No dia 24 de Dezembro uma rádio berlinense estava a oferecer bilhetes de cinema.
As pessoas telefonavam, diziam meia dúzia de patacoadas, recebiam os bilhetes.
Ouvi um desses telefonemas:
- E o que tenciona fazer na "Noite Santa"? (o nome alemão para noite de consoada é, literalmente, noite santa)
- O meu filho, que já não mora connosco, vem jantar cá a casa.
- E depois?
- Depois era boa ideia irmos os três ao cinema.
Inventem-se novas palavras, que "noite santa" não combina com cinema.
Diga-se então: que tenciona fazer nesta véspera de feriado?
Ou: como gostaria de festejar o solstício de inverno?
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No dia 24 já não encontrei lojas abertas às 14:00.
Tal como no dia 31.
Acho bem: o pessoal do comércio também tem família.
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Para a nossa "Noite Santa" fiz uma aletria, e com as claras que sobraram tentei fazer um pudim molotov. A receita dizia para o deixar assar no forno 10 ou 12 minutos no máximo, mas eu lembrava-me de uma outra onde diziam para o deixar ficar 50 minutos. Optei por tirar a média das duas receitas.
Ora bem: eu bem digo que é preciso estar muito atento às palavras que escolhemos.
Chamei-lhe pudim de marshmallow, e tudo acabou em bem.
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O Joachim convidou um colaborador dele, um médico búlgaro, para passar a noite de consoada connosco. Coitadinho, teve de fazer de conta que adorou o marshmallow de caramelo.
Ficámos a saber imensas coisas sobre as tradições na igreja ortodoxa. Por exemplo: passam quase metade do ano em abstinência.
(E agora fala a economista: como é possível conciliar um sistema de produção com estas variações de consumo?! Agora percebo porque é que o sistema comunista tentou acabar com a religião - não dava para conciliar os planos quinquenais com os frangos de aviário a apodrecer nas lojas por se estar de novo numa época de abstinência.)
Depois ofereceu-nos um belo ícone, muito bem feito, e pediu desculpa por não ser da mesma religião.
Desculpe, como disse?
Como é que havemos de chegar ao ecumenismo se os outros não querem?!
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Fomos à Missa do Galo. Não havia coro, nem nada bombástico, mas a igreja estava cheia. Cheia. O que se chama cheia.
Disseram-me depois que, para conseguir lugar sentado, é preciso ir com mais de hora e meia de antecedência, e levar um livro para ir lendo enquanto se espera.
Também me disseram que muitas dos presentes não eram católicos: protestantes, agnósticos e até muçulmanos - pessoas que vão àquela igreja em busca de um espírito de Natal mais puro.
No momento da Paz, o nosso médico búlgaro virou-se para nós e disse "merry Christmas!"
Mas eu não me posso rir, porque se fosse a uma celebração ortodoxa faria com certeza muitos mais faux pas.
No fim da missa, ele comentou que, comparado com as ortodoxas, tinha sido uma cerimónia muito falha de rituais e símbolos. Que o Deus dos cristãos o mantenha longe das celebrações evangélicas, porque aí é que o ecumenismo vai de vez.
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A Christina contou-nos com um leve tom de inveja que uma amiga dela recebeu um telemóvel de 400 euros. Quase me ia dando uma ataque de histeria.
Quatrocentos euros! Assim, no bolso do casaco, para levar para a escola.
Estamos quase a criar uma nova regra para a família: os miúdos podem pedir tudo o que querem, mas têm de trabalhar para participar com uma percentagem do preço de compra. E não podem usar dinheiro recebido dos avós ou dos padrinhos, tem mesmo de lhes sair do corpo, para eles aprenderem o que a vida custa.
Isto dá um tema para outro post, cujo mote é assim: andamos a criar uma geração de desnaturados, e a culpa é nossa.
(estou a falar dos alemães, claro, claro, que os portugueses são muito diferentes...)
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No dia 31 fomos para o maior reveillon do mundo: mais de um milhão de pessoas numa longa avenida de Berlim.
Não contem a ninguém que eu disse isto, senão ainda me tiram a autorização de residência, mas é assim: não vale a pena. Gente a mais, confusão a mais, e as árvores não deixam ver o fogo de artifício. Se puderem escolher, vão antes para Copacabana.
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E depois, no primeiro dia do ano, nevou em Berlim.
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