10 novembro 2009

um relato estórico

Às cinco em ponto entrámos - o Giordano Bruno, a mulher dele, e eu - na Pariser Platz (que é a praça por trás da Porta de Brandemburgo, com a embaixada americana de um lado e a francesa do outro) e arranjámos um lugarzinho jeitoso para ver a orquestra. Daí a quinze minutos começou a chover. Saímos da praça para ir comprar um guarda-chuva. Regressámos. A praça estava mais cheia, o que tornava difícil a passagem dos "protestantes" que aproveitavam a hora para exibir o seu descontentamento (o melhor trocadilho num cartaz: "Deutschland Deutschland übel alles"*). Uma hora depois continuava a chover, e cada vez mais. Demo-nos conta de que aquele sítio não era muito bom, e resolvemos procurar outro.
Ao sair da praça, vimos um coro de jovens que cantava "we shall overcome". Juntámo-nos a eles, o Giordano Bruno improvisava uma quinta voz cheio de emoção - lembrando-se do tempo em que, juntamente com outros estudantes, cantou esta canção inúmeras vezes para recusar a guerra do Vietname. Eu nem queria acreditar que aqueles miúdos estavam a cantar por uma pauta. "We shall overcome" com texto e notas?! Primeira estrofe, segunda estrofe, terceira estrofe?! Mas esta canção faz parte do imaginário colectivo mundial, é uma das poucas que sabemos todos cantar de cor e coração!
(Bem... estou a ficar velha)
Contornámos a embaixada britânica e, para fugir à multidão atravessámos o memorial do Holocausto - o que foi difícil, porque o guarda-chuva era mais largo que o corredor. Isto dava um aproveitamento simbólico qualquer, mas de momento ficamos assim. Chegámos finalmente à linha de pedras de dominó que ia da Porta de Brandemburgo para a Potsdamer Platz. Parecia o estaleiro da Torre de Babel: cada magote de espectadores falava uma língua diferente, quase não se ouvia alemão. Chovia cada vez mais.
Do lado de lá do "muro" passou um grande cortejo com bandeiras do Solidarnocz.
Quando, às sete, Daniel Barenboim arrancou com a orquestra, não conseguíamos ouvir nada. E também não víamos as imagens no ecran gigante, devido a todos os guarda-chuvas que havia à nossa frente. Tive pena dos que estavam atrás de mim, e fechei o guarda-chuva. Quando apareceu a primeira surpresa da noite, Placido Domingo a cantar o hino não-oficial da cidade, "Berliner Luft", o pessoal à nossa volta não sabia em que momento devia fazer os assobios. Foi aí que decidimos ir para casa. Não é que a chuva, os guarda-chuvas e o mau som incomodassem muito. Mas estar ali no meio de não-berlinenses, ai isso!

(Podem ver neste vídeo, com a Filarmonia de Berlim na Waldbühne, como é que os Berliner acompanham esta marcha; e aqui, como foi ontem - uma cópia barata, foi o que foi)

Fomos para casa, portanto. Completamente ensopados, e com alguma frustração. A poucos metros da minha rua, o telemóvel tocou. Era a Christina, feliz da vida, a dizer que estava num terraço da Potsdamer Platz, e que conseguia ver tudo nitidamente. "E também ouves?", perguntei eu, tentando aliviar a inveja. "Sim, com pouca nitidez, mas ouço!" O nosso vizinho trabalha naquele prédio, e levou-a.
Passados cinco minutos também nós estávamos a ver tudo, e a ouvir nitidamente, na televisão e em directo.

(Estou aqui desconfiada que os organizadores desta festa andaram e ler o Dois Dedos de Conversa. É que no programa só se falava do Durão Barroso, mas quando chegou ao momento de empurrar o dominó estavam lá os dois presidentes da nossa Europa, o da Comissão e o do Parlamento. Tanto melhor.)

Gostei de ver que deram a palavra não apenas aos grandes políticos, mas também a alguns dos que tiveram a coragem de afirmar "nós somos o Povo!". Por exemplo, a uma das mulheres que em Setembro de 1989 exibiu perante os jornalistas ocidentais um cartaz onde se lia "Por um país aberto com pessoas livres" (já contei esta história aqui) - sabendo perfeitamente que logo a seguir iria parar a uma das temidas prisões da Stasi. Emocionei-me com o Gorbatchev, gostei do "muito obrigado" que lhe disseram - nunca seremos capazes de agradecer o suficiente. Ri-me com o modo como vários políticos não respondiam às perguntas que lhes faziam, dizendo "sim!" como plataforma de lançamento das frases que traziam preparadas de casa. E achei curioso terem dado a Thomas Gotschalk (um brincalhão) a responsabilidade de moderar esta festa. Porque terão escolhido um entertainer, quando podiam recorrer a pessoas com uma outra imagem de seriedade (o Günther Jauch, por exemplo)? Suponho que quereriam cativar o público mais jovem, os tais do "que chatice, lá estão eles outra vez a falar do muro".

Agora estou a pensar que será que vão inventar para os 25 ou os 30 anos da queda do muro. Já sei que devo ir bem mais cedo, com banquinho (se permitirem) e piquenique, para o lado de fora da Porta de Brandemburgo.

E deixo aqui um apelo importante:

Povos oprimidos de todo o mundo!
Organizai-vos de modo a que as vossas revoluções ocorram numa estação mais amena!
O público das comemorações agradece!
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* "Deutschland Deutschland übel alles" é um trocadilho a partir da estrofe proibida do hino ("Deutschland Deutschland über alles").
Trocou-se o "über" (= sobre) por "übel", que significa algo como "mal relativo".
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Adenda: não há dúvida que saber ler é uma vantagem. Só depois de escrever este post me apercebi que desde o princípio estava previsto que um dos extremos do dominó seria empurrado pelos dois presidentes europeus, o da Comissão e o do Parlamento.
*suspiro*

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