28 janeiro 2009

vítimas

Há algumas semanas, um miúdo da turma do Matthias começou a provocar os colegas numa aula de Artes. Os outros responderam com indiferença ou troça. O Matthias disse uma piadinha, logo a seguir pediu desculpa, voltou a concentrar-se no seu trabalho e, quando menos esperava, levou tal pancada na cabeça que andou com dores durante uma semana.
Enquanto esperavam que as respectivas mães os viessem buscar, o outro desatou a queixar-se "há mais de dois anos que sou vítima de mobbing nesta turma" e a ameaçar "se contares mentiras em casa não perdes pela demora, vais ver o que te faço". Quando eu cheguei, esse miúdo estava com a cabeça escondida nos braços, a chorar desconsoladamente sobre a mesa; mas quando me fui embora, esqueceu-se de soluçar enquanto levantava a cabeça para me observar. Teatro do mau.

Há dois anos que ele enerva os outros com a sua hiperactividade e agressividade incontroláveis. Ninguém gosta dele. Uns evitam-no, outros reagem com troça às suas provocações, ou tomam a iniciativa de o provocar. É o emplastro da turma, e também o bode expiatório.
Esta não é a primeira reunião que se faz por causa do seu excesso de violência. Todos os alunos mais fracos que ele têm uma história para contar: a miúda que foi socada seis vezes, o que quase ia tendo um pé partido, o que levou um murro no estômago, o que levou com uma bola de neve no olho, etc.

Até agora, os pais do rapaz arranjaram sempre maneira de passar a culpa para a turma. O filho deles é um perseguido e uma vítima. Se uma família protesta por causa de um pontapé aplicado com raiva, a questão é "e o seu filho, não fez nada?"; se outra família se queixa das ameaças de morte que faz aos colegas (nós não nos queixámos mas o Matthias ouve aqueles "eu vou-te matar, seu grande filho da puta" e lembra-se logo do massacre de Erfurt), os pais dele perguntam se isso é mesmo verdade. E lembram que, quando são os outros a fazer asneiras, ninguém se incomoda.

Alguns pais querem pressionar fortemente a escola para que ele seja transferido. Já ouvi um aluno dizer "ele que vá para uma escola onde andam os da sua laia" - claro que aprendeu em casa, e claro que não é dignificante. Mas esses pais estão cada vez mais preocupados com a questão: que mais irá acontecer? Como vai ser quando estiverem numa aula de Química, e se o rapaz perde a cabeça justamente quando tem uma garrafinha de ácido na mão? Na aula de Trabalhos Manuais, a trabalhar com uma faca?

De modo que ontem, a propósito deste incidente, fez-se uma reunião com o director, os professores da turma, os delegados de turma, os dois alunos envolvidos e os respectivos pais.
A carta em que pedimos que se realizasse esta reunião era clara: há aqui um problema estrutural de violência para o qual se tem de encontrar uma solução antes que haja consequências mais graves; a turma não tem condições para resolver o problema sozinha.

Ao fim de alguns minutos o outro miúdo já se estava a queixar que pediu desculpa e tem tentado aproximações várias ao Matthias, mas ele continua a ignorá-lo e não aceita fazer as pazes. A sala toda virou-se para o Matthias, e alguém perguntou: "o que queres que o teu colega faça para tu esqueceres esta história?"

E foi nesse momento que me pregaram três rasteiras simultâneas: o Joachim a telefonar-me para saber onde estávamos e eu a ter de sair da sala para lhe responder, aquela maldita vozinha a repetir dentro da minha cabeça "dar a outra face, dar a outra face", e a incapacidade de formular imediatamente uma resposta incisiva perante aquela assembleia de pacificadores à força da má consciência.

De modo que, se não o disse ontem lá, digo-o hoje aqui (eu, em versão padeira de Aljubarrota, seria assim: debaixo da cama, a escrever livros de receitas de "tarte de espanhol"):

Uma pessoa que dá uma pancada brutal noutra, e a seguir se arma em vítima e ainda oferece mais tareia, tem de perceber que há pontos de não-retorno para quem vai demasiado longe.

Pronto, está dito.

Estou profundamente frustrada, e sinto que falhei no apoio que devia ter dado ao meu filho.
Já estou cheia de pena do próximo aluno que levar com esta vítima pela proa.

Além disso, aquele maldito "dar a outra face" está-me a incomodar. Acho que vou mudar de religião.

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