Um trabalho de Sofia Leite sobre "A união de facto em Portugal - 2003", Instituto Nacional de Estatística, mostra que, muito antes do terrível ataque do dia 8 de Janeiro de 2010, o casamento em Portugal já não estava a ser o que noutros tempos terá sido.
Para piorar, parece que este fenómeno de "já não ser o que soía" não é de hoje:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(Este país, que tragédia crónica, há 500 anos que não arranja maneira de se endireitar!...)
A seguir podem ler alguns excertos. Também podem ler aqui o trabalho completo.
Alguns apontamentos à margem:
Se na sociedade portuguesa se assiste, "de facto, a uma alteração dos valores e das representações em torno do casamento e das suas finalidades", então:
- a prática dos casais heterossexuais (concretamente: colocando no centro o casal e o amor, em detrimento da procriação) está a alterar o conteúdo da conjugalidade num sentido que torna natural e lógico o acesso de pessoas do mesmo sexo ao casamento;
- a resistência, por parte de alguns grupos e indivíduos, a esta alteração legal, pode ser resultado não de simples homofobia, mas da tentativa de preservar uma ordem tradicional que está em declínio;
- quando Manuela Ferreira Leite ou a rainha de Espanha afirmam que "o casamento é para ter filhos" estão simplesmente a inscrever-se nesse grupo de resistentes à mudança (repito: à mudança operada por casais heterossexuais) - e a sua opinião (tal como a dos que entendem o casamento como algo fundado no amor e dele dependente), numa sociedade livre e aberta, devia ser respeitada como legítima, em vez de ser alvo de chacota;
- (Esta é para ti, Lutz) não é preciso ser católico conservador e interessado na manutenção do poder da Igreja Católica na sociedade portuguesa para se "colar" à posição oficial da Igreja. De facto, basta ser conservador, ou sentir algo entre a perplexidade e a impotência perante tantas mudanças. Pensar nestas coisas dá muito trabalho e provoca alguma insegurança, pelo que para alguns será mais fácil deixarem a "Santa Madre" pensar por eles. Mas isso não quer dizer que se tenha interesse numa sociedade gerida com mão forte pela Igreja. E muito menos quer dizer que a prática dos casais (mesmo a de muitos dos que se afirmam concordantes com a doutrina oficial da Igreja) seja sempre conforme a essa doutrina.
***
Excertos do trabalho referido, publicado pelo INE:
"Assistimos, nas últimas décadas, a importantes mutações nos padrões de nupcialidade e conjugalidade em Portugal. Entre elas, destacam-se o aumento do casamento civil em detrimento do religioso, a acentuada subida dos valores do divórcio, a queda das taxas de nupcialidade e o aumento significativo dos nascimentos fora do casamento, para além de outros indicadores. Por outro lado, tendem a difundir-se outras formas de conjugalidade, tais como a união de facto, quer como uma fase experimental, quer como uma alternativa ao casamento.
Para além das mudanças já referidas, tende a alterar-se também o modo como os casais vivem a relação conjugal. A conjugalidade é, hoje em dia, vivida e encarada de forma diferente de há uns anos atrás. Mantida sobretudo por razões de sobrevivência, linhagem e transmissão do património, com claras desigualdades de papéis sexuais e sob fortes pressões e constrangimentos familiares no passado, a conjugalidade é hoje partilhada com o ser escolhido e amado e é sinónimo de afecto e intimidade, um lugar de refúgio contra o mundo exterior.
Apesar de a união de facto não ser uma situação conjugal recente em Portugal, ela tem aumentado consideravelmente nos últimos anos, quer em número, quer em visibilidade. A união de facto já não é, hoje, uma situação específica de um dado grupo social ou de uma determinada região do País, mas começa a generalizar-se como uma situação alternativa ao casamento legal. A novidade está, pois, no significado que ela pode assumir actualmente para os seus protagonistas e no modo como é encarada pelos outros indivíduos.
(...)
Em todos os países da Europa Ocidental e da América do Norte, verifica-se o envelhecimento da população, o recuo do casamento legal, a queda da taxa de nupcialidade e os aumentos do número de divórcios, de celibatários, das famílias monoparentais e das famílias recompostas. A união de facto tem vindo a ganhar terreno e é, hoje em dia, responsável pela percentagem elevada de nascimentos fora do casamento. Observa-se, ainda, a diminuição do número de filhos por casal, sendo o limite à volta de 1,5 filhos por mulher, não se assegurando a substituição das gerações em muitos países. O ciclo de vida familiar perde o seu caracter de previsibilidade: a constituição de uma família e a procriação dentro do casamento, por exemplo, deixam de ser etapas obrigatórias.
Portugal não é excepção, e ao longo das últimas décadas verificaram-se importantes mutações nos comportamentos familiares. A análise dos principais indicadores demográficos (Quadro 1), desde 1960 até à actualidade, permite confirmar essas mutações.
(...)
Assiste-se, desde 1960 e, mais concretamente, desde 1970, até ao presente, a fenómenos, tais como:
· a queda da taxa de nupcialidade (atingindo o valor de 5,7 por mil em 2001),
· aumento progressivo dos casamentos civis (tomando a proporção de 37,5% em 2001),
· aumento dos nascimentos fora do casamento (representando 23,8% em 2001),
· a subida da idade média ao primeiro casamento para ambos os sexos (actualmente é de 27,8 para os homens e 26,1 para as mulheres),
· aumento lento mas contínuo dos divórcios (1,8 divórcios por cada mil habitantes em 2001),
· a queda acentuada da fecundidade com a consequente não substituição das gerações (43,2 nados-vivos por mil mulheres em 2001),
· a subida significativa dos indivíduos a viver em união de facto (de 2,0% em 1991 para 3,7% em 2001 em relação ao total da população residente e de 3,9% para 6,9%, nos mesmos anos, em relação ao total da população casada).
Para além destes indicadores, há a destacar a elevada escolarização feminina e o forte aumento da actividade profissional das mulheres casadas e com filhos, nos últimos anos.
Se, aparentemente, o quadro anterior poderia ser sinónimo da desvalorização e perda do valor das relações familiares, correspondendo ao que alguns autores consideram ser a “crise” ou o “fim da família”, a observação mais atenta por parte de muitos sociólogos da família revelou que a ideia de transformação ou mudança na família não significa necessariamente a sua desagregação ou mesmo o seu fim (Almeida e Wall, 1995, p.34; Fernandes, 1994, pp. 1153-1154; Kaufmann, 1993, p. 32; Roussel, 1992a, p.116; Roussel, 1992b, p. 169; Shorter, 1995, p.296; Torres, 1996b, p.13).
O que está em causa é o conceito de família tradicional anteriormente considerado e não o conceito de família em si 1. Outros modelos ou tipos de família, com outras lógicas, passaram a estar presentes. A título de exemplo, a queda do número de casamentos celebrados tem sido interpretada por muitos como um sinónimo de “crise da família”. No entanto, sociólogos e demógrafos têm-na interpretado como um sinal conjuntural, do adiamento da idade de entrada no casamento, por um lado, e estrutural, por outro lado, do desenvolvimento da união de facto.
Nas décadas de 60 e de 70, vigorava um modelo da família criado a partir de um casamento monogâmico, com base na relação estável do casal, onde os papéis sexuais eram rigorosamente repartidos entre os cônjuges. Caracterizava-se ainda por uma idade elevada ao casamento e por uma forte taxa de celibato. Pensava-se, então, que este modelo constituía a forma acabada da instituição, que era o produto da industrialização e que, em breve, iria difundir-se entre as outras civilizações do mundo, à medida que estas se fossem modernizando. A ocidentalização deveria passar pela adopção do modelo da família nuclear e dos valores da liberdade e de individualismo que estão na sua base.
Os anos 70 marcaram porém uma ruptura nessa evolução. O alcance da autonomia das mulheres, devido à sua entrada em grande número no mercado de trabalho e a contracepção, que permitiu o controle da fecundidade com bastante segurança, são factores que contribuíram para esta ruptura.
A “família ocidental”, tal como anteriormente caracterizada, já não existe. O divórcio, a união de facto e as recomposições familiares abalaram o “modelo da família ocidental”.
O casal sofreu uma profunda transformação. Passa a basear-se no ideal romântico do amor, livre dos interesses económicos que pesavam sobre a formação das uniões, tornando-se um símbolo da liberdade individual de que gozam as sociedades ocidentais. A coabitação - mas também o casamento, uma vez que o divórcio encontra-se tão difundido - instala o casal durante um tempo precário. Em vez de um casamento “até que a morte os separe”, os indivíduos instalam-se ou casam-se por um período ao longo do qual cada um poderá realizar o seu projecto individual (Burguière, 1999, p. 31).
Este grupo doméstico instável tem uma descendência de dimensões reduzidas relativamente aos seus homólogos camponeses, operários ou burgueses de há cem anos atrás, não indo além de um ou dois filhos. A limitação da fecundidade não é a recusa de ter um filho, mas o casal “programa-o”; o centro familiar desloca-se da criança para os pais (1999, p. 31). Por outro lado, a família enquanto instituição de união entre as gerações é sólida. A coabitação juvenil, o divórcio, os nascimentos fora do casamento já não constituem um desvio, sendo antes integrados nos processos de relações familiares (1999, p. 32).
(...)
A diversidade de concepções do casamento, dos valores que actualmente lhe estão na base e o desenvolvimento de novas formas de conjugalidade significam, para muitos, que o casal se encontra em crise.
Assim como o brusco aumento do número de divórcios, de famílias monoparentais, de nascimentos fora do casamento, de pessoas que vivem sós, parecia corresponder aquilo que se denominou por “crise da família”, até que ponto a diminuição das taxas de nupcialidade nas últimas décadas, pode ser entendida como sinónimo de “crise do casal”? Será o casal que se encontra em crise ou o conteúdo conceptual do próprio casamento? Que factores podem ter contribuído para esta possível ”crise”?
(...)
Se a entrada na vida conjugal se continua a fazer maioritariamente pela mesma via tradicional, assiste-se, de facto, a uma alteração dos valores e das representações em torno do casamento e das suas finalidades 2.
Para muitos, o casamento deixou de ser vivido como um sacramento; salienta-se uma visão mais laica, mais privada, do casamento, associada a maior liberdade individual; o profano sobrepôs-se ao sagrado, o bem estar pessoal e o desejo de persistência do amor tomam o lugar do dever de continuidade do casamento; na falta de amor, quebra-se o compromisso (Torres, 1996b, p. 2).
Trata-se de uma visão mais modernizante e desinstitucionalizada do casamento, associada a uma matriz relacional e afectiva da conjugalidade, em detrimento de uma representação mais tradicionalista e conservadora do casamento, com base numa matriz institucional (Vasconcelos, 1998, p. 326).
(...)
Hoje em dia, coexistem diferentes formas de conjugalidade, que privilegiam determinados aspectos presentes na relação - “dimensão amorosa, dimensão institucional, dimensão parental, dimensão patrimonial” (Torres, 1996b, p. 21). A pluralidade e diversidade destes modelos vão desde os casais casados legalmente aos que vivem em união de facto temporária ou definitiva, desde os solteiros vivendo em casal cada um em sua casa (“living apart together”) até aos lares com um único chefe de família que educa sozinho ou com um companheiro, os filhos.
(...)
Tende-se pois, nas sociedades contemporâneas e, também em Portugal, a “dessacralizar o casamento”, ou seja, assistimos à contínua desvalorização dos aspectos sagrados e institucionais do casamento 6. O que antes era um empreendimento de regulação religiosa e colectiva, passa a ser hoje entendido como um assunto que só diz unicamente respeito ao foro terreno e pessoal; o que era uma prática restrita a alguns sectores laicos da sociedade portuguesa alarga-se a muitos outros sectores. Continua de certo a haver indivíduos que encaram o casamento de uma forma tradicionalista e conformista ou que sejam fortemente espiritualistas e convictos nas suas opções matrimoniais de caracter religioso. No entanto, tendem a constituir um grupo cada vez mais restrito (Torres, 1996b, pp. 53-54)."
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