Adenda prévia, devido a um comentário do Lutz: post a propósito de um discurso de Erdogan em Colónia. O discurso completo pode ser lido aqui (em alemão).
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E se o nosso primeiro-ministro viesse a Hamburgo dizer a uns bons milhares de portugueses que deviam aprender alemão sem contudo esquecer a sua própria cultura?
Que mudaria eu na minha vida de emigrante?
Evitava os alemães, e juntava-me aos outros emigrantes portugueses, num impulso gregário?
Inscrevia-me num grupo de folclore minhoto?
Passava a cantar fados no duche (mas baixinho, para ninguém se rir)?
Começava a comer bacalhau três vezes por semana?
Passava a vir do supermercado com mais sacos plásticos que compras?
Desatava a anunciar em público a mensagem redentora de Fátima? Pendurava um rosário no retrovisor?
Num país que aposta na organização como forma de aumentar a eficiência do sistema e reduzir os erros, insistiria nas vantagens do desenrascanço?
Se estivesse descontente com o projecto de fechar o aeroporto Tempelhof, fazia uma espera ao presidente da Câmara de Berlim para lhe chamar "grande paneleiro"?
Ou deitava fogo à exposição que esteve até há pouco aqui, no museu de História, onde se falava dos descobrimentos portugueses de forma desrespeitosa?
(Nem queiram saber! Em vez de dar o devido relevo aos nossos brandos costumes, que fazem de nós um povo tão diferente, e ao "make love, not war" de Afonso de Albuquerque, não: andaram a perder tempo com pormenores tão insignificantes como o projecto de Colombo ter sido rejeitado pelo rei português, ou o Fernão de Magalhães ter sido afastado da corte portuguesa e ter feito a viagem de circum-navegação por conta do rei de Espanha. E falavam também das guerras, da conquista sangrenta de cidades estratégicas para o domínio das rotas comerciais. Que interesses obscuros estarão por trás de um exposição que assim se dedica a denegrir o nosso passado glorioso?)
E que devo fazer com os meus filhos, que me nasceram alemães?
Se quiserem estudar, digo-lhes que vão trabalhar, calaceiros, que têm bom corpo? (esta, lamentavemente, é autêntica: conheci um rapaz, filho de emigrantes portugueses, que foi alvo de um cerco cerrado da comunidade de emigrantes, "preguiçoso, sempre de livro na mão, não tem vergonha, a pesar aos pais em vez de ir trabalhar!")
Quando a Christina (sangue do meu sangue, etc., mas alemã até à medula) fez nove anos e nos disse "já passou metade do tempo que vou viver convosco" devia ter-lhe respondido que filha minha só sai da minha casa para casar?
E quando o Joachim concordou com a filha, eu devia divorciar-me e dá-lo por culpado, já que agiu contra tudo o que é normal na minha cultura?
Estou a exagerar, a usar propositadamente imagens do "Portugal no seu melhor", que só existe no anedótico.
Se um governante português viesse a Hamburgo dizer que temos de nos manter fiéis à nossa cultura, não estaria com certeza a propor isto. Mas então, estaria a propor o quê?
(Se é que alguma vez um governante português se lembraria de se dirigir assim aos emigrantes...)
O que é ser português? O que nos faz diferentes dos outros povos, e que valores são esses que temos de preservar a todo o custo quando vivemos no estrangeiro? O que é tão importante preservar, que chega a ser preocupação para um primeiro-ministro? E o que é que um primeiro-ministro sabe do que é a vida de um emigrante?
Pessoalmente, não me vejo como uma espécie de embaixador cultural do meu país.
Não sei para mim, quanto mais para "nós". Vou andando e vou vendo, tentando conciliar cada fase da minha evolução com o que é normal nas sociedades onde tenho vivido.
Nem eu, nem as sociedades onde me insiro, nem a sociedade em que nasci: nada é imutável.
Já disse aqui uma vez: não sei o que é "nós", mas sei exactamente quem é "não-nós".
E talvez seja isso o que mais me desagrada na mensagem de Erdogan aos milhares de turcos que se reuniram em Colónia para o ouvir. Ao dizer que devem aprender alemão, mas continuar fiéis à sua cultura, está a reforçar o conceito de "nós x outros". Pior: está a propor um "nós" estagnado, porque não permite que um turco, ou um descendente de turcos, evolua livremente em função do seu contexto social, e lhe impõe um sentimento de remorso por deixar de viver segundo os costumes dos parentes que ficaram na Turquia.
Tivesse ele dito "aprendam alemão, porque vocês são uma ponte viva entre a cultura alemã e a turca; procurem ser uma presença enriquecedora na vossa nova sociedade", e ficávamos amigos. Mas não, em vez disso veio brandir o fantasma da perda de identidade. Como se as crises de identidade não fizessem parte do processo de crescimento de toda a gente. Como se os emigrantes e os seus filhos soubessem claramente, e muito melhor que os outros, quem são, de onde vêm e para onde vão.
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Para a Abrunho, a propósito de alguns comentários no post anterior: é importante não esquecer que durante os últimos quarenta anos a Alemanha pensou que os emigrantes não vinham para ficar. Só agora se começa a falar seriamente disso, e da necessidade de decidir sobre os objectivos e as políticas de integração. Ainda estamos na fase da tomada de consciência. Para um filho ou neto de turcos que se sente tão alemão como todos os outros, é muito doloroso. Se tivesse nascido uns dez ou vinte anos mais tarde, talvez fosse mais fácil.
Já se notam alguns sinais de mudança. Nos jornais aparecem cada vez mais artigos escritos por pessoas com nomes que soam estrangeiros. Na televisão vê-se cada vez mais jornalistas e apresentadores com ar de "estrangeiro".
Por um lado, acredito que a sociedade acabará por se habituar a outros tons de pele e outra sonoridade dos nomes em gente que está perfeitamente integrada.
Por outro lado, lembro-me sempre de uma frase que li algures: "integração?! olhem para os judeus: estavam tão bem integrados na sociedade alemã que a eles se devem algumas das páginas mais importantes da cultura e da política desse país, e nem isso impediu o Holocausto!"
Conheces alguma sociedade onde a origem étnica não importa?
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