Ainda a propósito do escândalo-que-não-era-escândalo-excepto-para-questionar-os-métodos-dos-jornalistas, cabe fazer um pequeno resumo do que me dei conta de ter acontecido nos meios de comunicação social alemães.
No dia da entrevista do Papa, durante o voo para África, houve aqui um certo rebuliço. Deu-se algum relevo à crítica do preservativo como solução para combater a sida, mas falou-se também das propostas e do empenhamento da Igreja nesta luta.
No dia seguinte vários jornais diários publicaram a frase completa, e informaram que a interpretação divulgada no dia anterior se baseara numa afirmação arrancada ao seu contexto.
O Spiegel online deu durante dois dias destaque a vários artigos que criticavam a primeira versão da afirmação do Papa, mas depois retirou-os (deixando-os apenas nos arquivos) e fechou o acesso à respectiva caixa de comentários.
As edições das revistas e do semanário mais importantes (Spiegel, Stern, die Zeit) publicadas depois do início dessa viagem não trazem qualquer artigo sobre ela, ou sobre a entrevista (o escândalo! o escândalo!) inicial.
Encontrei apenas um pequeno artigo de opinião no jornal Die Zeit:
Decepção
Somos todos Papa? Não, não somos. O Papa decepcionou-nos. Por motivos que não compreendemos e, sobretudo, nunca aceitaremos, ele mostrou-se benevolente em relação a uma seita extremamente conservadora o possivelmente anti-semita. O "nosso homem" na catedral de São Pedro? Isso já foi.
Talvez seja bom que seja assim. O Papa não pertence apenas a um povo, pertence a todos, inclusivamente aos africanos que não terão tomado conhecimento do que se passa com a Congregação São Pio X mas provavelmente compreendem melhor do que nós as suas convicções e a sua visão do mundo.
E compreendem o Papa, que infelizmente já não é o nosso Papa. Eventualmente não nos compreendem a nós, e se soubessem que estamos contra o Papa deles ainda nos compreenderiam menos.
Diz-me uma jornalista que a sociedade alemã já se fartou do tema "Papa". Após o caso Williamson, profundamente chocante para esta sociedade, instalou-se uma espécie de torpor e indiferença.
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Se não tivesse sido o Público a fazer informação séria (infelizmente isto não é um pleonasmo), eu teria tido apenas acesso a um escândalo-que-não-era-escândalo.
Ao António Marujo cabe um público agradecimento pelo modo como "acompanhou" a visita do Papa, chamando a atenção para o que nela foi realmente importante.
Nomeadamente aqui e aqui.
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Lamento que os jornais alemães não tenham agarrado nas frases iniciais da entrevista do Papa, aquelas onde ele refere a necessidade de uma economia ética.
Faço uns biscates numa das muitas lojas que existem na Alemanha, organizadas por cristãos, para comercializar produtos provenientes do Terceiro Mundo.
Há dez anos que a minha "loja de boa consciência", mantida pelo empenhamento de mais de 20 voluntários, vende café, chocolate, açúcar, especiarias, frutos secos, vinhos e trabalhos de artesanato provenientes de iniciativas cujo objectivo mais importante é o "empowerment" das populações mais pobres deste mundo, especialmente das mulheres.
Tinha-me dado muito jeito que a imprensa alemã falasse das implicações da economia ética, e a nossa loja se enchesse de pessoas dispostas a pagar uns 30% mais pelo chá rooibos, pelo vinho (Stella Organics - um projecto admirável), pelas misturas de ervas aromáticas africanas, pelos corações em pedra-sabão que já não posso ver, etc.
Pessoas realmente preocupadas com as condições de vida dos africanos, para as quais o Papa quis chamar a atenção.
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