(fonte)
Nem tudo terá sido libertação. Que o digam as mulheres violadas (as mulheres com sífilis, as mulheres grávidas de sabe-se lá que soldado inimigo num país que proibia a interrupção voluntária da gravidez, as mulheres que se suicidaram por estarem desonradas - e foi apenas há 70 anos, num país desenvolvido no centro da Europa), que o digam as vítimas de bombardeamentos deliberadamente selvagens sobre cidades cheias de refugiados, que o digam os museus assaltados e o património cultural que era da Humanidade e foi destruído com o objectivo de descoroçoar os alemães, que o digam as empresas saqueadas pelo plano Morgenthau e pela União Soviética, que o digam os dois lados da Alemanha rasgada, ocupados durante mais de quatro décadas por potências inimigas. Nem tudo terá sido libertação, mas a ideia de exércitos libertadores, em vez de vencedores, tem uma grandeza que remete para lá das tragédias concretas dos dias. Às vezes a História precisa de palavras enormes para avançar.
Outras vezes, contudo, há palavras enormes que atiram a História para lugares terríveis. III Reich, Guerra Santa. Como destrinçar umas e outras? Pelos valores que lhes estão subjacentes, e pelos frutos que dão.
A palavra "libertação" tem dado frutos bons. Como o que acontece este fim-de-semana em Berlim. Na Breitscheidplatz, junto à "Igreja da Memória" (para não zarparem já em maravilhosas metáforas esclareço que o nome completo é "Igreja da Memória do Imperador Guilherme") há uma Festa da Paz com debates, workshops e concertos. O programa diz tudo sobre os valores que animam esta festa: lembrar as vítimas, ousar caminhos para a paz, festejar a diversidade.
Do site da Festa da Paz (e em tradução rapidíssima):
Ambos foram testemunhas do seu tempo, Adolf Hitler e Mohandas Karmachand Gandhi. Ambos se referiam a Deus, agiam sob o símbolo da suástica, e eram considerados o exemplo personificado da amplitude das qualidades humanas. Um deles na destrutividade da sua megalomania, o outro na modéstia da sua sabedoria tranquila.
A análise destes dois actores da História devia ajudar os políticos de hoje a este entendimento essencial: só uma mudança de paradigma para uma cultura da não-violência pode permitir escapar à loucura da competição mundial dos megalómanos. Só aqueles que agem com empatia e altruísmo serão capazes de pôr em prática, a favor das gerações futuras, o espírito das Nações Unidas e do Direito Internacional. É preciso muita coragem para ultrapassar os mecanismos da pretensa "masculinidade" e para trazer a solidariedade, a cooperação, a honestidade e a sabedoria para o centro do nosso agir.
Setenta anos depois daquele terrível período, é disto que se fala em Berlim.
Hoje, sexta-feira, às cinco da tarde, haverá um concerto com Esther Bejarano & Microphone Mafia. Já falei aqui sobre a Esther Bejarano e a sua banda. Da entrevista à mulher que tocou na orquestra de Auschwitz, que traduzi nesse post, retiro a sua apresentação da banda:
"Na Microphone Mafia encontram-se três gerações e três religiões num palco. Entre outros temos um muçulmano, um católico – e eu e o meu filho, que somos judeus. Queremos ser um exemplo para todos os que pensam que as pessoas que têm raízes diferentes não podem viver em harmonia umas com as outras. Nós entendemo-nos lindamente."
O programa da festa está aqui (em alemão). A quem estiver em Berlim por estes dias aconselho vivamente uma passagem pela Breitscheidplatz.
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