13 novembro 2009

ponte aérea

A pedra que se vê no meio desta fotografia (já mostrada num post anterior) lembra o período do bloqueio, um dos momentos mais dramáticos da Berlim pós-guerra. Em 1948 os Aliados ocidentais decidiram criar uma nova moeda na parte da Alemanha por eles controlada. A URSS não achou graça a essa medida unilateral, e criou uma outra moeda para a sua parte da Alemanha. Quando, na parte "ocidental" de Berlim, o marco ocidental foi introduzido, os soviéticos reagiram com um bloqueio total. Essa parte da cidade tinha mais de 2 milhões de habitantes, víveres para cerca de um mês e carvão para mês e meio.
Por meio de uma ponte aérea com três corredores (daí os três arcos que se vêem no monumento), a cidade foi abastecida durante mais de um ano.



Relato do diário de Ruth Andreas-Friedrich:

(nota: vou traduzir o texto com a rapidez do costume. Isso significa que não gastarei tempo à procura da tradução exacta de edifícios ou cargos, nem a explicar pormenores como a diferença entre um presidente da Câmara de Berlim e outros presidentes da Câmara. O que me interessa é dar uma ideia do ambiente naqueles dias. )

Quarta-feira, 23 de Junho de 1948
(...) Às três da tarde, a Heike e eu pomo-nos a caminho da Câmara. À medida que nos aproximamos, damo-nos conta de como as ruas se tornam assustadoramente cheias. Camiões, ciclistas, peões. Como se todos os adeptos da SED tivessem recebido ordem para comparecer. Bandeiras vermelhas adejam ao vento. Sobre as cabeças, vêem-se cartazes: "queremos uma moeda única!" - perto da Câmara, a concentração torna-se perigosa. Alguém grita: "abaixo os divisionistas!" Um outro responde: "malditos sovietes!" Os que estão à volta gritam. Os rostos contraem-se como em espasmos. Uma onda impele-nos para a frente. Pisa, fura, empurra como uma corrente de lava. Ali! Um encontrão, uma pancada, uma pressão transbordante. "Vão invadir a Câmara", guincha uma mulher. A corrente leva-nos com ela. "Já arrombaram as portas!", ouço alguém dizer. "Estão a ocupar a sala de reuniões." - Bastilha! penso eu, assustada. Agora é tudo ou nada. - Chegamos à Câmara. Largas ondas humanas espalham-se por escadas e corredores. O social-democrata Suhr tenta, em vão, falar com as pessoas. "Não vamos iniciar a reunião enquanto os lugares na tribuna não estiverem vazios", anuncia ele à multidão. Em resposta, gritos: "Dêem-lhe um murro no olho... queremos ver os divisionistas!" Começam a usar megafones. "Comecem... comecem..." Nesse momento, aparece Louise Schröder, a Vice-Presidente da Câmara. "Sejam razoáveis. Vão para casa, e ouçam o debate hoje à noite na RIAS". Gargalhadas trocistas ribombam sobre as suas palavras. Ela apela, pede, implora. Debalde. Passam duas horas. Os indesejados não arredam pé. Finalmente, Chwalek, da SED, aproxima-se da tribuna. "Camaradas", chama ele. "Esperai lá fora. A nossa fracção manter-vos-á permanentemente ao corrente da situação." As suas palavras acalmam os espíritos agitados. Quem está habituado à disciplina partidária obedece às palavras do chefe. Durante uns cinco minutos, o fiel da balança oscila ainda entre tumulto e ordem, até que esta ganha. A "invasão da Bastilha" acabou. Os demonstrantes abandonam a sala cantando a Internacional.
"Em França não teriam desistido", diz a Heike, quando nos encontramos de novo cá fora, amarrotadas e ofegantes. "Até para fazer uma revolução é necessário talento." Uma sorte que não o tenhamos, penso eu, enquanto esfrego a minha canela dorida. Ou devia ser um azar?

Quinta-feira, 24 de Junho de 1948
Começam as represálias. Na língua dos diplomatas chama-se "sanção", o que soa mais fino, menos brutal. Os sovietes cortaram o fornecimento de energia eléctrica aos sectores ocidentais desde esta manhã. Não temos rádio, nem luz, nem electricidade para cozinhar, ou seja - como já aconteceu tantas outras vezes - sem qualquer possibilidade de ferver sequer um pouco de água para fazer café. O fogareiro de tijolos de 1945 já foi desmontado. A Heike prepara um pequeno-almoço com pão e ameixas secas demolhadas. Até logo à noite temos de arranjar algumas velas. Mas como que é que se pagam as velas? Como que é que se pode pagar seja o que for, sem se incorrer em crime?
(...)

Sexta-feira, 25 de Junho de 1948
(...)
As lojas estão vazias, e não parece que se vão encher de um dia para o outro com mercadorias fantásticas como nos sectores ocidentais. Para poder oferecer mercadorias, é preciso que elas existam. Mas a SMA deu ordens para cortar imediatamente todos os fornecimentos de mercadorias da região oriental à ocidental. Desde ontem, não deixam passar mais comboios de mercadorias ocidentais pela zona oriental. O governo militar russo lamenta: "devido a um problema técnico na linha ferroviária, a Administração dos Transportes vê-se obrigada a interromper os transportes de mercadorias, como já aconteceu com os de passageiros. Estamos a tomar todas as medidas para reiniciar os transportes o mais depressa possível." Quem não acredita, é problema dele. Enquanto não houver ninguém disposto a protestar seriamente, é indiferente se acreditamos ou não.
Nos mais altos círculos americanos fala-se da maior crise entre os aliados ocidentais e a União Soviética desde o fim da guerra. Nós somos o palco desta crise. O seu objecto, o seu sujeito, o seu herói a contragosto. E é a isto que se chama reforma monetária. Não temos luz, não temos rádio. E podemos reflectir ociosamente à luz das velas sobre como nos havemos de arranjar com esta celebridade duvidosa.

Domingo, 27 de Junho de 1948
Duas horas de electricidade por dia. Aos domingos, apenas uma. Para distribuir com justiça, dividiram a população em grupos. Assim, cada um tem a possibilidade de aceder à sua quota de energia a horas úteis. O nosso turno é entre a meia-noite e as duas da manhã. Tudo o que está antes e depois acontece sem energia, sem luz, sem rádio. Recentemente começaram a circular pelos sectores ocidentais veículos da RIAS para substituir o serviço noticiário. É fastidioso estar no centro dos acontecimentos mundiais e só se poder informar sobre eles entre a meia-noite e as duas da manhã. Por isso, quando o carro da RIAS vem, nós corremos para ele. Dá notícia do mais recente e do mais importante: "A ponte aérea foi reforçada mais uma vez, conta agora com 100 aviões diários. É proibido tomar banho nos lagos e rios porque, devido à falta de energia, se teme que as águas sejam contaminadas por esgotos. Continuam a prender pessoas no sector oriental por serem detentoras de marcos ocidentais. Câmbio da "moeda de papel de parede": 30:1 a favor do marco ocidental." - O carro da RIAS afasta-se, deixando-nos consternadas: não parece que as coisas vão melhorar em breve.

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