05 novembro 2015

eu até podia ajudar os refugiados, mas não tenho tempo porque estou a preparar uma festa de Natal...




Ontem interrompi precipitadamente a tradução do guia para quem quer ajudar refugiados porque já estava atrasada para um encontro com o meu grupo de casais católicos. As reuniões são mensais, mas eu tenho andado a fazer gazeta por motivos vários. Ontem, imersa na tradução, pensei faltar de novo, mas acabei por ir - e aprendi imenso. Em pinceladas largas, um desenho de cores escuras:

1. Um dos casais esteve a falar do apoio que tem dado aos refugiados. Começou com um gesto muito simples: no regresso do trabalho, o J. parou no pavilhão da Messe de Berlim onde meteram mil refugiados. Perguntou se precisavam de ajuda, e agora passa lá todos os seus fins de tarde. Irrita-se com o caos, com a confusão de regulamentos contraditórios e incompreensíveis, com o mau funcionamento, com alguém que comande tudo aquilo com competência e distanciamento. Sente-se derrotado pelas condições: há algumas barreiras visuais, mas nenhuma barreira para os sons - o barulho de mil pessoas é permanente, dia e noite. Sente-se impotente perante a falta de perspectivas: aquelas pessoas nada mais fazem além de esperar, esperar três meses para serem recebidas numa repartição pública, esperar mais três meses para eventualmente poderem começar a procurar trabalho (que dificilmente encontrarão), esperar uma infinidade de tempo até que alguém tenha a coragem de lhes alugar uma casa. E terminou o seu relato dizendo, com um nó na garganta, que nunca imaginou ser possível zangar-se tanto com alguma coisa, ou comover-se tanto com a gratidão de desconhecidos.

2. A M. falou das aulas de alemão que começou a dar, e de como se sente tocada por aquela ânsia de aprender a língua deste país apesar da barulheira do pavilhão, da confusão de gente de todas as idades, das entradas e saídas do espaço mal fechado.

3. As cenas de violência surgem quotidianamente:
- Durante uma aula de alemão, um rapazinho enfia com toda a força o seu lápis na barriga de outro miúdo que está sossegado a ouvir. O agredido dá-lhe uma bofetada. A mãe do primeiro agressor bate no segundo. Nenhum deles fala uma língua ocidental. A professora chama a segurança do pavilhão.
- Para além da zona de dormitórios, há um espaço reservado para as crianças brincarem, e outro para sala de oração. É neste que os voluntários dão aulas de alemão. Um professor começa a reunir os alunos, na sua maioria mulheres e crianças. De repente aparece um homem que lhes dá uma descompustura irada em árabe. Amarfanhadas, as mulheres fazem-se pequenas. Alguém explica ao professor que o homem está furioso porque "não se descalçaram antes de entrar na mesquita". O professor diz que aquilo não é uma mesquita, é uma sala de oração para todas as confissões, e que é fundamental que as pessoas se habituem à ideia de que na Alemanha há espaço para todas as religiões.
Percebo o professor alemão, e percebo o homem zangado: ninguém devia andar calçado no local onde ele reza. E gostava de dizer isto às mulheres que se fizeram pequeninas: ergam a cabeça! ponham esse homem no seu lugar! neste país ninguém tem o direito de vos falar nesse tom.

4. Um rapaz conta que quer ir o mais depressa possível para Inglaterra. Os amigos que lá tem dizem-lhe, pela internet, que lhe arranjam alojamento e trabalho, mesmo sendo ilegal. Ficando em Berlim, vai perder pelo menos seis meses neste limbo de pavilhões e espera, espera, espera.  Diz que em duas semanas chega lá, e então... Vão deixá-lo ir, claro que vão. Aquele pavilhão é um serviço de acolhimento, não é uma prisão.

5. Alguém teve a ideia peregrina de dar vouchers de 50 euros aos refugiados sem alojamento, para poderem dormir algures. E logo surgiram espertalhões que compram os vouchers aos refugiados por 20 euros, e vão depois cobrar 50 ao Estado. Mais grave ainda: como os vouchers dos sem-abrigo são de 20 euros, estes já não são aceites nos lugares onde costumavam dormir, porque os refugiados rendem mais.
Mero exemplo para mostrar que o ritmo dos acontecimentos não está a deixar espaço para o Estado tomar as decisões de cabeça fria.

6. Um dos refugiados registado no pavilhão não aguentou mais o ambiente, e arranjou casas onde o deixam ficar. Primeiro a casa dos meus amigos, enquanto eles faziam férias em Espanha. De momento está na casa de amigos deles, mas quando regressarem das férias ele não tem para onde ir. É cristão (a minha amiga já tinha desconfiado: viu que rezava discretamente antes de começar a comer), mas pediu para eles não revelarem esse segredo no pavilhão de refugiados.
Quando se foi embora, deixou no frigorífico dos meus amigos embalagens com data de validade vencida há anos. Haverá alguém que está a aproveitar as dificuldades financeiras dos refugiados (têm 4 euros por dia para comer) para lhes vender comida estragada?

7. O director de um centro de investigação universitário contou que reuniu com colegas e juristas para ver a possibilidade de oferecer estágios não remunerados a alguns refugiados, para eles estarem ocupados legalmente e se irem preparando para o mundo do trabalho alemão. Concluíram que a situação jurídica é muito complicada, e que o máximo que podem oferecer é tutorials. Também não é boa ideia mudar o enquadramento jurídico e abrir excepções para os refugiados: agora que - finalmente! - conseguiram impor o salário mínimo, não é boa ideia deixar abrir uma brecha legal para trabalho não remunerado.

8. Uma proposta: olhar de forma racional para os problemas e as oportunidades. Todos os refugiados têm direito a ser ajudados, e receberão ajuda. Mas os refugiados que têm formação e experiência profissional em áreas interessantes para a economia deviam ser imediatamente conduzidos para os locais onde são necessários, em vez de ficarem pelo menos seis meses à espera de regularizarem o processo.

9. Isto é só o princípio da crise europeia de refugiados. Se respeitarmos os tratados internacionais e acolhermos todos os refugiados de regiões em guerra, vão seguir-se muitos milhões. Não é só a Síria, são todas as regiões explosivas do continente.
Como fazer face a isto?

10. Como manter a identidade europeia? O que é isso, aliás? O que queremos conservar da nossa identidade, o que podemos deixar mudar? Que riscos corremos?
Alguém que esteve recentemente em Israel contou que todos aqueles com quem falava mostravam apreensão: "vocês sabem mesmo o que estão a fazer? vão ser invadidos por dentro!"
Eles devem saber bem do que falam: foi a partir de uma catástrofe humanitária que se instalaram na região onde vivia outro povo. Lembro o que conta Elias Chacour sobre a fatal reunião na sua aldeia natal, na Palestina dos anos 40, na qual foi decidido acolher generosamente os judeus que tinham sofrido tanto na Europa, e dar-lhes até as melhores divisões das suas casas. Algum tempo depois a aldeia foi evacuada, e assistiram de longe ao seu bombardeamento. Hoje em dia, nem o seu nome existe.

A história do nosso mundo é feita de vagas de migrações - será que estamos no limiar de uma nova vaga? Como nos posicionamos perante tal momento histórico? Fechar fronteiras é um disparate, uma ingenuidade. Se nem o muro da RDA era estanque!

11. E como estamos de meios financeiros? A população alemã também é móvel. Os nossos filhos procuram trabalho noutros países e continentes. Para alimentar uma família de refugiados em Leipzig, por exemplo, são necessárias duas famílias de rendimentos altos. Se estas famílias se deslocam para outro país, como será possível ajudar a de refugiados?

12. Dois livros:
- In the Sea There are Crocodiles: The True Story of Enaiatollah Akbari - a história de um rapazinho de 10 anos, afegão, que andou quatro anos até chegar à Europa.
- The Savage Continent: Europe in the Aftermath of World War II - livro que conta a situação catastrófica da Europa no fim da guerra
(Comentários dos alemães: só podia ter sido escrito por um inglês, porque nenhum alemão se atreveria a descrever assim o sofrimento que assolou este país. A crise de refugiados na Alemanha na segunda metade dos anos quarenta foi incomparavelmente maior que a de hoje, mas eram pessoas com o mesmo universo cultural e a mesma língua.)

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Não consigo deixar de pensar nos refugiados amontoados num pavilhão aqui perto da minha casa.
Eu até podia ajudar alguns, mas não tenho tempo porque estou a preparar uma festa de Natal, e tenho o cão, e os meus vizinhos são judeus, e hoje está a chover...


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