14 janeiro 2010

sinais do nosso mundo num chat de culinária

E por falar em cumprir preceitos religiosos e se tornar pesado para os outros:

Andava na internet à procura de uma receita (em alemão) para carne assada, e encontrei esta frase: "na Sexta-feira Santa vou fazer um jantar para cinco ou seis pessoas; estava a pensar num bom lombo de porco assado..."
Era um chat. As pessoas foram dando sugestões.
Só ao fim de dez ou quinze participantes apareceu alguém a dizer "Sexta-feira Santa é o dia menos apropriado para um lombo de porco assado. Talvez fosse boa ideia averiguar se os convidados se sentirão bem com essa escolha."

Uns dias mais tarde, a pessoa que ia dar o jantar rematou: "gostaram imenso!"


Ora aqui estamos nós: no coração do Ocidente Cristão, num país onde o descanso dominical ainda é levado muitíssimo a sério, aparecem-nos estas pessoas que não respeitam os mínimos...
Para mais, carne de porco - desta vez não posso deitar a culpa para os fundamentalistas islâmicos, que "andam a infiltrar" a nossa cultura.

Isto não é uma queixa, é uma constatação. Tal como no caso do matrimónio, as tradições e os conteúdos actuais do Ocidente Cristão estão a ser transformados a partir do seu próprio interior. O perigo - se se pode falar em perigo - não vem dos "outros".

E cosi la barca va - reinventando mapas e rumos, remos e remadores.


(andava uma pessoa na internet descansadamente à procura de uma receita para carne assada...)

10 comentários:

abrunho disse...

Eu nunca fui a um jantar na Alemanha em que não perguntassem às pessoas de necessidades específicas. Agora não são só os religiosos. São também os vegetarianos, os vegan e os alérgicos.

Helena Araújo disse...

A diferença é que, até há não muitos anos, certas questões de tradição religiosa eram conhecidas e respeitadas - como se fizessem parte da nossa cultura. Comer carne na Sexta-feira Santa, não trabalhar ao Domingo, etc.

Este lombo de porco é apenas um incidente. Mas que dizer dos feriados religiosos? Na Alemanha, a Sexta-feira Santa e a Segunda-feira de Páscoa são feriados. Na França, a Sexta-feira Santa é um dia normal de trabalho. E as férias escolares não coincidem necessariamente com a Páscoa.

Quando nós vivíamos na "Alemanha comunista" - ;-) - havia pessoas que pediam tolerância de ponto especial para o Pentecostes, sem fazerem a menor ideia do que isso é.

abrunho disse...

A sociedade está cada vez mais secular.

O que se está a passar é a apropriação, que já aconteceu no passado. A igreja apropriou-se de datas especiais pagãs para fundar as suas datas especiais.

A questão para pessoas como eu, é de que forma queremos incorporar essas datas nas nossas vidas, ou se as queremos incorporar. Eu vou muitas vezes trabalhar nos feriados.

Helena Araújo disse...

Abrunho,
trabalhar voluntariamente nos feriados?! Tu és a autêntica "fase superior do capitalismo" em pessoa!
;-)

A minha questão central (a partir de uma inocente posta de lombo...) é esta: qual é a identidade da Europa? O cristianismo está destinado a voltar às catacumbas? Sendo assim, que sentido faz continuar a haver na sociedade hábitos (feriados religiosos, respeito pelo repouso do Domingo) que não têm nada a ver com as convicções e a prática da maioria das pessoas?

abrunho disse...

Seria, se eu trabalhasse pelo dinheiro. Ninguém me paga horas extraordinárias.

Portanto, o que perguntas é se os cristãos se devem abster dos seus hábitos ainda antes dos outros os forçarem. Pois, não sei. Um ateu é plástico. Nós também precisamos de descansar e de dias de introspecção e/ou animação, pelo que os vamos querer manter, mas não estamos muito preocupados se mudarem mais para a esquerda ou para a direita. Nós damos-lhes um significado ou não.

Para mim a real questão é: os cristãos aceitam dividir a quota de feriados com outros grupos?

Helena Araújo disse...

Enganei-me no nome: não é "fase superior", é "estádio superior".
Bem, tu és o sonho de qualquer capitalista do "estádio superior" - além de trabalhares aos feriados, não recebes horas extraordinárias!
Se os sindicatos te apanham, estás tramada...

Outra questão: os feriados dividem-se ou somam-se? Desistir do Natal para os muçulmanos terem o seu primeiro dia de Ramadan? Ou os cristãos (os "praticantes") têm o Natal, os trabalhadores sindicalizados têm o primeiro de Maio, e os muçulmanos têm o primeiro de Ramadan? (Claro que são só exemplos) (E ainda falta tirar o primeiro de Dezembro aos autores de blogues chamados "viva Espanha", ;-) para o Miguel)

Ou criam-se mais feriados, e reduz-se os dias de férias?

abrunho disse...

Eu não trabalho pró capital!!!! Bem...

Isso é uma discussão a fazer. Contudo, penso que separar os grupos por feriados não dá muito jeito. Os ateus vão ficar a perder, porque os dias importantes para nós é para outros e não há o vice-versa. Por mim havia quota, todos tinham dia livre e cada grupo teria de prioritarizar os seus eventos. Esta é a minha opinião.

snowgaze disse...

Essa dos feriados religiosos era simples: adicionavam-se às férias e pronto, cada um tirava quando queria. Claro que os ganhos de produtividade por toda a gente ter os feriados ao mesmo tempo perdiam-se... (ah, pois é, também há disto!) :P

Helena Araújo disse...

Snowgaze,
durante uns tempos também imaginei essa hipótese. Mas tem um custo muito grande: a sociedade fica cada vez mais dividida em guetos. É muito positivo - e não apenas do ponto de vista da produtividade - que haja ritmos comuns de trabalho e de descanso.
Por outro lado é negativo que as pessoas de outras religiões tenham de tirar um dia de férias para celebrar convenientemente os seus feriados religiosos.

Rita Maria disse...

Vai ser sempre muito complicado, claro. Mas eu voto 3+1 dias por cada religiao de expressao maioritária (3 gerais e um a definir individualmente), vamos dizer um top das três maiores e 2 dias extra para pessoas de credos diferentes a tirar para festas religiosas específicas. Os católicos e os protestantes sao os mesmos, ficavam com dois dias de Natal e um de Páscoa, ou o contrário se preferissem.

Nao é mais do que aquilo que existe agora, beneficia a compreensao intercultural e a religiosidade individual e é justo com as religioes mais pequenas, julgo. Mas para isto a Alemanha (acho em Portugal a proporçao é tao avassaladora que a questao nao se coloca demasiado) tinha de mudar a sua definiçao de Igreja, esta versao em que sou protestante o Estado faz o favor de canalizar o meu dinheiro e se sou muçulmano acha as minhas transferências suspeitas.