o marido vinha todas as semanas limpar as escadas dos edifícios paroquiais, sem pedir dinheiro. Aos protestos do pessoal do centro, respondia "vocês são a minha família, e a gente tem de ajudar a família". Entretanto nasceu o filho tão almejado, e ele aceitou a proibição de limpar as escadas, porque esse tempo é mais bem ocupado em casa, a tratar do filho.
"E dizem por aí que esta gente é impossível de integrar", rematava a responsável.

- A mulher na sala de convívio, com a tv ligada num noticiário onde se falava da rota dos Balcãs como a mais perigosa de todas, que de repente começa a contar: "É, sim. Foi terrível. Eu não perdi o meu filho, mas vi outras, caídas na berma da estrada, as saias cheias de sangue. Não podíamos parar, continuávamos, elas ficavam lá. Olha, passas-me o açúcar?"
Que se diz a uma mulher que viveu acontecimentos tão traumáticos? Como reagir no momento em que ela revela um pouco do inferno das suas recordações? Quererá conversar? Precisa de um abraço? Que fazer com estes que são tão diferentes dos nossos pais e avós (que se recusavam a falar connosco sobre o que viveram na guerra, e não nos ensinaram a falar sobre situações traumáticas)?
Perguntas que todos se fazem nesse centro. Felizmente têm apoio exterior de profissionais, fazem cursos de formação para poder responder a estas e muitas outras situações. Sem essa rede de apoio, não conseguiriam fazer o trabalho e manter o equilíbrio emocional.

- Temos de saber ensinar de forma positiva. Não podemos dizer "isso aqui não se faz!"
Para mudar alguma coisa é preciso saber ouvir, entender e explicar.

- Também nós precisamos de quem nos explique algumas coisas, e ela fá-lo. Refere, por exemplo, aquilo que na sociedade alemã é vista como um problema: os apartamentos que são alugados a uma família de 4 pessoas, e onde ao fim de alguns dias se amontoam já 15 ou 20. Diz que essas pessoas vêm de culturas que têm outra ligação com o espaço, estão habituadas a partilhar espaços reduzidos, de modo a acolher toda a família. Não se estão a rir de nós e das nossas regras. Para nós, é difícil entender isso, mas para eles é normal.

- A maior parte das pessoas que ajudam no trabalho com os refugiados são jovens. Vêm com entusiasmo e sentido de responsabilidade. Parece que encontram neste serviço um sentido para a sua vida.

- Faz questão de ter uma escola só para mulheres. Numa primeira fase, elas precisam de ter um acompanhamento especial, e só quando se sentirem seguras se pode passar para uma nova fase do processo de integração.

- Uma vez apareceu lá uma mulher de burca. Houve um movimento generalizado de protesto: as alemãs, porque a burca nega valores fundamentais desta sociedade; algumas muçulmanas, porque repudiam essa escolha; e ainda várias mulheres que estavam profundamente traumatizadas por terem sido vítimas de fundamentalistas islâmicos. A mulher tirou a burca, mas a tensão entre elas continuou. Mesmo sem burca, as outras mulheres não conseguiam suportar a sua presença. Foi reconduzida para outro centro de formação.
A responsável tem um ar doce e compreensivo, mas não tem dúvidas em afastar quem não sabe aproveitar a oferta, ou quem não respeita certos valores. Conta a história de um pequeno-almoço organizado para homens (alemães) sem-abrigo. Era verão, e as adolescentes que andavam a servir os cafés vinham com roupas muito frescas. Um dos sem-abrigo não tirava os olhos de cobiça de uma das miúdas (pela descrição, teria um top extremamente curto), e já ia levantar a mão para lhe tocar quando foi posto no seu lugar pela responsável: "nesta casa não se permitem mirones, e muito menos assédio; se não sabe controlar os seus impulsos vai ter de ir para outro sítio". Mas também pediu à miúda que da próxima vez que viesse participar num evento com homens sem-abrigo trouxesse uma t-shirt que lhe cobrisse o tronco.

- Os problemas maiores que  prevê são de habitação (arranjar alojamento digno para todos) e de trabalho. Os refugiados que conhece do centro consideram que é indigno viver da caridade alheia, fazem questão de trabalhar. A entrada na Alemanha de tantas pessoas com esta ânsia de arranjar emprego vai provocar tensões graves no mercado de trabalho.

- Um dos problemas das mulheres que frequentam o curso de integração são os transportes. Elas vêm de todos os cantos da cidade, porque se sentem bem acompanhadas naquele centro, mas precisam de bilhetes para os transportes públicos. Se forem apanhadas num autocarro sem bilhete, correm o risco de serem enviadas para outro Estado, e recomeçar tudo de novo: registo, pedido de ajuda, processo de adaptação. O centro gasta quase 2000 euros por ano em transportes para as suas alunas.

- O sonho dela é fazer uma escola bem maior. Mil alunos. Mas não é uma escola onde os refugiados vão apenas receber. Também devem dar, ensinar aos alemães aquilo que sabem: cozinha árabe, artesanato, profissões técnicas. Entre os refugiados afegãos há muitos pastores e homens que sabem algo realmente especial: como montar um burro. Parece que não é nada fácil, mas eles podem ensinar. Nós rimo-nos - saber montar um burro não é propriamente algo fundamental para a vida em Berlim. Mas teria a sua graça levar lá os nossos miúdos a aprender com um homem das montanhas afegãs como é que se anda de burro.
Falamos do que seria necessário para essa escola. Ela já tem quem lhe dê o dinheiro para comprar o edifício, e nós ficamos de o procurar. Talvez, talvez. Ela abre-se um pouco mais, avisa que vai fazer um testemunho pessoal de Fé, e diz: acredito que quando Deus se sente entusiasmado por uma coisa, as soluções aparecem.

No fim, pede um impulso bíblico para a oração com que encerrará o encontro, e um de nós tira à sorte um papelinho de um saco. É do Livro do Apocalipse, 21: 1.

"E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe."

Parece que Deus anda mesmo entusiasmado com isto.


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