Há vários anos que frequento a Filarmonia de Berlim, mas só depois da visita guiada que fiz há dias comecei a entender melhor este edifício que tanto me fascina.
Antes de mais, trata-se de uma desforra genial. Proibido pelos nazis de construir edifícios públicos e de fazer a sua arquitectura orgânica, o arquitecto Hans Scharoun desenha em 1960 uma Filarmonia que se afirma como vitoriosa antítese. O pentágono e a fuga aos ângulos rectos: viva a libertação. As portas e alguns tectos baixos: recupere-se a dimensão humana. As janelas e as paredes irregulares: nunca mais o metódico quadriculado do horror. A orquestra no meio do público, os espaços interligados: cultura para uma sociedade democrática, sem separação entre artistas e público, ricos e pobres.
O edifício é concebido de dentro para fora. Começa pela sala de música, cresce para o átrio e as varandas, entendidos como espaço de comunidade e comunicação, desemboca na fachada. De simetria, apenas um eixo - concessão muito negociada do arquitecto à acústica - que atravessa a sala e se ergue, pelo avesso desta, como a proa de um navio sobre o átrio. Aqui e ali, elementos náuticos: escadas leves como pontes, janelas como escotilhas, as próprias cores dos elevadores - vermelho à esquerda-bombordo, e verde à direita-estibordo.
A orquestra fica no centro da sala, rodeada por naipes de cadeiras alinhados como terraços de vinhedo, sob um conjunto de tectos convexos que se pretendem céu estrelado.
No chão do átrio, Johann Sebastian Bach. E é bem verdade que quem não sabe é como quem não vê: a quantidade de vezes que tropecei naquela estranha mistura de cores e ritmos, e me perguntava que bicho lhes teria mordido para fazerem tal coisa. Até que a guia nos fez subir ao primeiro andar e, apontando para o conjunto, nos explicou que o artista Erich F. Reuter se inspirou em duas peças de Bach para desenhar aquele mosaico por entre a pedra negra. Não direi que vi a música, mas entendi finalmente.
Os candeeiros fascinam-me. São 72 peças pentagonais, unidas em circunferência, que me transportam automaticamente à infância: o teu pai é careca?
Ainda no átrio, um trabalho monumental de colagem de Martin Liebscher, de que se vê abaixo o segmento central, capta as atenções e suscita sorrisos: o autor fez-se fotografar mais de mil vezes em situações hilariantes fora e dentro da sala da Filarmonia, e compôs um quadro tão confuso quanto divertido. Algumas pessoas não se dão conta que é sempre o mesmo, e já houve quem fosse reclamar por a Filarmónica não aceitar mulheres entre os seus membros...
Para visita, já não estava nada mau.
Mas é sempre possível melhorar ainda mais: enquanto visitávamos a sala grande, alguns músicos preparavam-se para o concerto dessa noite, sob a direcção do Abbado, e a solista subiu ao palco, com rolos no cabelo, para largar uma voz prodigiosa pela sala quase vazia.
Um pouco mais tarde, na sala de música de câmara (pequenina, pequenina: apenas 1200 lugares), pudemos assistir a um pouco de um ensaio de Händel: orquestra, coro, solistas. E nós maravilhados.
Mas, como já disse, é sempre possível melhorar ainda mais: no fim da visita, tive a sorte de ser convidada para uma bebida no bar por trás do palco. E ali estávamos nós em conversa amena, na varanda junto ao camarim do Abbado, saboreando o ambiente quase febril que precede o concerto: o primeiro violino e um flautista tocando em dueto enquanto esperavam, e a solista a passar, já de cabelo solto, num magnífico vestido vermelho. Como uma miragem.
Para passear um pouco pelo edifício, sigam este link (em inglês).
E para fazerem uma visita guiada com uma excepcional guia portuguesa, sigam este.
18 comentários:
E existem grupos de Portugueses de Portugal ou são mais Brasileiros (enfim, de África e de Timor-leste deve haver menos turistas...)?
Bom, com um post destes, assim escreito desta maneira...vou ver se há promoções de voos para Berlim
PS: a palavra de verificação é tremor...
Sempre excelente, Helena.
:)))
jj. amarante, não faço a menor ideia!
Cristina, vai, vai, e compra também para os outros!
Obrigada, mdsol. :-)
vi a tua segunda foto e lembrei imediatamente as gravaçoes de concertos de karajan
(dirigidos por ele, quero dizer)
tens tanta sorte, helena... e nós de podermos ler estas tuas visitas guiadas :)
Tenho mesmo muita sorte, sem-se-ver. E estas visitas guiadas, enfim, serão uma tentativa de óptimo de Pareto...
Agora que falas do Karajan lembra-me uma gracinha dos berlinenses: por causa da forma deste edifício, a princípio chamavam-lhe o Circo Karajanis.
Uns brincalhões.
E não é verdade que não existem mulheres no seu seio?
Aproveito para também lhe agradecer as coisas maravilhosas que nos faculta, mas sobretudo, a forma como o faz. A minha percepção é a de que tudo nos chega envolto em afectos e sorrisos.
Interessada,
muito obrigada. Curioso como descobriu que me rio e sorrio muito sozinha, ao computador. Embora não sei se possa dizer que estou sozinha: escrever para os clientes deste blogue é estar em óptima companhia.
Na Filarmónica há mulheres. Ainda não serão 50%, acho eu, mas são bastantes.
que giro , eu tb me rio e sorrio mt sozinha ao cpt, ie, a fazer posts e a comentar :)
(bela piada a dos alemães, essa)
Que belo texto e que belas imagens, Helena. Tenho estado a ver e a rever "A Canção da Terra" que o Abbado aí dirigiu há dias, com a Anne Sofie e o Jonas. E a pensar... que vontade!
Bondade sua, cavalheiro. :-)
Então: quantos posts mais sobre Berlim tenho de escrever até tu te decidires? Estou a ver que a Cristina se decide mais depressa!
O meu problema não é falta de decisão.
(Agora lembrei-me de uma história. Conto ou não? Bem, como já disseste que sim, aqui vai:
Quando eu era pequeno tinha muito medo do mar. Na praia, quando me convidavam para ir à água, a minha resposta era invariavelmente NÃO. E se me perguntassem se eu tinha medo, eu dizia que não, tinha era vigonha. O meu pai ainda adora contar esta história em público para me ver corar.)
Já eu devo ser o único que viveu um pequenino momento histórico na Filarmónica de Berlim, estará por estes dias a fazer três anos: por sugestão mágica da Helena, fui ao Concerto da hora do almoço, pela primeira vez na minha vida naquele edifício, quando pretendo comprar o meu "souvenir" avisam o respeitável público, com muita calma, que a Filarmónica "vai ter de fechar", somos todos amávelmente conduzidos à saída (umas centenas largas de pessoas) e só depois, cá fora, é que nos damos conta, pela algazarra de sirenes e o aparato dos Bombeiros, de que a Filarmónica está a arder!
À noite no "telejornal" ficámos a saber que, por sorte, os danos se resumiam a umas placas douradas do telhado e a uns quantos pianos que estavam no piso superior. Apesar do meu 11zito a
Métodos Estatísticos, há já 30 anos, até tenho medo de voltar a entrar na Filarmónica...
Paulo, tu não me digas que tens vigonha de vir a Berlim?!
;-)
A. Castanho,
lembrei-me muito desse dia quando estava verificar alguma informação na internet. É claro que falam desse incêndio, com dia e tudo! Há cerca de 3 anos.
(é assim que nos pomos velhos)
Mas, se eu fosse a ti, não alardeava esse facto por aí. Por coincidências dessas já muita gente foi parar à lista de suspeitos de terrorismo...
;-)
Ainda bem que não me chamo van der Lubbe (era assim?), nem sou holandês...
E ainda espero um dia comprar o tal "souvenirzito" que ficou por oferecer-te, por teres velado a sesta do nosso C. (e permitido assim que aproveitássemos os dois a tua sugestão mágica...)!
Eh, pá, se não tivesses dito nada eu já me tinha esquecido. Chatice, vão ter de voltar cá para me comprarem o souvenire! ;-)
(também é preciso pontaria para estar na Filarmonia justamente quando ela pega fogo!)
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