01 junho 2013

As Nossas Eternidades




Para o Dia da Criança: As Nossas Eternidades

A oferta cultural no meu infantário não era muito opulenta. As duas educadoras não tinham qualquer intenção de nos entreter. Uma passava o tempo todo a ler, a outra a comer. Por isso me ficou tão gravado na memória o dia em que nos anunciaram que um fotógrafo viria registar-nos para a "eternidade". Essa notícia afectou-nos negativamente. Sendo crianças, interessávamo-nos pouco pela eternidade - o aqui e agora parecia-nos muito mais importante e emocionante que todas as eternidades do mundo. Além disso, no infantário já tínhamos problemas suficientes com eternidades de todos os tipos, desde o pequeno-almoço que nunca mais acabava, à longa espera pelo progenitor que nos vinha buscar, passando pela sesta obrigatória - todas estas eternidades eram cansativas e maçadoras, demoravam demasiado tempo mas, felizmente, mais tarde ou mais cedo chegavam ao fim. Agora víamo-nos obrigados a sacrificar o nosso precioso tempo de brincadeira a mais uma eternidade - a do fotógrafo. Não havia como lhe fugir: no dia seguinte todos exibiam a mais recente moda infantil socialista. Quase todos os rapazes tinham fato e camisa branca, muitos até traziam gravata ou laço. Parecia que os anciãos do Politburo repentinamente se tinham transformado em crianças. As raparigas também traziam os seus melhores vestidos, o cabelo estava penteado à moda, as tranças feitas com toda a arte. Em casa, os pais tinham-nos explicado que a sessão fotográfica era muito importante, e que de modo algum podíamos brincar no recreio com os nossos uniformes. Não podíamos suar, nem correr, e melhor seria nem ir à casa de banho. Passámos o dia inteiro dentro dos nossos fatos como múmias nas pirâmides, mas o fotógrafo não veio. Os miúdos estavam furiosos. Deve ser um alcoólico, esse fotógrafo, os alcoólicos atrasam-se sempre - diziam os que percebiam muito de alcoolismo. Finalmente alguém informou que ele estivera a fotografar demasiadas crianças noutro infantário, e ficara cansado, mas que viria no dia seguinte. O dia seguinte era quarta-feira, e às quartas havia sempre papas de trigo-sarraceno, o que era perfeito para vomitar. Por causa disso, lá para o fim da tarde a nossa roupa tinha perdido muito do charme e da elegância, mas não fez mal, porque o fotógrafo faltou novamente. A nossa suposição de que se tratava de um bêbedo saiu reforçada. E quando finalmente apareceu, na sexta-feira ao entardecer, notámos que tinha de facto um cheiro estranho. Por essa altura, já não o esperávamos com tanta ansiedade. Entretanto os rapazes tinham conseguido libertar as raparigas das suas tranças, e em troca elas tinham-nos ajudado a pendurar-se pelas gravatas. As nossas camisas brancas já estavam encardidas, os fatos tinham nódoas de papas. O fotógrafo não se preocupou nada com a nossa aparência - tratando-se de um profissional que fotografava crianças de infantários para a eternidade, estava preparado para desfechos destes e tinha duas grandes placas de cartão com bonecos desenhados. No meio de cada placa havia um buraco pelo qual o fotografado devia enfiar a cabeça, de preferência sem se rir. Tinham paisagens diferentes: numa, via-se um palco; na outra, um foguetão no espaço. As raparigas deviam ser eternizadas como bailarinas, e os rapazes como cosmonautas. O fotógrafo deu provas do maior profissionalismo, despachou a sessão fotográfica a toda a velocidade. Cosmonauta e bailarina são hoje em dia um par estranho. Os meus filhos prefeririam ver-se como estrelas de rock ou de cinema. No entanto, naquela época eram mesmo estas duas profissões as oficialmente mais desejadas. Não acredito que alguém do meu infantário tenha conseguido tornar realidade aquele cenário de papel. Nunca há palcos de teatro nem foguetões em quantidade suficiente para todos. Além disso, quando me vejo nessa fotografia, de capacete e sentado numa cápsula com o universo negro por trás... fico com a sensação de que ignorámos completamente a realidade. As épocas chegaram-nos todas trocadas. O nosso comunismo futuro tornou-se repentinamente passado sem que por um único segundo tenha sido presente. O passado capitalista é hoje o nosso objectivo mais almejado, elogiado como o melhor modelo possível de futuro - e nós próprios atravessamos uma negra eternidade a toda a velocidade num ridículo foguetão oval, que um fotógrafo bêbedo pintou num cenário de papel.

(texto e fotografia encontrados na página do facebook do autor; tradução S. G.)

3 comentários:

Emmanuel disse...

"The world tells us to seek success, power and money; God tells us to seek humility, service and love." Pope Francis (@Pontifex) http://emmanuel959180.blogspot.in/

Ana Cristina Leonardo disse...

Sempre bom, este homem :)

gralha disse...

Maravilhoso :)