Queria ter escrito, mas meteram-se aquelas traduções dos media alemães pelo meio, e uma coisa e outra, e agora o ministro antecipou-se-me, afirmando que “o modelo anterior, dos exames, não estava só errado, era acima de tudo nocivo: treinar para os exames é pernicioso e nocivo. As mudanças agora introduzidas estão cimentadas em estudos nacionais e internacionais, que já estavam feitos e que nos dizem claramente isso, que os exames só devem ser aplicados numa fase mais avançada da aprendizagem”. Acrescenta que “é urgente restituir à escola a sua função principal, que é a de ensinar e criar soluções para que se possa aprender melhor”. Ora, “a escola estava-se a moldar ao processo dos exames, ao treinar para os testes, o que resulta num empobrecimento” da aprendizagem. Era preciso, acrescentou, “intervir para devolver a normalidade às escolas e dar aos professores uma indicação clara de que podem dedicar-se à atividade principal, que é a da aprendizagem”.
(texto tirado desta notícia no Sol)
Não sei que me parece pior: se é um ministro da Educação ter de explicar algo tão evidente no ano da graça de 2016, ou se, nessa mesma época da nossa civilização, um pai achar bem uma situação como esta (e agora passo a citar a crónica do João Miguel Tavares): "Um ano de exames e de fim de ciclo é sempre um ano diferente, e trabalha-se para isso durante nove meses. Para uma criança empenhada na escola, o ano lectivo que está a frequentar não é, como para um adulto licenciado, apenas um de entre 15 anos de estudo – é a vida dela, toda, inteira, naquele momento."
Uma criança a frequentar a escola durante nove meses com o objectivo de trabalhar para o exame do fim do ano lectivo?!
E um ano com exame é a vida toda da criança, inteira, naquele momento?!
Vejo que os meus filhos escaparam de boa. Andaram num sistema de ensino que não vê as coisas assim. A professora da primeira classe de um deles comentou uma vez comigo: "estes miúdos têm uma sede enorme de aprender. Cabe aos professores responder a essa sede, e manter viva essa vontade de aprender cada vez mais." O resultado estava à vista: gostavam tanto de ir à escola que até doentes, com febre, me suplicavam que os deixasse ir. Nenhum deles organizava a sua vida em função do exame - excepto no caso do "Abi", no fim do secundário. Mas aprenderam a trabalhar com seriedade e gosto. Por exemplo, nos milhentos trabalhos de pesquisa e apresentação de resultados perante a turma, que começaram a fazer logo aos seis anos. Trabalhos em cuja preparação eles se empenhavam imenso para os fazer o melhor que conseguiam, e com perguntas e avaliações feitas pelos colegas: "gostei muito, especialmente da introdução" ou "penso que te perdeste um pouco em pormenores" ou "gostava que tivesses falado mais sobre esta questão concreta". Aqui estão dois elementos que não há nos exames: o aluno a estudar de forma autónoma, preparando algo para apresentar em público, e os colegas que, ao criticar, desenvolvem também critérios de qualidade para o seu próprio trabalho. Em vez de aprender para as perguntas de um exame, cheio de medo de falhar, e sem receber um feed back detalhado sobre a qualidade do seu trabalho e o que pode melhorar.
Nas escolas que os meus filhos frequentaram, as provas de aferição não eram um exame para o qual eles trabalhavam ao longo de 9 meses, eram algo de que os pais nem se apercebiam. Os alunos viviam isso sem qualquer drama. Afinal de contas, era apenas o ministério que queria ficar com uma ideia de como é que as coisas estavam a correr às escolas. Nunca me revelaram o resultado da avaliação das provas dos meus filhos. E para quê, afinal? Não eram os meus filhos que estavam a ser avaliados, era o funcionamento daquele sistema de ensino.
A propósito deste tema, perguntaram há tempos à Catarina Martins se quereria ser operada por um cirurgião que em vez de testado na escola tenha sido feliz na escola. Ora bem: qual é a dúvida?
Perguntem-me se quero ser tratada por um médico que na escola primária trabalhou nove meses para o exame, ou um que todos os meses tinha de escolher um tema, estudá-lo e apresentá-lo aos colegas de turma - além da estudar as matérias normais do programa.
Perguntem-me se quero ser tratada por um médico que enquanto aluno trabalhava para os exames durante nove meses, ou por um que gostava de ir à escola porque lhe dava imenso prazer aprender (sublinhe-se a palavra "aprender"), e que, além do gozo de aprender, também arranjava tempo para fazer desporto, estar com amigos, ler livros de BD, tocar numa banda de garagem.
Perguntem-me se quero ser tratada por um médico que se formou com 18 valores mas não fez mais nada durante o tempo universitário a não ser preparar-se para os exames, ou por um médico que se formou com 10 valores (ou seja: que fez prova de um conjunto de conhecimentos considerado suficiente), mas enquanto estudante fazia voluntariado num hospital de pobres no terceiro mundo.
Aprender não tem de ser um exercício fundado no medo do exame.
E muitas vezes o exame é a pior maneira de tentar aferir o saber e as competências do aluno.
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Adenda, a propósito de um comentário: um estudante de medicina que nas férias vai fazer voluntariado no terceiro mundo é uma pessoa que revela um enorme amor ao ser humano e à profissão que escolheu. E passar umas temporadas num hospital do terceiro mundo dá muita maturidade. Tudo isto são qualidades que me agradam muito num médico.
Obviamente, trata-se de uma experiência de formação extra-curricular, que se soma à formação normal a que todos os outros estudantes de medicina (a parte teórica e a parte prática) têm acesso.
8 comentários:
Bons argumentos mas acho que num caso se deixou levar pelo entusiasmo. Se bem que eu tenha algum receio de ser tratado por um médico que se formou com 18 valores, por receio da minha doença não ser suficientemente interessante sob um ponto de vista científico, não considero que sob um ponto de vista pessoal do doente ele tenha vantagem em ser examinado por um médico que fez voluntariado num país do terceiro mundo. Essa experiência será boa para a humanidade em geral mas não vejo qual a vantagem para um doente que não seja do terceiro mundo.
jj.amarante,
um estudante de medicina que nas férias vai fazer voluntariado no terceiro mundo é uma pessoa que revela um enorme amor ao ser humano e à profissão que escolheu. E passar umas temporadas num hospital do terceiro mundo dá muita maturidade (que é uma qualidade que me agrada num médico).
Agora, não se esqueça que muito do trabalho com o doente se aprende depois do último exame na faculdade de medicina. Nem sei como é que isso se chama em Portugal, mas na Alemanha há o ano prático depois da parte teórica do curso, e a seguir há dois anos de aprendizagem acompanhada. Mais tarde virá o exame da especialidade. Ou seja: pode ficar descansado, que não vai ser tratado com os conhecimentos que a pessoa aprendeu num hospital do terceiro mundo. Vai ser tratado por alguém que teve oportunidade de aprender o mesmo que os outros médicos formados no seu país, e além disso revelou desde muito cedo um entusiasmo particular pelo trabalho de médico.
Aqui em Portugal também há formação "depois do último exame da faculdade de medicina". Formamos bem os médicos durante e depois do curso e as nossas estatísticas de saúde são muito mais comparáveis com a média Europeia do que, por exemplo, na área da economia. E os nossos médicos e o SNS em geral têm um registo de tratamento competente de analfabetos que têm demorado imenso tempo a "sair" das estatísticas. Onde tenho mais dúvidas é na eficácia da gestão dos serviços de apoio e da logística dos aprovisionamentos do SNS.
Pois é: apesar dos desvarios e do facilitismo a que alegadamente o sistema de educação português tem andado sujeito, os profissionais portugueses são muito bons e podem comparar-se sem medo com os formados noutros países desenvolvidos.
Este tema dos exames leva sempre a argumentos extremados. Os exames valiam aproximadamente uns 30% da nota, pelo que o ano lectivo não se esgota em estudar para o exame. Nem sequer impede que se façam apresentações para a turma e trabalhos de pesquisa. A avaliação por exame é importante, tão importante como a avaliação da participação nas aulas e a avaliação pelos trabalhos. Em qualquer idade.
O ministro tem uma argumentação fraquinha neste contexto, porque a verdade é que teve o bom senso de não eliminar os exames - inventou umas provas de aferição que, como servem para avaliar as escolas e os professores mas não os alunos, vão ser exactamente como os exames para quem exerce pressão sobre os alunos, com a agravante de serem injustos porque só uma parte da equação - os professores - está preocupado com eles. Os miúdos mais pequenos também, mas os seus pais e os alunos mais velhos não. É uma péssima solução, mas que cai politicamente bem e traz ganhos de curto prazo para todos.
MO, eu estava a falar da crónica do João Miguel Tavares, e em especial da afirmação dele de que, havendo exame, 9 meses do ano lectivo se orientam em função disso. Aquela afirmação pareceu-me o absoluto contrário do que a escola deve ser. A escola deve preparar para aprender, e não para ter boas notas nos exames.
Quanto ao que diz:
- Porque é que defende que a avaliação por exame é importante, e em qualquer idade?
- Sobre as provas de aferição: a experiência que tenho é que não provocam stress aos alunos.
Helena, a crónica do JMT nem sequer me merece comentários.
Começo pelo fim. A diferença entre os exames e as provas de aferição reside na posição dos avaliados: os exames servem para avaliar professores e alunos; as provas de aferição servem apenas para avaliar professores. Logo aqui são injustas e os professores, que conduzem os trabalhos escolares, conferem-lhes a devida importância. Na minha limitada experiência - o meu filho teve provas de aferição na segunda classe - os professores têm grande preocupação com as provas de aferição.
A avaliação por exame é importante na aferição do conhecimento na maior igualdade possível. As apresentações e trabalhos nas aulas - que eu considero absolutamente essenciais na avaliação - incorporam aspectos que vão muito além das matérias dadas nas aulas e beneficiam largamente os alunos com um ambiente familiar culturalmente mais elevado, principalmente nos primeiros anos do ensino. Os testes / exames tendem a benficiar menos desta vantagem cultural, pelo que contribuem para nivelar melhor os resultados.
Finalmente, os exames nacionais têm grandes benefícios para o sistema de ensino, já que constituem um pilar (há outros importantíssimos) para perceber onde estão os problemas numa sistema de ensino nacional e encontrar estratégias para os atacar. A escola pública obrigatória tem que conseguir assegurar mobilidade social e tem que ser escrutinada publicamente.
Oh, que azar o meu: pois se só estava a falar da crónica do JMT! ;)
O facto de ele escrever como se fosse regra no país inteiro que um ano de exame é diferente dos outros, porque se trabalha 9 meses para o exame, merece comentário. Se ele não é o único português a pensar assim, isto tem de ser debatido: a escola prepara para o exame, ou para aprender a aprender?
Quanto ao resto do que diz, concordo em parte, discordo em parte.
Mas de momento não tenho tempo para explicar com mais vagar, desculpe.
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