16 fevereiro 2007

No és això, companys, no és això

Ao olhar - à distância de meia Europa - para o processo do referendo, só me ocorre o lamento de Lluis Llach:

No era això, companys, no era això
pel que varen morir tantes flors,
pel que vàrem plorar tants anhels.
Potser cal ser valents altre cop
i dir no, amics meus, no és això.



Primeiro, porque perdemos uma grande oportunidade de aprendermos a debater:

Vi uma parte de um Prós e Contras sobre este referendo, e não queria acreditar nem no tom, nem no modelo.
Mas que loucura de formato! Quem é que se lembrou de, para tratar um tema tão sensível e com tantas vertentes, dividir a plateia entre dois lados, preto/branco?
E porque é que há peritos no palco e convidados na primeira fila? Como é que os convidados se sujeitam àquela posição de subalternidade, e aceitam ter de levantar-se para falar, enquanto os peritos falam sentados?!

Um tema destes exige uma mesa redonda e imenso respeito. Que cada um exponha a sua opinião num ambiente de escuta, e não de rejeição a priori.

Será que vão usar o mesmo formato de debate quando se tratar de discutir a eutanásia, o papel do SNS perante doenças provocadas pelo fumo ou pelo excesso de peso, o direito a usar carros muito poluentes, a produção de frangos de aviário?

Para bem da Democracia: temos de aprender a falar uns com os outros, e deixar o "uns contra os outros" para os campeonatos de futebol.



Segundo, porque foram utilizadas técnicas de Ilusionismo contra a Democracia

Num tema tão difícil, não teria sido melhor procurar primeiro as respostas possíveis e fazer depois a pergunta?
Quer dizer: perante tantas sensibilidades diferentes, seria importante debater primeiro as questões fundamentais (o direito penal como defensor da moral ou o orçamento do Estado ao serviço de escolhas pessoais, por exemplo), analisar os pontos de clivagem, definir com transparência o sentido semântico de cada fragmento e as consequências para efeitos de legislação, e só depois levar a questão a referendo.

O que aconteceu - visto à distância - foi de um diletantismo ou, ao que parece, um maquiavelismo político insuportáveis.

- Uma pergunta que se presta a tão diferentes interpretações, sem que haja, por quem de direito (o Governo? a Procuradoria Geral da República?) uma tentativa de clarificação e esclarecimento de dúvidas antes do referendo.

- Uma sucessão de prestidigitadores a tirar coelhos da cartola quase à boca das urnas: desde o "atenção, eles querem que os nossos impostos paguem isto!" até uma proposta de despenalização sem descriminalização - isto é desnorteamento, falta de organização, ou cálculo político? Não faria mais sentido, para bem da Democracia, que estas questões fossem já discutidas antes de iniciar o processo de referendo?

- Especialmente chocante: o caso de uma deputada do PS defender o aconselhamento obrigatório, perante o silêncio do partido (ou fui eu que ouvi mal?), um PS que só se pronuncia contra esse aconselhamento após o "sim" ter ganho.
Se o PS é contra o aconselhamento obrigatório, porque se manteve em silêncio perante a opinião de alguns dos seus, dando a ideia de que era a favor?! Isto não é fazer de nós palhaços?! Isto não é de uma profunda desonestidade?!


Fico surpreendida e incomodada com as notícias do princípio da semana, que no espaço de algumas horas passam de um "O PS deverá inspirar-se no modelo alemão, que exige consultas de aconselhamento, para a realização da lei do aborto" para um "Não haverá aconselhamento obrigatório, diz Alberto Martins. O líder parlamentar socialista garantiu, esta terça-feira, que a nova Lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez não vai ter qualquer aconselhamento obrigatório para as mulheres que queiram fazer um aborto até as 10 semanas, alegando que isso seria uma imposição à revelia do resultado do referendo."


Mas onde é que o Alberto Martins esteve durante o período em que se discutiu justamente a interpretação dessa parte da pergunta?
Porque é que ficou calado, enquanto que a argumentação a favor do "sim" passava justamente pelo processo de aconselhamento, por oposição à ideia de um aborto a pedido ou por capricho?

Alguns exemplos:

Vital Moreira: "Mas não se trata de nenhuma "liberalização", como pretendem os críticos. (...) Terceiro: só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer."

Tiago Mendes: "Se o Sim for maioritário, serão tomadas medidas legislativas que devem e seguramente irão incluir um período de reflexão e aconselhamento para a mulher, tal como acontece noutros países europeus civilizados."

José Vítor Malheiros: "Se o "não" pusesse fim ao aborto, todos votaríamos "não". Mas o "não" não vai pôr fim ao aborto clandestino. O "sim" também não o conseguirá totalmente, mas é a estratégia que consegue salvar o máximo de vidas das mulheres e que poderá conseguir evitar mais abortos. Porquê? Porque é a estratégia que leva mais mulheres ao hospital e a única que obriga ao consentimento informado, permitindo que estas mulheres conheçam as alternativas e os apoios que existam.Uma consulta para aborto no hospital pode ser a oportunidade para propor a contracepção a mulheres que não a utilizavam, pode permitir explicar que é possível levar a gravidez a termo e entregar um bebé para adopção, pode ajudar as mulheres a escolher o que verdadeiramente querem, e a apoiá-las nessa escolha. Nada disso acontecerá no mundo do aborto clandestino, que o "não" perpetuaria."

Anselmo Borges: "Impõe-se ser sensível àquele "por opção da mulher" tal como consta na pergunta do referendo, pois há aí o perigo de precipitações e arbitrariedades. Por isso, no caso de o "sim" ganhar, espera-se e exige-se do Estado que dê um sinal de estar a favor da vida.
Pense-se no exemplo da lei alemã, que determina que a mulher, sem prejuízo da sua autonomia, deve passar por um "centro de aconselhamento" (Beratungsstelle) reconhecido. Trata-se de dialogar razões, pesar consequências, perspectivar alternativas. A mulher precisará de um comprovativo desse centro e entre o último encontro de aconselhamento e a interrupção da gravidez tem de mediar o intervalo de pelo menos três dias. As custas do aborto ficam normalmente a cargo da própria.
O penalista Jorge Figueiredo Dias também escreveu, num contexto mais amplo: "O Estado (...) não pode eximir-se à obrigação de não abandonar as grávidas que pensem em interromper a gravidez à sua própria sorte e à sua decisão solitária (porventura na maioria dos casos pouco informada); antes deve assegurar-lhes as melhores condições possíveis de esclarecimento, de auxílio e de solidariedade com a situação de conflito em que se encontrem. Sendo de anotar neste contexto a possibilidade de vir a ser considerada inconstitucional a omissão do legislador ordinário de proporcionar às grávidas em crise ou em dificuldades meios que as possam desincentivar de levar a cabo a interrupção".
"

Blogue "Sim no Referendo": "Votar Sim é fazer entrar em ambiente hospitalar as mulheres que se deparam com uma gravidez indesejada. É contribuir para diminuir a sua ansiedade, para possibilitar a decisão informada e o conhecimento de alternativas e apoios. Votar Sim não é garantir a diminuição do aborto, mas pode ser um primeiro passo nesse sentido, como mostram vários exemplos na Europa que adoptaram disposições semelhantes à que agora se propõe. Votar Sim é fazer um um apelo ao legislador para que, na nova lei, siga esses bons exemplos, e é dar um voto de confiança às mulheres e ao país."

Adolfo Mesquita Nunes: "Mas o meu “sim” é absolutamente rigoroso. Esta opção da mulher deve ser precedida de um período de aconselhamento. Aconselhamento neutro e informado. O abortamento não pode, não deve, ser incentivado. Dir-me-ão que tal proposta não está prevista na pergunta. Não está. Em rigor, não vejo que um Código Penal tenha de prever tal aconselhamento. Na regulamentação da lei, cá estarei para me bater por esse período de aconselhamento. Se, por acaso, a actual maioria parlamentar se abstiver de o fazer, cá estarei para insistir junto das novas maiorias parlamentares para que o façam."


Perante um debate que decorre nestes termos, e a afirmação de Alberto Martins, de que a Interrupção Voluntária da Gravidez não vai ter qualquer aconselhamento obrigatório para as mulheres que queiram fazer um aborto até as 10 semanas, alegando que isso seria uma imposição à revelia do resultado do referendo, fica a sensação que alguém (quem? quantos?) nos andou a enganar.

No és això, companys.

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