Comecei a escrever um comentário relativo ao post anterior, para a Gabriela, mas saiu grande demais e por isso deixo aqui em forma de post.
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Quando se fala de identidade nacional, os portugueses têm bom rir, porque têm fronteiras das mais antigas da Europa.
Isto, claro, se não pensarmos em Olivença, que é território português, cheio de património histórico nosso - mas: que fazer com todos aqueles espanhóis que lá vivem?...
Se a Alemanha só existe como um país desde há dois séculos, e se as suas fronteiras têm andado um bocado "instáveis", a que é que os alemães podem recorrer para se construírem uma identidade?
Tanto quanto sei, a construção da identidade passou, no início, pela cultura.
Na época do III Reich vincou-se a questão racial - e duvido que esse fosse um critério com o qual toda a população se tenha identificado. Além disso, (1) a teoria racial dividia os próprios arianos em várias subclasses, umas melhores que as outras; (2) a raça ariana é uma construção tão periclitante que cai por terra com a simples enumeração "loiro como Hitler, elegante como Göring e alto como Goebbels"; (3) a teoria racial, parece-me, foi uma construção motivada por razões de estratégia - e mal se lhes esgotou a teoria, arranjaram logo outros argumentos para aumentarem o espaço vital alemão.
No pós-guerra, a Constituição tomou o papel de elemento fundador da identidade alemã.
Ou seja: não me parece que os turcos que aqui vivem hoje sejam rejeitados por não serem nem arianos, nem herdeiros espirituais de Goethe e Schiller. Não conheço nenhum alemão que tenha esse orgulho de raça. Insisto que a rejeição (ou a indiferença?) começou devido ao facto de esta sociedade ainda estar a digerir a descoberta de que eles vieram para ficar, e agora se cimentou na desconfiança derivada de certos comportamentos.
Por outro lado, a rejeição não atinge apenas os turcos - também há enormes resistências contra os russos de sangue alemão (que, pelos que eu conheço, pouco fazem para se misturar com os outros alemães), e, 17 anos após a queda do muro, o país ainda pulula de Ossis e Wessis.
Obrigada pela referência a Fritz Haber, que me pôs numa pista interessante.
De facto, nunca me tinha perguntado em que condições se deu essa integração tão forte dos judeus alemães. Fritz Haber converteu-se seguindo uma teoria (de Theodor Mommsen, que por sua vez reagira a um ataque brutal de anti-semitismo por parte de Heinrich von Treitschke - pode ler-se um bom texto sobre isso num artigo do jornal Die Zeit, aqui, em alemão) de que os judeus se deviam converter ao cristianismo, para acabarem com esse resto de diferença, de modo a integrarem-se inteiramente na sociedade. Cristãos-novos na Alemanha do séc.XIX, portanto. Ao contrário de Einstein (ena, hoje estou a jogar alto), parece-me que a decisão de se converter não representava oportunismo, mas uma resposta moderna à questão da inserção dos judeus na sociedade alemã. Einstein era contra este tipo de concessões, e achava que os judeus deviam ficar entre si e, inclusivamente, deviam criar um fundo académico especial para financiar cientistas judeus, libertando-os da dependência das universidades estatais.
Muitos judeus converteram-se, ou abandonaram o judaísmo. Debalde: o III Reich veio revelar que a questão não era a da religião mas a do sangue.
Mas terá sido assim tão simples?
O III Reich precisava do dinheiro dos judeus e de um bode expiatório para manter o povo ideologicamente unido. De uma maneira ou de outra, os judeus estavam apanhados na armadilha. Salvaram-se alguns, contudo. Salvaram-se os judeus casados com as alemãs "puro-sangue" que tiveram a coragem de fazer o cerco à prisão da Rosenstrasse para onde eles tinham sido levados. O regime não teve a coragem para afrontar aquelas mulheres teimosas, e libertou os homens, em vez de os deportar - mostrando um calcanhar de Aquiles descomunal.
Bem, já estou a divagar.
Em todo o caso: o que perdeu os judeus não foi a falta de integração, foi a private agenda do III Reich, que se serviu do capital de desconfiança acumulado em décadas e séculos de maledicência dos judeus.
Se não tivesse havido um Hitler, se a república de Weimar tivesse evoluído para uma democracia estável, o anti-semitismo latente (alimentado, no séc. XIX, por episódios como os Protocolos dos Sábios de Sião e o debate da Treitschkiade) teria diminuído, ou continuaria a criar problemas de não-aceitação aos judeus alemães de hoje?
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E que se pode aprender com isto para o caso dos turcos, ou dos muçulmanos, residentes na Alemanha?
Antes de mais, que a insinuação de falta de lealdade de um grupo étnico tem consequências devastadoras para o futuro. É muito difícil tirar essa ideia da cabeça das pessoas, e impedi-las de generalizar. E se isso já torna a coabitação difícil no tempos da paz, que dizer do tempo da "guerra ao terrorismo" ou do tempo de crise económica.
Por esse motivo, Erdogan cometeu um erro enorme ao dizer que os três milhões de turcos residentes na Alemanha deviam fazer lobbyism pelo seu grupo e pelo seu país, a Turquia.
Antes disso, já tinham sido cometidos outros erros. Quem nas mesquitas prega contra a sociedade alemã, presta um péssimo serviço à sua própria comunidade.
Passou recentemente na Arte um programa em que alguém lia cruamente uma gravação de uma dessas pregações. Só vi um pouco, a parte em que o pregador explicava que o Corão proíbe matar, mas autoriza que se mate um infiel, ou os que for preciso, para salvar a vida de um muçulmano. Isto é, digamos, um bocadinho anticonstitucional. Quem diz e quem aceita ouvir coisas destas não pode reclamar para si um lugarzinho ao sol no seio da comunidade alemã, ou europeia.
A integração tem de passar pelo respeito mútuo e pela confiança. Bem-me-quer ou mal-me-quer? Bem-nos-queremos? Mal-nos-queremos? Os gestos de aproximação têm de vir de ambos os lados.
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Quanto à diferença de intenção nas etiquetas apostas aos grupos étnicos na Europa e nos EUA: acho que não é bem uma questão de tirar ou acrescentar. Parece-me que nos dois casos é uma questão de prender: és latino, ficas latino; és turco, ficas turco.
Os indivíduos perdem margem de manobra na construção da sua própria identidade.
A ascensão social também fica um bocado condicionada - nos EUA tal como na Europa. Andei numa escola em San Francisco onde isso era muito evidente: os professores eram brancos, o pessoal administrativo era asiático e as empregadas de limpeza eram... adivinha.
Há num livro do Michael Moore uma passagem curiosa, onde ele faz a apologia dos African-Americans - que (desde que não se lembrem de imitar os brancos, como fazem a Rice e o Powel, avisa ele) são gente impecável, formidável, fora de série, etc., e que ele tomou a decisão de só empregar African-Americans.
A intenção pode ter sido boa, mas não deixa de ser uma patetice: se nasci com pele escura, tenho de corresponder ao estereótipo (definido por quem?) dos African-Americans, e não me é permitido adoptar outros tipos de comportamento, considerado mais típico dos brancos. Ou dos latinos, se me apetecer.
E eu, que nasci branca, não tenho hipóteses de arranjar emprego na empresa do Michael Moore. Isso é que me dá cá uma raiva!
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Caso alguém tenha chegado ao fim deste arrazoado, aqui vai outro, que achei muito interessante: um estudo, em português, comparando a construção da identidade nacional no Brasil e na Alemanha.
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