21 abril 2009

sobre fardas, ao correr da pena

Via Hoje Há Conquilhas fiquei a saber do mais recente escândalo nacional, quase tão grave como o parece-que-afinal-é-um-não-caso-Sócrates-Freeport.
Os decotes das funcionárias de uma Loja do Cidadão! Aaaah, finalmente acontece alguma coisa em Portugal!
E então: qual é o problema de um serviço de atendimento ao público estabelecer um conjunto de regras de vestuário? O que nos deve incomodar são as regras no caso concreto, ou o atentado ao princípio geral das liberdades individuais? Expliquem-me isso melhor, por favorzinho, que eu também me quero exalterar.

No meu contrato de trabalho numa empresa em San Francisco havia uma cláusula que informava sem grande margem para dúvidas sobre o que me era exigido em termos de vestuário: de segunda a quinta, compostinha; às sextas, business casual. Era bastante ridículo ver o chefe e proprietário da empresa, o autor daquela cláusula, a vestir religiosamente jeans e pólo às sextas-feiras. Lembrava-me uma revolução devidamente autorizada por todas as instâncias competentes, ou uma grande maldade que se diz sobre os alemães: que têm hora marcada para o sexo, e é ao sábado à noite, depois do programa de desporto.
Na prática: às sextas, esperava-se de mim que fosse trabalhar de jeans. Só por causa das coisas e da desobediência civil, às sextas apericaltava-me ainda mais. Não fui despedida, pelo que desconfio que o chefe era um rapaz muito tolerante. Só foi pena não ter brincado com Barbies quando era pequenino, para não precisar de brincar às roupinhas depois de velho.
(Isto sou eu a meter nojo. Provavelmente, a verdade anda mais por aqui: as empresas escolhem um dress code pelo qual também passa a sua imagem, mas os funcionários unidos e reivindicantes conseguiram abrir uma pequena excepção para o fim da semana.)

Na empresa onde tinha trabalhado anteriormente, na área de software, o dress code - se bem entendi - era assim: quanto mais genial e insubstituível na empresa, mais abandalhado. Alguns colegas meus iam de t-shirt velha, ou camisa amarrotada, fazer palestras em congressos. Nem sempre a gravata vermelha é o melhor símbolo de sucesso - uma t-shirt toda rota pode ser bem mais intimidante.

De uma maneira ou de outra, aquilo que se veste é sempre uma afirmação e uma imagem.

A Angela Merkel, por exemplo: a gente olha para aqueles fatos, e vê uma farda de trabalho e um claro "deixem-me trabalhar, não me chateiem com essas minudências".
O Schroeder adorava gravatas vermelhas. Aliás: é um prazer comparar os vermelhos das gravatas dos políticos nos debates televisivos durante a campanha eleitoral.
Em contrapartida, se não me engano, o Obama apareceu na Europa de gravata azul. Tranquilo, em missão diplomática.
Um dia destes hei-de reparar que cores usam os ministros dos negócios estrangeiros.

Nas escolas de Weimar, onde os meus filhos andaram 5 anos, havia uma certa pressão para manter o nível bastante baixo. Esprit?! Adidas?! Nike?! Não, nada disso. Lidl, ou, no máximo: C&A. Ai de quem ousasse um pouco mais de estilo - arriscava-se a andar nas bocas do mundo.
Muito curioso: miúdos nascidos depois da queda do muro, numa Alemanha já reunificada, mas com reflexos ideológicos do período comunista. Apesar da invasão capitalista, da televisão, da Bravo, da internet.
(Confesso que é bem mais agradável viver numa sociedade onde na escola a pressão sobre o estilo de vestuário, se existe, é na direcção do mais simples, e não das marcas caras.)

Noutras regiões da Alemanha, e noutros países ocidentais, as coisas são bem diferentes.
Por exemplo: os filhos de amigos nossos, da sul da Alemanha, que fizeram férias connosco em Portugal, e iam para a praia com algumas centenas de euros em cima do corpinho: t-shirt Ed Hardy (aquelas coisas esquisitas que custam um dinheirão), calções de banho justos de marca não-sei-quê por baixo de bermudas marca não-sei-quantos. A condizer: sandálias, boné, óculos de sol - um salário mínimo não chegaria para pagar o beach apparel daqueles adolescentes. E até me esqueci do i-pod.

No seu livro mais recente, Chagrin d'École (já existe em alemão e em espanhol, a Caminho que se despache com a tradução, que o livro é mesmo bom), Daniel Pennac comenta, a propósito do vestuário dos jovens, que hoje em dia já nem se sabe o nome das peças de roupa, só se sabe a marca. Fazer o quê? Afinal de contas, uma coisa é uma "Allstar" e outra, bem diferente, é uma "sapatilha de lona"...

Muitas escolas alemãs têm uma espécie de farda para os alunos. Não andam todos de igual, longe disso! A escola, em conjunto com os representantes dos pais, escolhe uma empresa de vendas por correio que pratique uma boa relação qualidade/preço e, dentro do catálogo, um conjunto relativamente alargado de peças e cores que os alunos podem combinar segundo o seu estilo pessoal. Os professores louvam a iniciativa: ao que parece, o ambiente fica muito mais pacífico, porque os alunos não usam estilos e marcas para se dividirem em grupos e competições. As pessoas deixam de se distinguir pelo que vestem (e pelo preço da roupa que vestem), mas pelo que são. E o orçamento familiar dá um suspiro de alívio.


Eu avisei que isto é um post ao correr da pena.
Fico-me por aqui, que estes devaneios atrasam-me muito a vida real.

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