28 maio 2013

violência matinal


Este post da Rita Dantas é tão bom, e os comentários tão ilustrativos, que recomendo vivamente a sua leitura.

Ia comentar lá, mas acrescento aqui:

1. Há alguns anos falámos desse tema neste blogue, a propósito de um "ksssss" que um homem me sibilou numa rua em Portugal. Em Portugal, claro - dos países que conheço, é o único no qual os homens fazem "kssss" quando passam por uma mulher. Alguém comentou na altura que há mulheres que gostam, porque se sentem apreciadas. Gostava muito de poder inscrever esse comentário num registo qualquer de humor, mas desconfio que não era. Pode ser que haja por aí malucos que pensam que largar um kssss ao passar por uma mulher é serviço público. Convinha levá-los a tribunal para lhes dissipar todas as dúvidas.

2. Em Portugal não se fala do assédio sexual de que as mulheres são vítimas, e que começa já no início da adolescência. É fundamental chamar isto pelo nome: violência sexual. No caso de as vítimas serem menores (e são, inúmeras vezes) tem de ser punido com ainda maior severidade. Por que motivo não o é? De onde vem este silêncio e este deixar as garotas abandonadas à sua má sorte?

(Há dias dei comigo a atravessar automaticamente a rua para não ter de passar por uma casa em obras. É que nem pensei - e já vou a caminho dos cinquenta, e moro num bairro onde não há assédio sexual na rua. Não havia o mínimo perigo, mas fui movida por um reflexo condicionado treinado há muito tempo, que me surpreendeu por se revelar tão fora do seu contexto. Agora, que falo nisso, relembro o nojo das cenas quotidianas a caminho da escola secundária: as bocas ordinárias, o riso alarve dos grupos de rapazes, a mão furtiva que tocava a minha pele e me deixava uma sensação de sujidade horrorosa.)

3. É uma questão cultural, sem dúvida - e a prova dos nove pode ser tirada na Wikipedia, lendo o mesmo verbete em línguas diferentes. Ou mudando de bairro em Berlim, e observar o modo como "a rua" olha para uma mulher jovem vestida à maneira ocidental (não estou a dizer seminua, mas simplesmente sem lenço nem gabardine nem burca nem nada disso). Passei por essa situação com a minha filha, quando fomos de metro de Charlottenburg a Neuköln. A viagem dura cerca de meia hora, mas parecia outro continente - na Karl-Marx-Strasse, ela ficou chocada com o modo como alguns homens assediavam as mulheres. Burgessos, insistentes, brutais. Ela não conhecia isso. Eu conhecia, mas já nem reparava. Cresci em Portugal, aos 12 anos tive de aprender a andar couraçada pelas ruas.

4. Parabéns pela tua atitude, Rita! Nada como envergonhar esses minorcas inseguros que tiram prazer de um cobarde jogo de poder.

11 comentários:

Rita Maria disse...

Olha, e qual é o verbete que é para procurar na Wikipedia?

(acho normal que as mulheres, ao fim de alguns anos, assumam essa forma de violência, como assumem muitas outras, e a interiorizem, como dizia lá no blogue, como instância de aprovação. E até que estranhem a sua ausência e a interpretem como ausência dessa mesma aprovação - isto não é humor, é um comportamento clássico das vítimas de violência, não é diferente de uma criança que procura justificar a violência dos pais e que por vezes a convoca até com uma asneira)(ie, diferente será, claro, mas para o efeito parecem-me comportamentos e motivações semelhantes)

(Obrigada, tal e tal, repetição do que te escrevi no Facebook, acho muito importante que se fale muito disto :))

Helena Araújo disse...

Compara "Sexual harassment", "Sexuelle_Belästigung" e "assédio sexual". Também podes dar uma vista de olhos por "sexual violence" (que inclui o harassment) e "violência sexual" (espanhol) - neste caso, praticamente só existe quando há violência física.

Helena Araújo disse...

Quanto a estranhar a ausência desse comportamento: é uma cena que não me assiste. ;-)

E eu é que agradeço teres falado disso.

mdsol disse...

Agora que penso nisso, sempre fui de "os enfrentar". O nojo sobrepôs-se sempre ao conforto momentâneo de não me aborrecer. Olhos nos olhos: um desconcertante, que foi? seguido de uma conclusão do tipo da que a Rita esclareceu. Não sei se o efeito surpresa me protegeu, porque a coisa nunca correu mal, que eu me lembre, claro.

Helena Araújo disse...

Tu e a Rita ainda vão ganhar a medalhinha "Deuladeu"... :)

a.i. disse...

obrigada por me tirares a visão idílica que tinha da Karl-Marx-Strasse ;(
(é aquela grande avenida ventosa do ex-lado este, onde há edifícios de apartamentos icónicos de arquitectura comunitária, que desemboca numa praça onde dantes havia os centros comerciais de berlim leste", não é?) - fui lá num domingo, acho, e estava vazia de pessoas mas o café/casa de chá, com objectos da ex-RDA serviu-nos um batido delicioso.

Helena Araújo disse...

Essa é a Karl-Marx-Allee!
Eu estou a falar de uma rua em Neuköln, que até tem muita graça, mas está cheia de homens que olham para as mulheres como nenhum alemão olha (bem, nenhum alemão que eu conheça).
A Karl-Marx-Strasse tem muitos turcos; também há uma rua mais ou menos paralela à K.M.Str., a Sonnenallee, que tem muitos árabes. E entre as duas fica a "Antiga Repartição das Finanças", o Altes Finanzamt, que é de portugueses.

a.i. disse...

aah, haha, melhor, assim afinal ainda mantenho a minha visão romântica de berlim ;)

Obrigada!! :D

Helena Araújo disse...

:)
(és a primeira pessoa a achar a Karl-Marx-Allee romântica...)

a.i. disse...

não, serei antes a segunda (ex-aequo): namorado também achou. Até o vento agreste achámos romântico ;)

Helena Araújo disse...

vocêm é estar muito apaixonados...
;-)