31 agosto 2014
beim schlafengehen
Fui hoje cheia de curiosidade ouvir as quatro últimas canções do Strauss cantadas pela Netrebko. Ora bem: podem dizer que ela é melhor que a Callas - mas à Schwarzkopf é que não chega.
Ou isso, ou eu tenho de ver se ganho o euromilhões para poder comprar lugares no bloco A da Filarmonia. A sala é muito ingrata para cantores, raramente a voz consegue chegar com toda a sua riqueza aos blocos mais afastados. Hoje estava no C, que nem sequer é mau, e tive dificuldade em perceber-lhe a poesia. Como estariam as pessoas por trás da cantora?
Ou isso, ou eu tenho de deixar de ir ouvir ao vivo as peças das quais tenho gravada uma versão que venero desmesuradamente. Vou aos concertos armada em ditadora, exigindo um clone do que já sei, e acabo frustrada, a resmungar disparates como "estes hoje fizeram música como eu conduzo, sempre na mudança errada". Ainda bem que não me deixam mandar, porque corria o risco de transformar as salas de concerto em musitecas.
Por falar na liberdade dos intérpretes: parece que o Barenboim tem andado a reinventar as sonatas de Schubert. Há dias ouvi-o a tirar 200 anos ao Mozart, e - acrescento agora em minha defesa - gostei.
é o amor
Apontamento encontrado no facebook:
O ♥ é:
Os nus de Bonnard
A sua mulher. Durante quarenta anos ele pintou-a. Uma e outra vez. O nu da última pintura igual à jovem nudez da primeira. A sua mulher. Tal como se recordava dela enquanto jovem. Como se ela o fosse. A sua mulher no banho. Na sua cómoda em frente ao espelho. Nua. A sua mulher com as mãos debaixo dos seios, olhando o jardim. O sol concedendo cor e calor. Todas as coisas vivas a florescer ali. Ela jovem e trémula e tão desejável. Quando ela morreu, ele pintou por mais algum tempo. Algumas paisagens. Depois morreu. E puseram-no junto dela. A sua jovem mulher.
RAYMOND CARVER
(Versão Luís Parrado; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrisson Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 146).
Será amor?
Este Bonnard lembra-me o Edward Hopper, cuja esposa foi a sua modelo durante décadas. A mulher nos quadros do Hopper não envelhece, estiliza-se. É o amor?
Penso no Lucian Freud, que nunca teria retocado o real em nome de uma estética embelezante (embelezante?! o que há de belo na recusa da nossa circunstância de mortais?)
Seria o seu realismo sinal de menos amor?
É amor o que idealiza o que vê, ou o que vê - e acolhe - o que é?
(Com um agradecimento especial a quem pôs no youtube esta canção do João Lóio. Muito grata ficaria a quem pusesse todas as outras do álbum "mais um dia".)
O ♥ é:
Os nus de Bonnard
A sua mulher. Durante quarenta anos ele pintou-a. Uma e outra vez. O nu da última pintura igual à jovem nudez da primeira. A sua mulher. Tal como se recordava dela enquanto jovem. Como se ela o fosse. A sua mulher no banho. Na sua cómoda em frente ao espelho. Nua. A sua mulher com as mãos debaixo dos seios, olhando o jardim. O sol concedendo cor e calor. Todas as coisas vivas a florescer ali. Ela jovem e trémula e tão desejável. Quando ela morreu, ele pintou por mais algum tempo. Algumas paisagens. Depois morreu. E puseram-no junto dela. A sua jovem mulher.
RAYMOND CARVER
(Versão Luís Parrado; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrisson Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 146).
Será amor?
Este Bonnard lembra-me o Edward Hopper, cuja esposa foi a sua modelo durante décadas. A mulher nos quadros do Hopper não envelhece, estiliza-se. É o amor?
Penso no Lucian Freud, que nunca teria retocado o real em nome de uma estética embelezante (embelezante?! o que há de belo na recusa da nossa circunstância de mortais?)
Seria o seu realismo sinal de menos amor?
É amor o que idealiza o que vê, ou o que vê - e acolhe - o que é?
(Com um agradecimento especial a quem pôs no youtube esta canção do João Lóio. Muito grata ficaria a quem pusesse todas as outras do álbum "mais um dia".)
29 agosto 2014
como não ficar de bem com o mundo e as suas gentes? (2)
Choveu, o que é bom para a relva, e depois fez sol, o que é bom para mim.
Saí de carro, abri as janelas e larguei o Vahagn Hayrapetyan e o Daniel Kramer a tocar Yesterdays alto e bom som - adoro a energia desta música.
Parei num semáforo, e reparei que a senhora parada ao meu lado também tinha as janelas abertas. Baixei o som, pedi-lhe desculpa. Ela abriu um sorriso enorme, os polegares para cima. Ficámos as duas a sorrir e a curtir aqueles pianos, e depois ficou verde e cada uma foi à sua vida, de bem com a mesma.
28 agosto 2014
como não ficar de bem com o mundo e as suas gentes?
(fonte)
Esta manhã soube que a Anna Netrebko vai cantar as últimas quatro canções de Strauss no próximo domingo. Fui logo procurar o milagre de um bilhete a preços para pelintras como eu, mas tive azar: é um concerto de beneficência, os mais baratos começam pelos 150 euros.
Ora bem: o que não tem remédio remediado está, e além disso quando se fecha uma porta abre-se uma janela, pelo que não vale a pena chorar sobre leite derramado. Tratei de investir noutro sonho, e fui cedinho para a fila da Filarmonia ver se arranjava bilhetes nos bancos de pau para o primeiro concerto da temporada, com o Simon Rattle, Rachmaninov e Stravinsky.
Quando abriram as bilheteiras, pedi aos simpáticos americanos atrás de mim que guardassem o meu lugar, e fui espreitar nos concertos de orquestras convidadas se haveria algum bilhetinho a bom preço para o Dudamel e o Barenboim, na abertura da Festa da Música deste ano. O senhor da bilheteira bem procurou, mas não tinha nada. Disse-me que telefonasse directamente à organização, e depois acrescentou: "mas para si tenho lugares a pé para o concerto da Anna Netrebko. Quantos quer?"
Nem queria acreditar: vivo no meio de três milhões e meio de berlinenses, mais um milhão de turistas por mês, e o vendedor daquela bilheteira lembra-se de mim e sabe adivinhar os meus desejos?!
Voltei toda contente para os simpáticos americanos. Contei-lhes do concerto, mas eles não acham muita graça à Netrebko, e ficámos por ali a falar dos nossos cantores preferidos, até que chegou a minha vez e consegui dois lugares para o concerto do Simon Rattle. Os mais baratos, que no caso são os melhores de todos: de frente para o maestro. Perguntei se seria possível comprar mais dois, para um casal amigo, a senhora olhou para a fila atrás de mim (não havia muita gente), contou os bilhetes, e disse que sim, que excepcionalmente seria possível vender-me mais que os dois do regulamento.
Saí da filarmonia, disse "então até sábado" aos americanos, e atravessei a rua para ir resolver um problema bicudo na Staatsbibliothek. Quando andámos a filmar lá, em Abril, entrámos na biblioteca antes da hora de abrir. Tínhamos uma hora, das oito às nove, para fazer tudo. Tempo para nada, claro. Fui ao meu depósito buscar os livros de que precisava para filmar, mas não tinha ninguém ali para registar a saída. Em desespero de causa, agarrei nos livros e levei-os assim mesmo. No fim das filmagens fui devolvê-los e explicar o que tinha feito, e a funcionária ficou desconcertada. Que não podia ter feito, que não podia tirar sem registar a saída, que não podia ser de modo algum. Tentei argumentar, mas ela mostrou-se inflexível. No fundo, tinha razão - pelo que pedi imensa desculpa, reconheci que tinha agido mal, e garanti que nunca mais repetiria o erro.
Passados uns dias fiquei a saber que estava proibida de entrar naquela biblioteca. Que vexame!
Tentei falar com o chefe, mas estava de férias.
E era isso que ia fazer hoje: falar com o chefe daquela secção, para tentar resolver o problema. Ia disposta a humilhar-me como um japonês dos antigos, postrar-me aos pés dele e pedir o harakiri, pelo menos - mas o chefe estava outra vez de férias. Veio uma substituta, que leu o que estava escrito no meu cadastro no computador, e disse à senhora da recepção que o melhor era apagar tudo e levantar a proibição. Então, e o meu harakiri? Perguntei-lhe se não me dava um raspanete nem nada, expliquei que não tinha agido com más intenções, e ela sorriu e disse "com certeza que não!" e pronto, vim-me embora de cabeça levantada.
Além disso hoje foi verão em Berlim. Como não ficar de bem com o mundo e as suas gentes?
(mas depois ouvi o noticiário da noite, e...)
27 agosto 2014
MRT
(fonte)
Hoje fui finalmente ao médico por causa de uma dor no ombro que me anda a incomodar há meses, e ele mandou-me fazer uma MRT. Fui, claro, que nem sabia o que isso era, e além disso a dor anda mesmo a incomodar. Nem sequer desconfiei quando me deram uma folhinha para ler e assinar, dizendo que durante todo o tempo havia contacto visual, e perguntando se sofria de claustrofobia. Fiz-me de forte, pus uma cruzinha no não. Mandaram-me entrar para uma sala, e foi então que vi a máquina de imagens por ressonância magnética, que desde sempre me provocou calafrios. Deitei-me, puseram-me auscultadores nos ouvidos e uma campainha na mão "para tocar se se sentir mal", disseram-me que o melhor era fechar os olhos, e ala comigo para dentro da câmara de torturas. Então, e o contacto visual?! Enganaram-me, era só a técnica a olhar para a figurinha que eu fazia com os pés de fora da máquina.
A primeira reacção foi de pânico. O que havia de fazer, ali metida de olhos fechados e sem me poder mexer, durante vinte minutos? Tentei entoar a Sicilienne de Fauré
e descobri nesse momento que, num regime totalitário, seria daqueles que começam logo a cantar - só de olhar para os instrumentos de tortura, confessava ali mesmo que a minha avó era o Zé do Telhado, e todas as outras revelações que me quisessem sugerir. Por pouco não toquei a campainha, para pedir que alguém viesse ter contacto visual comigo ao fundo do túnel, nem que para isso eu apanhasse um torcicolo. Pensei de novo nos prisioneiros políticos na solitária, e nas suas estratégias para manter a sanidade mental. Tentei lembrar-me da cantilena no yoga anti-stress, "vais pelo caminho da água, chegas a uma floresta de cedros, ao fundo há um pavilhão, entras..." mas não conseguia lembrar-me de mais nada - quem me manda adormecer sempre nessa parte do yoga anti-stress? E então a máquina começou a matraquear, rat-rat-rat-rat e pum-pum-pum-pum, eu era a Alexanderplatz do Döblin. Para o que uma pessoa está guardada! Que terá sentido a praça no meio de tanto rat-rat-rat-rat e tanto pum-pum-pum-pum? Será que ouvia? Será que sentia os operários a operar rat-rat-pum nela? Resisti à tentação de abrir os olhos, com a teimosia dos cobardes. E se a minha cabeça estivesse fora do túnel, e se eu estava apenas a ser vítima dos meus medos? Mas, e se não estivesse? Fecha os olhos, fecha os olhos, não queiras saber. Rat-rat-rat-rat pum-pum-pum. Ao fim de uma eternidade o tabuleiro começou a deslizar, eu abri os olhos e vi que tinha estado sempre fechada naquele tubo estreito. Ainda bem que não abri os olhos a meio.
Depois aconteceu tudo muito depressa. Deram-me o CD com as imagens, esperei um bocadinho pela consulta mas nem tive tempo de me pôr a par das novidades no mundo das futilidades, daí a nada estava a levar uma injecção e a marcar outra para a próxima semana, e a sair para a rua com a dor apaziguada.
Tão melhor que estou quase capaz de concordar que sim, que a tortura em certos casos é justificável...
a blogonovela da cozinha continua
Onde é que eu ia? Ah, já sei: um homem deixou três caixotes enormes em frente à nossa casa, consegui descobrir o nome alemão do tipo de camião que havia de me pôr as caixas no segundo andar, procurei na internet, telefonei, combinámos para daí a bocadinho.
E foi assim: apareceu-me um homem já de certa idade, que parecia um rapazinho a brincar com um carro telecomandado. Em menos de meia hora tinha a brincadeira feita.
E foi assim: apareceu-me um homem já de certa idade, que parecia um rapazinho a brincar com um carro telecomandado. Em menos de meia hora tinha a brincadeira feita.
Última etapa da aventura: fazer as ligações da água, pôr o fogão e o exaustor. Parecia fácil, mas acabei por aprender mais alguns palavrões, da boca do técnico deitado de costas dentro dos armários, com metade do corpo suspenso no ar, numa posição desconfortável e precária. E quando parecia que tudo estava bem...
... mais um balde de água fria: o bloco estava demasiado baixo, não era possível pôr os rodapés.
Lá fui eu arranjar mais um especialista em cozinhas difíceis, que me viesse elevar cerca de 1 cm este bloco de - entretanto - uns 300 kg, sem partir aquilo tudo.
Vieram dois, há bocadinho, e subiram os pés um a um, milímetro a milímetro. Enquanto escrevia este post fizeram o trabalho, e no fim pediram menos do que tinha sido combinado porque afinal não fora tão demorado. Também elogiaram muito a cozinha, repararam na elegância dos detalhes, disseram "gigantisch" e "genial", louvaram muito o trabalho português. Disseram que dificilmente arranjaria na Alemanha quem me fizesse uma coisa destas.
Agora só me falta arranjar tempo para arrumar tudo no sítio certo, limpar e pôr bonitinho, esperar que o Joachim regresse dos EUA com a máquina fotográfica, e depois ponho aqui - com alegria, orgulho e alívio - o episódio final desta novela.
Que não há-de ser o final, pensando bem, porque a história a sério começa agora: finalmente temos o espaço que sonhámos para nos sentarmos longas horas à mesa com bons amigos.
26 agosto 2014
Daniel Barenboim e a West-Eastern Divan Orchestra no anfiteatro Waldbühne
(fonte)
Apesar da chuva que se anunciava, fomos para a Waldbühne. Que nós "não somos feitos de açúcar", e essas coisas que se dizem nesta cidade que insiste em ser feliz apesar do clima. Além disso, o concerto era muito especial: o Daniel Barenboim e a sua (e do Edward Said) West-Eastern Divan Orchestra, com músicos israelitas e árabes.
A orquestra foi criada para promover o entendimento e o diálogo entre esses povos. E algum resultado conseguiu nestes 15 anos de funcionamento porque, a despeito da recente guerra criminosa (perdoe-se a tautologia) em Gaza, os músicos foram capazes de tocar em harmonia. Ouvindo-os, e lembrando as cenas atrozes que têm enchido os noticiários das últimas semanas, senti alguma estranheza: como é isto possível?
Como teriam sido os ensaios, e os debates? Como conseguir a necessária sintonia para fazer música entre pessoas que pertencem a grupos tão antagonizados? Não terá sido fácil. Alguns músicos andaram a insultar-se no facebook, e Barenboim enviou uma mensagem a todos, apelando a que se exercitassem mais naquilo que é fundamental para um bom músico: a arte de ouvir - para que a orquestra continue a ser um "farol de esperança". Pelos vistos as coisas melhoraram quando todos se encontraram frente a frente, e terá acontecido uma espécie de milagre que tornou possível a tournée deste ano.
O programa informava ainda que em fins de 2016 será inaugurada a sala da academia Barenboim-Said em Berlim, uma sala com 650 lugares para ensaios e concertos de música de câmara, com projecto de Frank Gehry. Servirá alunos de música israelitas e árabes, no mesmo espírito de diálogo e construção de pontes que é o desta orquestra.
O concerto começou com Mozart, e Barenboim ao piano. Um pianista extraordinário, capaz de trazer leveza e intimidade ao espaço desmesurado da Waldbühne. Capaz também de revestir Mozart de uma impressionante modernidade.
Depois do intervalo, Ravel: música espanhola feita por um francês, tocada por uma orquestra de pessoas do Médio Oriente que ensaia em Sevilha. A orquestra conseguiu alguns momentos de perfeito fogo.
Terminou com o Bolero, e Barenboim recostado, as mãos bem presas à barra do estrado. Como se nos quisesse provar - a nós, ou a eles? - que os seus músicos sabem ouvir-se e tocar em conjunto, sem intervenção do maestro. Sim, sabem ouvir-se. Não saberão resolver todos os problemas que torturam os seus povos, mas são um sinal inequívoco de esperança.
25 agosto 2014
David Bowie em Berlim
Decididamente, já não tenho idade para estas coisas.
Demasiada gente, letras pequenas, fotografias pequenas (onde é que tinha a cabeça quando deixei os óculos na carteira que ficou à entrada?), pouca luz. Vou com a massa, alguns centímetros por minuto, faço cara de pitosga para tentar ler, e pergunto-me que raio estou aqui a fazer. A música começa nos meus ouvidos, For here / Am I sitting in a tin can / Far above the world, ainda sorrio por dentro, "olha mais outro numa cena claustrofóbica", mas logo esqueço as letras pequenas e as pessoas que acotovelo sem querer (entschuldigung, entschuldigung), e mergulho na exposição.
Um desvario. Ao contrário das exposições habituais, em que vamos avançando de objecto em objecto, organizadamente e com tempo para compor as peças do puzzle que já trazemos começado, esta atira-se a nós, entra pelos poros, tolda o juízo. A música acompanha-nos sempre, algumas pessoas dançam. Os objectos (a chave da sua casa em Schöneberg - quem é que guarda as chaves das casas que deixou?) misturam-se com textos, desenhos, fatos e fotografias, os filmes agitam, a música devolve as referências. Embora tudo pareça feito como estratégia para a iconização do David Bowie, dou comigo a simpatizar com o humano sob aquela personagem que se reinventa e experimenta pelas roupas e pinturas, pelas músicas e pelos objectos que são marco e mapa.
Paro mais longamente nos quadros que pintou em Berlim, influenciado pelo movimento Brücke. Os olhos, como é que ele fez para se passar para os olhos que pintou?
No fim, passo pelo "Ziggy Stardust yourself". Saio desta exposição um pouco diferente do que entrei, e tentada a mais "Helena Araújo yourself" - decididamente ainda tenho idade para estas coisas. Venham mais exposições assim: é um prazer ser arrebatado pelo que se pretendia apenas ver.
nós cá dentro do cinemagosto (3)
O Cinemagosto está a chegar ao fim. Chove, carrego um tabuleiro enorme de pastéis de nata, penso nos voluntários do Cinemagosto a vender bolos de mel da Madeira feitos fiel criado Jau do cinema português, atravesso a praça Rosa Luxemburgo, canto Abril 74 (que cantaria a menina das tranças pretas quando atravessava Lisboa com os seus raminhos de violetas?), e penso que vou ter saudades desta semana.
No foyer, enquanto o público não vem, sentamo-nos à conversa. Desta vez, falamos sobre palavras alemãs intraduzíveis - "Rücksicht" (o comportamento que tem em conta os sentimentos, as necessidades, os interesses e os contextos das outras pessoas) e "Zuverlässigkeit" (diz-se das pessoas em quem se pode confiar, por cumprirem aquilo que se espera delas). Palavras-chave da sociedade alemã. Será que uma sociedade mostra a sua diferença nas palavras intraduzíveis que usa? Quais são as palavras intraduzíveis de Portugal? Saudade, é sabido. E talvez "fuodassecaralho"? Desatamos a rir.
As portas da sala abrem-se, corremos para os nossos postos. As pessoas demoram-se na sala, e saem com ar contente. "Gostei de todos os filmes que vi!", diz uma. "Continuem!", pedem muitos. Encomendam filmes para os anos seguintes. A Anabela Moutinho ouve e responde que bem gostaria, mas certos filmes implicam custos bem mais altos que os fundos que os fiéis criados Jau conseguem arranjar. Não é fácil custear a cultura com bolos de mel.
De serviço no bar estão dois professores universitários, na mesa dos pastéis de bacalhau estão os doutorandos e os doutorados. Os meus filhos ajudam no que é preciso, não têm qualificações académicas suficientes para terem direito a pelouro próprio.
Encontro um velho amigo que não via há anos, e faço um intervalinho na azáfama para parar na alegria. Ele fica impressionado com o tamanho do Matthias e da Christina, eu pergunto pelo filho dele, que ainda ontem andava a aprender a dizer "bola". Já sabe dizer "bolas!", ou algo assim.
Para o ano há mais.
(Com uma vénia ao fotógrafo Miljenko Perkic, autor destas fotos)
24 agosto 2014
pais cool vivem mais tempo
Viva! Saiu o novo livro do Wladimir Kaminer. Desta vez, o tema é a adolescência dos filhos. Já conheço algumas histórias, e são fabulosas. Ouvi-as no fim do verão passado num teatro, numa ilha do Báltico: a sala cheia de pessoas a rir ininterruptamente durante toda a sessão.
Gosto dos livros do Kaminer. Gosto ainda mais de o ouvir a ler as suas histórias. Mas o melhor de tudo é o conjunto completo: ele a contar as suas histórias e a mimá-las ao mesmo tempo. Não admira que tenha sempre as salas cheias até ao último lugar.
Por exemplo, um dos episódios deste livro: quando a filha pediu aos pais para sairem de casa, porque ela queria festejar os seus 16 anos sem os cotas, e os amigos dela trouxeram os amigos deles, e estes os seus amigos, de modo que, quando a avó descobriu o que se estava a passar naquela casa e em vez de ter um ataque cardíaco pôs toda a gente na rua, descobriu-se que os amigos dos amigos dos amigos dos amigos eram de Peniche, e levaram tudo o que encontraram a jeito no caminho para a porta. As sapatilhas de jogging do Wladimir Kaminer, que não valiam nada mas já eram unha com carne com os pés dele, foram o maior prejuízo. Conta ele, e acrescenta: agora, de cada vez que um dos meus filhos aparece lá em casa com um amigo, eu... - estende a mão como quem cumprimenta, e baixa os olhos pelo corpo imaginário abaixo, até aos sapatos. O público rebola a rir, ninguém tem compaixão pelas agruras de um pai de adolescentes.
(E agora me lembro que queria traduzir para os simpáticos leitores deste blogue alguns dos textos do livro anterior, "Deste Lado do Éden", e ainda não o fiz. Havia de pedir ao Kaminer que abrande o ritmo de produção, que eu não consigo dar vazão.)
o arquitecto Saraiva é uma tia (e peço desculpa às tias, que algumas até são boas pessoas)
A crónica no Sol, com o título "Repouse em Paz", a propósito da morte de Emídio Rangel (aqui), é muito reveladora: o arquitecto Saraiva é uma tia. Das mais venenosas. Das mais rasca. Das mais mesquinhas. Das mais hipócritas.
É triste ver o fenómeno Carlos Castro, em edição revista e piorada, nas páginas de jornais que se pretendem sérios. Mas tem alguma graça ver alguém de direita, conhecido por defender aguerridamente a ordem moral e social, a levantar quase a pique o famoso plano inclinado dos costumes.
Esse plano inclinado preocupa-me. Não gostei do que se disse quando morreu a Margaret Thatcher ou o António Borges, e a moda parece estar a alastrar. Será que alguém vai revelar o seu carácter por ocasião da morte do arquitecto Saraiva, e teremos mais um episódio de crónicas pútridas? Ou será que ninguém se quererá perder por tão pouco, porque as tias não passam à História?
É triste ver o fenómeno Carlos Castro, em edição revista e piorada, nas páginas de jornais que se pretendem sérios. Mas tem alguma graça ver alguém de direita, conhecido por defender aguerridamente a ordem moral e social, a levantar quase a pique o famoso plano inclinado dos costumes.
Esse plano inclinado preocupa-me. Não gostei do que se disse quando morreu a Margaret Thatcher ou o António Borges, e a moda parece estar a alastrar. Será que alguém vai revelar o seu carácter por ocasião da morte do arquitecto Saraiva, e teremos mais um episódio de crónicas pútridas? Ou será que ninguém se quererá perder por tão pouco, porque as tias não passam à História?
Hesitei muito antes de fazer esta crónica, porque Emídio Rangel não me era uma personagem simpática. Essa 'antipatia' não resultou de nenhum preconceito ou parti-pris, pois de início tinha boa impressão dele. Mas a vida afastou-nos irremediavelmente.
As relações entre o Expresso e a SIC, no tempo em que eu e Emídio Rangel estivemos à frente das respectivas direcções, nunca deixaram de ser atritivas
Decidi, no entanto, escrever após a sua morte, porque nos cruzámos em momentos decisivos da comunicação social em Portugal e acompanhei factos cujo conhecimento público terá algum interesse.
Uma das primeiras vezes que me falaram de Rangel foi em 1988, quando a TSF estava para ser lançada. Teresa de Sousa, minha jornalista no Expresso, descreveu-me com entusiasmo esse projecto (em que viria a colaborar), porque tinha em grande conta o seu impulsionador: Emídio Rangel.
De facto, a TSF revolucionaria a informação radiofónica em Portugal, confirmando a previsão de Teresa de Sousa e a capacidade de Rangel para lançar projectos.
Julgo que a segunda pessoa que me falou de Rangel foi Margarida Marante. Ela trabalhava na altura num escritório de advogados nas Amoreiras, e a sede da TSF era na mesma torre. Referiu-se a Rangel com grande admiração, realçando o seu trabalho na rádio de uma forma tão entusiástica que me pareceu haver ali algum fascínio. Que, de facto, haveria de confirmar-se anos depois.
Mas eu nunca tinha estado com Rangel pessoalmente. Um acontecimento fortuito propiciou, entretanto, esse encontro. Um dia, num jantar do Prémio Pessoa, no Hotel de Seteais, Francisco Pinto Balsemão veio falar-me, preocupado, de uma notícia difamatória que iria sair a seu respeito no extinto semanário Tal & Qual. Como ele estava hospedado no hotel em regime de 'clausura', pediu-me para tentar evitar a publicação.
Não conhecendo ninguém no Tal & Qual, lembrei-me de telefonar a Emídio Rangel, que sabia ser amigo de pessoas de lá. Liguei-lhe, convidei-o para almoçar no Pabe, contei-lhe o que se passava, ele concordou que a notícia envolvendo Balsemão era da esfera pessoal e não tinha interesse público, dispondo-se a interceder. E, de facto, a notícia não saiu.
Contei depois a Balsemão o sucedido, realçando que ele ficara a dever um favor a Rangel. E daí a umas semanas Balsemão convidou-o, efectivamente, para uma conversa que teve lugar no seu gabinete do Expresso, na Duque de Palmela, em que também participei. Balsemão fez-lhe várias perguntas sobre a TSF - e não sei se terá nascido aí o seu interesse pela estação. Balsemão falava, há muito, da importância de ter uma rádio no seu grupo. E o certo é que, não muito tempo mais tarde, formalizaria a intenção de adquirir a TSF. O negócio, porém, gorar-se-ia, visto que - segundo me explicou - a estação estava afogada em dívidas e era economicamente inviável.
Em 1992, nas vésperas do nascimento da SIC, Balsemão convidou-me para um almoço no English Bar, no Estoril, cujo tema não antecipou. Depois de estarmos sentados à mesa, disse-me que já tinha um director de programas para o futuro canal de TV - a Maria Elisa - e perguntou-me se eu tinha alguma ideia sobre quem poderia ser o director de informação. Respondi espontaneamente: “O José Eduardo Moniz”. E adiantei: “Contrata um bom nome e rouba o director ao seu principal adversário, a RTP”. Mas Balsemão levantou objecções. Disse que Moniz não encaixava no tipo de informação que estava a pensar para a SIC (mais próxima do modelo brasileiro) e a conversa ficou por aí. Combinámos novo almoço no mesmo local para a semana seguinte, em que ambos traríamos propostas. Não sei exactamente a data deste almoço, só posso adiantar que se tratava de uma quarta-feira, pois era esse o dia da semana em que Balsemão ficava em casa a trabalhar, na Quinta da Marinha, pelo que lhe dava jeito almoçar na zona de Cascais.
Encontrámo-nos, de facto, uma semana depois, e mal nos sentámos à mesa Balsemão perguntou-me: “Então, já tem um nome?”. “Já - respondi -, o Joaquim Vieira”. Este era na altura meu director-adjunto no Expresso, o que levou Balsemão a retorquir, com um sorriso maroto: “Ora, isso é porque você se quer ver livre dele no Expresso!”. Expliquei que não, que era um excelente jornalista, já com experiência na TV, que podia fazer um bom tandem com Maria Elisa.
Balsemão torceu o nariz, fez uma pausa e perguntou: “O que acha do Emídio Rangel?”. Levantei os olhos para ele e respondi de imediato: “Não pense em mais ninguém. É a pessoa ideal. Um bulldozer, com experiência em lançar projectos novos, como se viu na TSF”. O nome de Rangel ficou, assim, logo ali firme. Pouco depois seria convidado, aceitaria, a seguir entraria em choque com Maria Elisa, esta seria sacrificada - e Rangel tornar-se-ia o senhor todo-poderoso da estação.
Como se sabe, o arranque da SIC foi arrasador, ganhando sucessivamente terreno à RTP até a ultrapassar, poucos anos mais tarde. Rangel vencia Eduardo Moniz, o nome que eu tinha proposto a Balsemão!
A partir daí, a minha relação com Emídio Rangel começou a degradar-se. O crítico de TV do Expresso, Jorge Leitão Ramos, fazia críticas a programas da SIC que irritavam Rangel - que se ia queixar a Balsemão. Este transmitia-me as queixas - que eu justificava, naturalmente, com a liberdade do crítico para criticar.
Cada vez mais irritado, Rangel decidiu 'responder' com uma crónica inserida no programa A Noite da Má-Língua, cujo genérico incluía o Expresso a ser atirado para uma sanita. Era uma vingançazinha infantil.
Margarida Marante fez então, generosamente, várias tentativas para nos aproximar. Houve um almoço a três na Doca de Alcântara, onde Rangel reiterou as suas queixas. Entretanto, Marante tinha-se separado de Henrique Granadeiro para viver com Rangel, e eu ia tomando conhecimento de factos envolvendo os três. Soube que um dia Granadeiro procurou Rangel na SIC para lhe dizer, cara a cara, que se algo de mal acontecesse a Margarida teria de se haver com ele. Foi Marante quem me contou este episódio.
A história das relações entre o Expresso e a SIC, no tempo em que eu e Emídio Rangel estivemos à frente das respectivas direcções, nunca deixou de ser atritiva. No entanto, foi com surpresa que, numas férias de Verão, recebi a notícia de que Balsemão tinha entrado em colisão com ele e queria despedi-lo. Balsemão considerava-o muito gastador e as relações pessoais entre ambos também se tinham degradado. Ainda assim, Rangel saiu da SIC com uma indemnização milionária de 200 mil contos (1 milhão de euros).
A história das relações entre o Expresso e a SIC, no tempo em que eu e Emídio Rangel estivemos à frente das respectivas direcções, nunca deixou de ser atritiva. No entanto, foi com surpresa que, numas férias de Verão, recebi a notícia de que Balsemão tinha entrado em colisão com ele e queria despedi-lo. Balsemão considerava-o muito gastador e as relações pessoais entre ambos também se tinham degradado. Ainda assim, Rangel saiu da SIC com uma indemnização milionária de 200 mil contos (1 milhão de euros).
Mas não ficou desempregado. José Sócrates, então ministro de Guterres, com quem Rangel tinha uma relação próxima - até porque Marante e a namorada de Sócrates, Fernanda Câncio, eram amigas -, ofereceu-lhe o lugar de director-geral da RTP, onde Rangel intentou grandes mudanças (que não teriam, porém, sequência, pois o Governo caiu logo a seguir).
A partir daí, a deselegância de Emídio Rangel manifestou-se em várias ocasiões. Uma vez em que fui entrevistado no programa Grande Entrevista de Judite Sousa, Rangel escreveu um lamentável artigo no Correio da Manhã onde, entre outras coisas, dizia que eu usava “um casaco cor de m…”. E após a ruptura do casamento com Margarida Marante, vim a saber por ela de agressões físicas. Depois foi o cancro de Rangel e os tristíssimos episódios do consumo de drogas que Margarida Marante trouxe a público - percebendo-se que a relação entre os dois fora brutalmente destrutiva para ambos. Após a morte de Margarida, Rangel chegou a dizer que não lamentava o seu desaparecimento, pelo mal que ela lhe fizera.
Depois de José Sócrates chegar a primeiro-ministro, Emídio Rangel foi convidado para um programa de debate na RTP, onde se assumiu como seu indefectível. Atacou os adversários de Sócrates e defendeu-o com unhas e dentes. Algumas intervenções suas eram penosas de ver pela indigência dos argumentos. Mas é provável que estivesse diminuído pela doença que o atingira (e que parecia, na altura, ter ultrapassado). Não podia ser o mesmo homem que fundara a TSF e a SIC. Recentemente, o mal voltou - e desta vez foi fatal. Apesar da inimizade que me votava, desejo sinceramente que repouse em paz. Que encontre a paz que lhe faltou em vida.
21 agosto 2014
de volta à filarmonia
Quem avisa amigo é: no sábado, 30 de Agosto, a Filarmónica de Berlim retoma as lides com um concerto que vai ser transmitido em directo no digital concert hall, e que podem ver gratuitamente se se inscreverem neste site.
Programa: Strawinsky (o pássaro de fogo) e Rachmaninow (danças sinfónicas).
E quem avisa os que moram em Berlim, amigo é: é muito provável que, por volta da terça-feira, ponham à venda bilhetes para os bancos do coro, por menos de vinte euros - são bilhetes melhores que os outros, porque dão concerto e ballet, com o Simon Rattle a fazer de primeiro-bailarino.
20 agosto 2014
anda uma mãe a levar os filhos desde pequeninos ao conservatório...
Anda uma mãe a levar os filhos desde pequeninos ao conservatório, e eles depois vão e entram por caminhos outros. Ou: coitadinho do cão do Pavlov, que acabei de o ultrapassar pela direita a 200: vistam-me rockeiros com fatiotas barrocas, e descubro - surpreendida e fascinada - que afinal quem gosta de entrar por caminhos outros sou eu.
19 agosto 2014
nós cá dentro do Cinemagosto (2)
É definitivo: para mim, o melhor do Cinemagosto, melhor ainda que os filmes, é a sorte de me saber acompanhada por pessoas especiais. Além da equipa de organização, os voluntários que por estes dias nos têm vindo ajudar nas mil tarefas de fazer uma mostra de cinema acompanhada por um pequeno festival de comidas e vinhos, livros e DVDs.
Têm sido dias cansativos, e às vezes não posso evitar perguntar-me porque é que me meto nestas coisas. Mas depois falo com as pessoas que vêm comprar um pastel de nata no fim do filme, e me aparecem com os olhos brilhantes, ou então vejo-me a fazer um intervalinho, sentada com os outros "escravos" em conversa e risos à volta da mesa com um prato de presunto e alguns copos de vinho, estendo as pernas, suspiro por dentro e penso "é por isto".
Pagamos mal, e em géneros: por jorna de trabalho, dois bilhetes para os filmes e uma broa de mel da Madeira. Os voluntários são amorosos, mandam-me ir ver o filme que me interessa, ficam eles a tomar conta do estaminé. Eu não vou, não tenho coragem. Mais uma ideia fantástica que me saiu pela culatra: queria ter uma mostra de cinema português em Berlim para poder trocar as voltas à minha insularidade, e agora tenho cinema português do melhor e não vejo porque estou a vender croquetes e bolinhos de bacalhau...
Para mais, tive os filmes todos em minha posse durante uns dias, em Lisboa, quando os andei a recolher para os enviar para Berlim. Vontade de fazer um controlo de qualidade não me faltou, mas o tal "maldito inquilino" não deixou - por uns dias a minha vida parecia a Casa das Belas Adormecidas, eu a dormir ao lado dos filmes sem lhes querer tocar, querendo. Por estas e por outras é que nunca hei-de arranjar um cargo de CEO numa daquelas empresas que paga muito bem aos CEO, por mais incompetentes que sejam. Ora, incompetente também consigo ser (como se prova no parágrafo anterior, por exemplo), mas parece que me faltam os restantes atributos. Triste vida.
Os meus filhos ajudam, coitados. Sobretudo agora, que chegou a cozinha de Portugal, e eles vêem o património familiar muito melhorado, não querem correr o risco de ser deserdados. E até trazem os amigos. Se não há muito trabalho para fazer, digo-lhes que vão ver o filme. Eles vão, e aprendem muito sobre o meu país, que é também deles. Também por isso esta mostra me vale a pena.
E para quem quer saber tudo, tudo, tudo, aqui vão dois vídeos:
- a equipa de preparação em plena azáfama;
- o debate do filme Juventude em Marcha, de Pedro Costa, gravação "pirata" que encontrámos no youtube.
Têm sido dias cansativos, e às vezes não posso evitar perguntar-me porque é que me meto nestas coisas. Mas depois falo com as pessoas que vêm comprar um pastel de nata no fim do filme, e me aparecem com os olhos brilhantes, ou então vejo-me a fazer um intervalinho, sentada com os outros "escravos" em conversa e risos à volta da mesa com um prato de presunto e alguns copos de vinho, estendo as pernas, suspiro por dentro e penso "é por isto".
Pagamos mal, e em géneros: por jorna de trabalho, dois bilhetes para os filmes e uma broa de mel da Madeira. Os voluntários são amorosos, mandam-me ir ver o filme que me interessa, ficam eles a tomar conta do estaminé. Eu não vou, não tenho coragem. Mais uma ideia fantástica que me saiu pela culatra: queria ter uma mostra de cinema português em Berlim para poder trocar as voltas à minha insularidade, e agora tenho cinema português do melhor e não vejo porque estou a vender croquetes e bolinhos de bacalhau...
Para mais, tive os filmes todos em minha posse durante uns dias, em Lisboa, quando os andei a recolher para os enviar para Berlim. Vontade de fazer um controlo de qualidade não me faltou, mas o tal "maldito inquilino" não deixou - por uns dias a minha vida parecia a Casa das Belas Adormecidas, eu a dormir ao lado dos filmes sem lhes querer tocar, querendo. Por estas e por outras é que nunca hei-de arranjar um cargo de CEO numa daquelas empresas que paga muito bem aos CEO, por mais incompetentes que sejam. Ora, incompetente também consigo ser (como se prova no parágrafo anterior, por exemplo), mas parece que me faltam os restantes atributos. Triste vida.
Os meus filhos ajudam, coitados. Sobretudo agora, que chegou a cozinha de Portugal, e eles vêem o património familiar muito melhorado, não querem correr o risco de ser deserdados. E até trazem os amigos. Se não há muito trabalho para fazer, digo-lhes que vão ver o filme. Eles vão, e aprendem muito sobre o meu país, que é também deles. Também por isso esta mostra me vale a pena.
Aleluia! Finalmente deixaram-me mandar: as pessoas da equipa de organização, que são do centro e do sul de Portugal, e mais um alemão que se o deixassem mandar era de Lisboa, quando chegou o momento de dizer "viva o Cinemagosto" disseram "bibócinemáguôasto!" e desataram a rir.
(Havemos de repetir esta foto mais cedo, quando ainda há luz na rua)
O João Botelho conversa com o Hannes Reiss, a Anabela Moutinho sorri para a Teresa Prata, e eu converso com o nosso excelente barman, professor de matemática. Discutimos os teoremas da incompletude de Gödel, que é como quem diz: o meu copo está vazio.
E para quem quer saber tudo, tudo, tudo, aqui vão dois vídeos:
- a equipa de preparação em plena azáfama;
- o debate do filme Juventude em Marcha, de Pedro Costa, gravação "pirata" que encontrámos no youtube.
anti sofá
Um blogue para um ano, e começa já a 1 de Setembro.
(O que eu gosto desta mulher e admiro nela dava para fazer mais um blogue, mas é daquelas coisas que respiram melhor no silêncio.)
15 agosto 2014
se chego ao fim desta aventura, nem acredito que é verdade...
Estava aqui toda atarefada com o Cinemagosto, eis que vejo um camião a estacionar em frente à minha porta. Era a cozinha que veio de Portugal, e ninguém me avisou que vinha hoje.
Ora bem: antes hoje que amanhã, que já estou farta de subir e descer escadas para fazer um almocinho (as ferramentas e os ingredientes diversos no segundo andar, o frigorífico na cave, a cozinhita no rés-do-chão) (um dia destes quem escreve um livro com dicas para perder peso sou eu). E antes hoje que amanhã, porque hoje o Cinemagosto ainda não aperta. Amanhã é que vão ser elas.
O homem deixou três caixotes enormes em frente à casa, o Joachim e eu começámos a telefonar a empresas de mudanças de pianos de cauda, como uns desesperados, a ver se conseguíamos essa espécie de milagre que será elevar caixas pesadíssimas até ao terraço do segundo andar, e arranjar quatro homens com força de King Kong e sensibilidade de Sininho para pousar os blocos da ilha sobre as ligações da água que já lá estão espetadas no meio da sala.
Debalde.
Até que a Christina me sugeriu que fosse ao fundo da rua, onde há um guindaste, para pedir aos homens uma ajudinha. Fui ao fundo da rua, era hora do almoço e os operários ficaram todos muito contentes por lhes irromper pelo repasto adentro, e não podiam ajudar mas disseram-me o nome alemão do tipo de camião que me podia resolver o problema: "LKW mit Ladearm".
É bem verdade que no princípio era a palavra, e no verbalizar é que está o ganho.
O LKW mit Ladearm chega daqui a uma hora, os homens que carregam pianos de cauda (e orgãos, e espinetas, e cravos) devem vir na segunda-feira. Pedi que viessem o mais cedo possível, "se fôr às cinco da manhã não me importo, até lhes dou um café". Ele riu-se: "e nós levamos os pãezinhos quentes".
Veremos.
***
Para quem quer saber tudo, a cozinha estava assim na fábrica em Portugal, quando a fomos conhecer em meados de Julho (e aviso já que só aceito críticas positivas, tipo "é a cozinha mais bonita do mundo" e assim):
(Foi feita na "de pau, indústria de mobiliário" - por pessoas a quem dantes se chamava "artista": conhecedoras e amantes da sua arte. E por um preço que, bem feitas todas as contas, não fica muito acima das cozinhas IKEA.)
Agora está lá fora, assim:
Ora bem: antes hoje que amanhã, que já estou farta de subir e descer escadas para fazer um almocinho (as ferramentas e os ingredientes diversos no segundo andar, o frigorífico na cave, a cozinhita no rés-do-chão) (um dia destes quem escreve um livro com dicas para perder peso sou eu). E antes hoje que amanhã, porque hoje o Cinemagosto ainda não aperta. Amanhã é que vão ser elas.
O homem deixou três caixotes enormes em frente à casa, o Joachim e eu começámos a telefonar a empresas de mudanças de pianos de cauda, como uns desesperados, a ver se conseguíamos essa espécie de milagre que será elevar caixas pesadíssimas até ao terraço do segundo andar, e arranjar quatro homens com força de King Kong e sensibilidade de Sininho para pousar os blocos da ilha sobre as ligações da água que já lá estão espetadas no meio da sala.
Debalde.
Até que a Christina me sugeriu que fosse ao fundo da rua, onde há um guindaste, para pedir aos homens uma ajudinha. Fui ao fundo da rua, era hora do almoço e os operários ficaram todos muito contentes por lhes irromper pelo repasto adentro, e não podiam ajudar mas disseram-me o nome alemão do tipo de camião que me podia resolver o problema: "LKW mit Ladearm".
É bem verdade que no princípio era a palavra, e no verbalizar é que está o ganho.
O LKW mit Ladearm chega daqui a uma hora, os homens que carregam pianos de cauda (e orgãos, e espinetas, e cravos) devem vir na segunda-feira. Pedi que viessem o mais cedo possível, "se fôr às cinco da manhã não me importo, até lhes dou um café". Ele riu-se: "e nós levamos os pãezinhos quentes".
Veremos.
***
Para quem quer saber tudo, a cozinha estava assim na fábrica em Portugal, quando a fomos conhecer em meados de Julho (e aviso já que só aceito críticas positivas, tipo "é a cozinha mais bonita do mundo" e assim):
Agora está lá fora, assim:
Não percam os próximos episódios desta blogonovela. Se correr tudo bem, vitória vitória acabou-se a história. Por enquanto, tento viver um susto de cada vez. Tenho meia hora para ir buscar dinheiro para pagar ao condutor do LKW mit Ladekran, e mais uma tela de plástico para me abrigar as caixas lá em cima no terraço, porque por causa do Cinemagosto andei a rezar para que chovesse e as pessoas quisessem ir ao cinema em vez de ir ao lago (agora é que me vou desgraçar junto da população berlinense) e parece que rezei com demasiado empenho, que começou a chover agora mesmo em cima da minha rica cozinha.
Depois conto o resto.
nós cá dentro do cinemagosto (1)
Muito resumido, o arranque foi assim:
Fui buscar a Anabela Moutinho ao aeroporto, viemos dormir a correr, fomos buscar o João Botelho ao aeroporto. A caminho do hotel Pestana, que é um dos patrocinadores do Cinemagosto, demos uma volta para mostrar ao João o que mudou em Berlim desde a última vez que ele cá esteve. Enfim, um pouco do que mudou, que não tínhamos a semana toda, e esta cidade vive em perpétuo refazer-se.
Já levei dezenas de pessoas ao memorial do muro, na Bernauer Strasse, e nunca vi ninguém apanhado como o João Botelho. Aquelas pessoas nas fotografias a preto e branco, assassinadas no caminho para a liberdade, eram da família dele. Todas elas.
A equipa do Cinemagosto reuniu-se pela primeira vez, e a reality tv nunca está quando mais precisamos dela: para filmar o emotivo encontro entre o Hannes e a Anabela, que andam há meses a trabalhar juntos, numa onda de perfeito entendimento e admiração mútua, sem nunca se terem visto mais magros. Por outro lado, foi uma sorte a reality tv não estar lá, porque assim ninguém registou as nossas caras de inveja ao ver a t-shirt do Hannes.
(Decidi - mas vai ser o nosso segredinho, não contem a ninguém - que vou fazer uma para mim, e todos os anos outra. Como o grafismo se mantém, e só mudam as fotografias dos filmes, vai dar uma linda colecção. Hehehehe, desta é que os senhores da Berlinale não se lembraram, hehehe.)
Depois do almoço havia uma conferência de imprensa no cinema Babylon. Mais uma vez a reality tv falhou, e ficou por registar a comoção da Anabela ao descobrir a beleza daquele cinema quase centenário. A casa do Cinemagosto tem a vivacidade tranquila de um amor decantado pelo tempo.
A caminho de casa parámos ainda no memorial do Holocausto e perdemo-nos de vista na crueldade dos seus rectos caminhos, descemos ao centro de informação e de novo fomos separados pelo horror. Já fui lá tantas vezes, e a cada vez fico grata pela penumbra das salas que me recata a dor.
Reencontrámo-nos mais tarde num café, a falar da humildade dos génios e do, digamos assim, kama sutra do cinema (vocês sabem: as posições da câmara, a importância do olhar, a intuição que sabe encontrar o gesto certo, esses erotismos). Falámos do tanto que o Manoel de Oliveira ensina - sobre cinema e sobre o brio da vida. Fizemos planos mirabolantes para hoje, e dissemos adeus até amanhã.
(A mousse de chocolate do hotel Pestana é do outro mundo. Podem crer.)
13 agosto 2014
apontamentos a meio deste verão
Passámos uma semana sem filhos nem Fox na casa do Minho, e foi estranho. Aquela casa guarda os ritmos e os ecos de vinte anos de férias em família, e durante uma semana tudo nela nos lembrava as ausências, como se a vida não estivesse a bater certo.
Durante três semanas trabalhei em Lisboa, e pernoitei na casa de amigos. Perjantei também muitas vezes, porque estava demasiado cansada para organizar saídas nocturnas. Telefonava, pedia uma sopinha, davam-me jantares deliciosos no jardim de árvores frondosas. De manhã, encontrávamo-nos os três na sala, cada um entregue ao seu vício solitário. Entre o écran e o café, comentávamos brevemente as novidades e as descobertas, e depois cada um voltava ao seu mundo. Heimat ist da, wo man sich nicht erklären muss.
Emprestei a casa de férias a uma amiga, que mandou um sms a dizer "Os meus filhos estão histéricos, pensam que estão num palácio. Eu estou pior." Passaram pela casa como Jesus por Maria: nem se notou. Mas deixaram uma banda de música, "esperamos que a partir de agora não mais te sintas longe da tua querida filarmónica". Tenho o Simon Rattle mais laroca de todo o Minho.
Das conversas com tantos e tão bons amigos já nem lembro o que foi dito - sobrou um coração cheio de sorrisos carinhosos, gargalhadas e partilhas plenas de confiança.
Vi finalmente a Elisabete Matos entregue ao "vício da arte". O Paulo Ferreira prometeu que vem a Berlim cantar-me as árias do Calaf, e nem sei se acredite, mas vou falar com o otorrino para me pôr passadeiras vermelhas nos ouvidos. O Matthias, quando soube desta conversa, enterrou a cabeça nas mãos e disse "Oh, mãe..." - quando ele diz "Oh, mãe..." assim, sinto-me uma catraia traquina, e desato a rir.
Descobri uma música que me encantou (ouçam aqui, yesterdays), mostrei-a ao Matthias. Ele aprovou, e mostrou-me as suas descobertas musicais dessas férias. Anda uma mãe a criar um filho - e é para isto mesmo, é também para isto.
A meio deste verão regressei a Berlim e tomei um longo pequeno-almoço com a Christina. Entre macchiatos fomos desatando a pouco e pouco os nós que a estorvavam. Ela saiu a correr para o autocarro, ia tão leve que quase voava. Eu segui para a minha mercearia de turcos favorita, e tinham beldroegas. Beldroegas em Berlim!
Voltei para casa pelo caminho do lago, o meu peito em surda agitação: esta é a minha vida, e gosto tanto de estar assim nela!
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da minha vida vê-se um lago,
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