28 fevereiro 2007

Osama


Quem avisa, amiga é:

Osama passa hoje na Arte, às 22:25 (21:25 em Portugal).

23 fevereiro 2007

planos inclinados

O Ministério da Família alemão, aquele que criou um sistema que paga boa parte do salário ao progenitor que ficar em casa com o bébé (até um total máximo de 25.000 euros), está agora a trabalhar num projecto de alargar a rede de infantários, para que as mães não tenham de abandonar a vida profissional.

As reacções não se fizeram esperar: que o Governo acha que as mães não passam de máquinas reprodutivas, que está deliberadamente a provocar uma alteração de mentalidades, que só está interessado em criar uma bolsa de mão-de-obra, que por este andar as mulheres vão ter vergonha de se assumir como mãe a tempo inteiro, que as crianças é que vão pagar o preço da ideologia da ministra da família.

Isto não é um mundo, é um escorrega.


PS. Já contei aqui que a "elite" alemã não se reproduz. E como? Uma mulher estuda, começa uma carreira profissional (a custo, porque a sua fertilidade é um risco para o empregador), e lá para os 30, 35 anos tem de decidir se continua a trabalhar ou se fica em casa a acompanhar o crescimento dos rebentos. Se houvesse creches, e se uma mulher não tivesse de se justificar por gostar de trabalhar e gostar de ter família, talvez as coisas fossem diferentes.
A ministra da família tem sete filhos. O que lhe valeu foi o marido ter ido fazer um doutoramento nos EUA, e ter levado a família. Numa recepção na universidade, o reitor perguntou-lhe quais eram os seus projectos profissionais, ela respondeu "tenho filhos pequenos", ele voltou à carga "Oh, how nice - e quais são os seus projectos profissionais?"
E eis que ela escorregou para um mundo cheio de novas possibilidades. Ainda teve mais alguns filhos, o que não a impediu de fazer carreira política.
Quando a CDU escolheu para ministro da família uma mãe de família tão numerosa, pensei que era um bom exemplo para a sociedade alemã. Ela tem-se revelado bastante equilibrada e competente. Mas há grupos na sociedade alemã que se sentem ameaçados por esta nova visão (realismo, ou ideologia?) da família.

21 fevereiro 2007

resposta a um comentário ao post anterior

Lutz,

Isto tudo deixa-me muito confusa:
- Porque é que a questão foi levada a referendo? Quer dizer: o PS não podia alterar a lei como lhe apetecesse, sem fazer referendo?
- Será que este referendo foi, desde o princípio, um mero pro-forma para o PS fazer depois a lei que queria?
- Será que Portugal está a ser governado por gente que entende que os fins justificam os meios? Será que, desde que os fins coincidam com os nossos interesses, estamos dispostos a aceitar essa perversão do exercício do poder político?
- Qual é a viabilidade democrática de um país que não tem razões para confiar no seu governo? Sobretudo a este nível, vejo uma enorme diferença entre o teu país e o meu: aqui, as pessoas podem não estar de acordo com as opções do governo, mas não há esta desconfiança generalizada nos políticos e na política.

Também penso que assuntos como o do aborto deviam ser discutidos e resolvidos por comissões, acompanhados de um debate público feito com seriedade, honestidade e transparência, em vez de passar por estratégias desonestas de caça aos votos.

E, se o que se disse e não disse durante a campanha foi condicionado pelo resultado desejado para o referendo, não venham chamar avanço civilizacional ao que não passa de uma vergonha!
Isto não foi, então, um povo a reflectir, fundar uma opinião e votar o que que entende ser melhor, foi mais uma espécie de circo de engana tolos.

Sobre este assunto, recomendo a leitura do post da Susana.
(como se não tivesses lido ainda...)

Quanto à vinculação do governo àquilo que algumas pessoas (socialistas ou não) disseram durante a campanha: exijo de um governo sério que, se leva um assunto destes a referendo, esteja sensível aos argumentos e às pistas que surgem no debate. Parece-me (embora possa estar enganada pela distância) que, se a questão tivesse sido posta em termos claros de "na sua barriga manda a mulher", o "não" teria tido uma vitória enorme. Por outro lado, depreendo que o aconselhamento seria uma solução de consenso para esta fase do desenvolvimento da sociedade portuguesa.
(E, claro, se se entende que a sociedade é retrógrada, porque é que se deram ao trabalho e ao custo de lhe perguntar a opinião?)

Ou seja: se o PS se sair com uma lei sem prever a possibilidade de aconselhamento, acho muito bem que o Cavaco a vete. E aposto que há muita gente que votou "sim" no referendo e concorda comigo neste ponto.

Finalmente: fiquei na dúvida se esse pessoal do PS que se pronunciou claramente a favor do aconselhamento o fez por cálculo político ou por convicção. Gostaria de ver como reagem ao projecto de lei.

16 fevereiro 2007

No és això, companys, no és això

Ao olhar - à distância de meia Europa - para o processo do referendo, só me ocorre o lamento de Lluis Llach:

No era això, companys, no era això
pel que varen morir tantes flors,
pel que vàrem plorar tants anhels.
Potser cal ser valents altre cop
i dir no, amics meus, no és això.



Primeiro, porque perdemos uma grande oportunidade de aprendermos a debater:

Vi uma parte de um Prós e Contras sobre este referendo, e não queria acreditar nem no tom, nem no modelo.
Mas que loucura de formato! Quem é que se lembrou de, para tratar um tema tão sensível e com tantas vertentes, dividir a plateia entre dois lados, preto/branco?
E porque é que há peritos no palco e convidados na primeira fila? Como é que os convidados se sujeitam àquela posição de subalternidade, e aceitam ter de levantar-se para falar, enquanto os peritos falam sentados?!

Um tema destes exige uma mesa redonda e imenso respeito. Que cada um exponha a sua opinião num ambiente de escuta, e não de rejeição a priori.

Será que vão usar o mesmo formato de debate quando se tratar de discutir a eutanásia, o papel do SNS perante doenças provocadas pelo fumo ou pelo excesso de peso, o direito a usar carros muito poluentes, a produção de frangos de aviário?

Para bem da Democracia: temos de aprender a falar uns com os outros, e deixar o "uns contra os outros" para os campeonatos de futebol.



Segundo, porque foram utilizadas técnicas de Ilusionismo contra a Democracia

Num tema tão difícil, não teria sido melhor procurar primeiro as respostas possíveis e fazer depois a pergunta?
Quer dizer: perante tantas sensibilidades diferentes, seria importante debater primeiro as questões fundamentais (o direito penal como defensor da moral ou o orçamento do Estado ao serviço de escolhas pessoais, por exemplo), analisar os pontos de clivagem, definir com transparência o sentido semântico de cada fragmento e as consequências para efeitos de legislação, e só depois levar a questão a referendo.

O que aconteceu - visto à distância - foi de um diletantismo ou, ao que parece, um maquiavelismo político insuportáveis.

- Uma pergunta que se presta a tão diferentes interpretações, sem que haja, por quem de direito (o Governo? a Procuradoria Geral da República?) uma tentativa de clarificação e esclarecimento de dúvidas antes do referendo.

- Uma sucessão de prestidigitadores a tirar coelhos da cartola quase à boca das urnas: desde o "atenção, eles querem que os nossos impostos paguem isto!" até uma proposta de despenalização sem descriminalização - isto é desnorteamento, falta de organização, ou cálculo político? Não faria mais sentido, para bem da Democracia, que estas questões fossem já discutidas antes de iniciar o processo de referendo?

- Especialmente chocante: o caso de uma deputada do PS defender o aconselhamento obrigatório, perante o silêncio do partido (ou fui eu que ouvi mal?), um PS que só se pronuncia contra esse aconselhamento após o "sim" ter ganho.
Se o PS é contra o aconselhamento obrigatório, porque se manteve em silêncio perante a opinião de alguns dos seus, dando a ideia de que era a favor?! Isto não é fazer de nós palhaços?! Isto não é de uma profunda desonestidade?!


Fico surpreendida e incomodada com as notícias do princípio da semana, que no espaço de algumas horas passam de um "O PS deverá inspirar-se no modelo alemão, que exige consultas de aconselhamento, para a realização da lei do aborto" para um "Não haverá aconselhamento obrigatório, diz Alberto Martins. O líder parlamentar socialista garantiu, esta terça-feira, que a nova Lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez não vai ter qualquer aconselhamento obrigatório para as mulheres que queiram fazer um aborto até as 10 semanas, alegando que isso seria uma imposição à revelia do resultado do referendo."


Mas onde é que o Alberto Martins esteve durante o período em que se discutiu justamente a interpretação dessa parte da pergunta?
Porque é que ficou calado, enquanto que a argumentação a favor do "sim" passava justamente pelo processo de aconselhamento, por oposição à ideia de um aborto a pedido ou por capricho?

Alguns exemplos:

Vital Moreira: "Mas não se trata de nenhuma "liberalização", como pretendem os críticos. (...) Terceiro: só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer."

Tiago Mendes: "Se o Sim for maioritário, serão tomadas medidas legislativas que devem e seguramente irão incluir um período de reflexão e aconselhamento para a mulher, tal como acontece noutros países europeus civilizados."

José Vítor Malheiros: "Se o "não" pusesse fim ao aborto, todos votaríamos "não". Mas o "não" não vai pôr fim ao aborto clandestino. O "sim" também não o conseguirá totalmente, mas é a estratégia que consegue salvar o máximo de vidas das mulheres e que poderá conseguir evitar mais abortos. Porquê? Porque é a estratégia que leva mais mulheres ao hospital e a única que obriga ao consentimento informado, permitindo que estas mulheres conheçam as alternativas e os apoios que existam.Uma consulta para aborto no hospital pode ser a oportunidade para propor a contracepção a mulheres que não a utilizavam, pode permitir explicar que é possível levar a gravidez a termo e entregar um bebé para adopção, pode ajudar as mulheres a escolher o que verdadeiramente querem, e a apoiá-las nessa escolha. Nada disso acontecerá no mundo do aborto clandestino, que o "não" perpetuaria."

Anselmo Borges: "Impõe-se ser sensível àquele "por opção da mulher" tal como consta na pergunta do referendo, pois há aí o perigo de precipitações e arbitrariedades. Por isso, no caso de o "sim" ganhar, espera-se e exige-se do Estado que dê um sinal de estar a favor da vida.
Pense-se no exemplo da lei alemã, que determina que a mulher, sem prejuízo da sua autonomia, deve passar por um "centro de aconselhamento" (Beratungsstelle) reconhecido. Trata-se de dialogar razões, pesar consequências, perspectivar alternativas. A mulher precisará de um comprovativo desse centro e entre o último encontro de aconselhamento e a interrupção da gravidez tem de mediar o intervalo de pelo menos três dias. As custas do aborto ficam normalmente a cargo da própria.
O penalista Jorge Figueiredo Dias também escreveu, num contexto mais amplo: "O Estado (...) não pode eximir-se à obrigação de não abandonar as grávidas que pensem em interromper a gravidez à sua própria sorte e à sua decisão solitária (porventura na maioria dos casos pouco informada); antes deve assegurar-lhes as melhores condições possíveis de esclarecimento, de auxílio e de solidariedade com a situação de conflito em que se encontrem. Sendo de anotar neste contexto a possibilidade de vir a ser considerada inconstitucional a omissão do legislador ordinário de proporcionar às grávidas em crise ou em dificuldades meios que as possam desincentivar de levar a cabo a interrupção".
"

Blogue "Sim no Referendo": "Votar Sim é fazer entrar em ambiente hospitalar as mulheres que se deparam com uma gravidez indesejada. É contribuir para diminuir a sua ansiedade, para possibilitar a decisão informada e o conhecimento de alternativas e apoios. Votar Sim não é garantir a diminuição do aborto, mas pode ser um primeiro passo nesse sentido, como mostram vários exemplos na Europa que adoptaram disposições semelhantes à que agora se propõe. Votar Sim é fazer um um apelo ao legislador para que, na nova lei, siga esses bons exemplos, e é dar um voto de confiança às mulheres e ao país."

Adolfo Mesquita Nunes: "Mas o meu “sim” é absolutamente rigoroso. Esta opção da mulher deve ser precedida de um período de aconselhamento. Aconselhamento neutro e informado. O abortamento não pode, não deve, ser incentivado. Dir-me-ão que tal proposta não está prevista na pergunta. Não está. Em rigor, não vejo que um Código Penal tenha de prever tal aconselhamento. Na regulamentação da lei, cá estarei para me bater por esse período de aconselhamento. Se, por acaso, a actual maioria parlamentar se abstiver de o fazer, cá estarei para insistir junto das novas maiorias parlamentares para que o façam."


Perante um debate que decorre nestes termos, e a afirmação de Alberto Martins, de que a Interrupção Voluntária da Gravidez não vai ter qualquer aconselhamento obrigatório para as mulheres que queiram fazer um aborto até as 10 semanas, alegando que isso seria uma imposição à revelia do resultado do referendo, fica a sensação que alguém (quem? quantos?) nos andou a enganar.

No és això, companys.

15 fevereiro 2007

La part de l'autre



No Rio, quatro rapazes roubam um carro e fogem, arrastando pendurada, durante 4 km, uma criança de seis anos que não conseguiu abrir o cinto de segurança.
Assisto ao debate entre amigos brasileiros, falam de monstros e de vítimas, e ocorre-me o tema de um livro que ando a ler, La part de l'autre.

Conta uma história paralela: o adolescente Adolf que foi aceite na escola de Belas Artes de Viena, e o adolescente Hitler que não foi aceite na escola de Belas Artes de Viena.
Estou na parte em que o estudante Adolf tem de desenhar modelos nus e desmaia de aflição, e um professor o leva a um especialista, um tal de Freud.

O jovem Hitler, esse, orfão e sem acesso à bolsa de estudos, anda aflito para pagar a renda do quarto.

A ficha do livro pode ser lida aqui.

Dos comentários, destaco:

On passe d'un Adolf à son double comme on verse du rire aux larmes, du sérieux à la plaisanterie, de la paix à la guerre (à noter : une belle symétrie croisée lors des descriptions des ravages de la guerre de 14-18). Au carrefour de ces trajectoires où se rejoignent comédie et tragédie, l'écrivain laisse place à de seyantes définitions philosophiques (pays/nation ; amour/amitié ; égoïsme/égocentrisme) qui éclairent dialectiquement la part d'ombre abritée par le cœur humain. En vérité, qu'elle soit "maudite" ou divine, savoir admettre "la part de l'autre" dans la constitution de l'image ou du destin de chacun, c'est toujours privilégier l'ouverture du dialogue par essence démocratique sur le repli du monologue totalitaire. Une leçon que l'humanité (hélas ? tant mieux ?) n'a pas fini de méditer. Frédéric Grolleau Ce texte se rapporte à l'édition . http://www.amazon.fr/


LE FIGARO LITTERAIRE (27 Septembre 2001) : Schmitt aurait dû se contenter de nous raconter cette vie réussie dans un autre monde. Or que fait-il ? Il dynamite les règles du genre et écrit en alternance, la vraie vie de Hitler et son faux destin. Un choix qui surprend. A quoi bon nous raconter ce que nous savons déjà ? En fait, Schmitt choisit surtout d'évoquer les années de jeunesse de Hitler, celles qui vont jusqu'à la première guerre mondiale. De cette époque-là, le lecteur moyen ne sait pas grand-chose. Il se surprend, horrifié, à trouver le personnage plutôt humain. ‘ C'était le but du jeu, affirme Schmitt. Montrer qu'on ne naît pas monstre, mais qu'on le devient. J'ai d'ailleurs pensé un temps intituler le roman Archéologie d'un monstre. Hitler avait un beau rêve : être peintre, jusqu'à son échec, c'était quelqu'un de fréquentable. D'étudiant, il est devenu pauvre. De cette exclusion, la rancoeur - le ' ressentiment ', dit Nietzsche - est née. Son intégration s'est faite par la guerre. Du coup, à ses yeux, la guerre est devenue un principe de l'existence. La défaite de l'Allemagne en 1918 a été un autre traumatisme. Ce qui m'intéressait, c'était de montrer comment se fabrique un homme. On est tous une même souche, qui peut donner à l'arrivée deux individus complètement différents. (Bruno Corty)

02 fevereiro 2007

Engadin

Dizem que Engadin significava originalmente Edengarten - "Jardim do Éden".

Estou a sair agora mesmo para ir confirmar, e depois - lá para domingo da próxima semana - digo.

fetos, filhos, fé

Uma nota prévia, e um pedido:

Como sou emigrante, não posso votar.
O que é, neste caso, uma particular injustiça para os emigrantes. Afinal somos nós quem está na linha da frente do embate de culturas, e tem de responder às perguntas escandalizadas - "então vocês levam as mulheres a tribunal por causa do aborto?!"
Não me dá jeito. Como se não bastasse o olhar horrorizado da miúda que disse à Christina "o quê, vais passar férias em Portugal? Coitadinha, é um país tão pobre...", como se não bastasse a funcionária dos correios querer que eu pagasse um selo mais caro porque dizia que Portugal não fica na Europa.

Mas, voltando ao assunto inicial: dado que não posso votar, peço a alguém que esteja com vontade de se abster o favor de ir votar por mim.

No "sim", por duas razões principais:

- Esta discussão sobre valores e respeito pela vida humana prende-se com uma procura de sentido e de dignidade para o nosso estar em sociedade. Que deve continuar, e que tem de se traduzir em actos de humanismo, mas que não pode passar pela ridicularização do Código Penal, mantendo uma lei que ninguém respeita.

- O abismo no olhar do Francisco, quando me contou que só nasceu porque o ginecologista disse à mãe dele que não respondia pelas consequências para a sua saúde se fizesse mais um aborto.

Gostava que o "sim" ganhasse, porque a dignidade humana não se promove com soluções simplórias de crime e castigo, e gostava que todos os que participaram nesta discussão tivessem consciência de que o resultado deste debate não é um ponto de chegada mas um ponto de partida para muito trabalho - e para ele são chamados todos os que pensam que um feto significa muito mais que um aglomerado de células.



Dito isto, gostava de acrescentar algumas notas soltas:


1.
Andamos a falar no direito do feto à vida, mas ninguém refere as marcas psicológicas que podem ficar em alguém que não foi desejado pela mãe.
Mesmo que seja dada para adopção, que perspectiva afectiva tem uma criança que passou 9 meses a ser considerada um trambolho?
Será que é realmente positivo para o feto que a sociedade lhe salve a vida por recurso ao Código Penal?
Os psicólogos, os psicanalistas, os da psicoembriologia que digam o que sabem sobre a forma como as pessoas ficam marcadas pelas sensações intra-uterinas.

Eu, que pouco percebo disso, dei uma volta pela internet e encontrei várias pistas: aspectos biopsicológicos do comportamento do feto (psicoembriologia), projecção da embriologia no estudo da personalidade, registos emocionais do feto (chamados de arcaicos).
E até um artigo em quase chinês, sobre "Embriogênese do aparelho psíquico: introduçao ao estudo dos estádios iniciais do ego".


2.
Incomoda-me, na discussão sobre o aborto, o modo como se tenta simplificar e reduzir a linguagem binária algo tão complexo. Bem sei que, se se discute a interrupção voluntária da gravidez, alguém tem de meter a mão na massa e começar a discutir os detalhes, mas será que o caminho passa mesmo por discutir números de células, fases de desenvolvimento do sistema nervoso, número de semanas, 0 ou 1?
O mesmo vale para a resposta moralista ou religiosa. Se fosse assim tão fácil, simplesmente dizer "é vida humana, ninguém tem o direito de a matar"...
É essa a sociedade que queremos, uma sociedade que se deixa imbecilizar por simplificações? Pior: uma sociedade que se deixa dividir em dois campos como se se tratasse de um campeonato de futebol, quando o que está em causa é um profundo sofrimento de algumas pessoas?


3.
Pessoalmente, vejo a gravidez como um momento de transcendência, e não de excrescência facultativa. Não é um quisto, um embrião ou um feto, mas um filho que se vai formando, e um "terceiro" desde o princípio - já presente, e com uma presença transformadora, no próprio acto que lhe dá origem (como explica Françoise Dolto em "A sexualidade feminina" - mas isso é só para esotéricos que acreditem na Psicanálise em geral e na Françoise Dolto em particular). Em algum momento posterior (às vezes demora anos...) o "filho" dá lugar a "ser humano", mas desde o início há uma enorme carga simbólica que não pode ser ignorada. Corrijo: pode ser ignorada, sim. Mas eu teria dificuldades em integrar-me numa sociedade que negue ou ignore a carga simbólica desse particular conjunto de células.

E, já que comecei este ponto por "pessoalmente":
A Christina anunciou-se antes mesmo de me faltar o período. Mais: soube logo que era uma menina. Afirmou-se em mim com uma força incrível. Desde o princípio foi uma presença - dependente de mim para viver e crescer, mas que eu sentia como um ser e uma vontade independente. Se tivesse de usar uma palavra, seria "forte".
O Matthias foi muito mais discreto. Senti que era rapaz, mas nem disso estava bem certa. Às vezes até me esquecia dele. Tentava falar com ele e cantar-lhe, como fizera com a Christina, e pressentia que isso não lhe agradava.
Essa maneira de estar comigo, revelada logo nas primeiras semanas, confirmou-se no parto: a Christina nasceu com olhos de raio-X - puseram-na no meu peito, e ela olhou-me com atenção e intensidade, como se me quisesse decifrar; o Matthias, por seu lado, ao ser pousado no meu peito fechou os olhos.
Hoje, a Christina participa e conversa, o Matthias faz o seu caminho e não quer que se intrometam.
Falando da questão do "eu embrional": se algo me tivesse obrigado a abortar, imagino que sentiria o aborto da Christina, mesmo muito antes da décima semana, de um modo mais trágico do que o do Matthias. Porque a Christina me impôs, desde o princípio, uma incrível vontade de viver e de se afirmar. Era claramente um "eu", diferente de mim. Não posso explicar isto com métodos científicos, mas é a minha experiência pessoal. E penso que não tem nada a ver com religião ou culpabilização social.


4.
Perante a questão do aborto, qual deve ser o papel dos cristãos?
Nunca o de acusador, o de inferno dos outros.
Não tomemos para nós o lugar de Deus no dia juízo final - além de ser uma arrogância tirar-lhe esse trabalho, ele saberá muito melhor que qualquer um de nós o que quer fazer connosco.
O nosso trabalho, enquanto por aqui andamos, é outro e resume-se à frase "vede como eles se amam".
O cristianismo não é um triunfalismo, é um percurso silencioso em busca do Cristo que nos chama.


5.
E que papel deve ser o da Sociedade?
Enquanto não nos acontecer a nós, podemos achar que é um problema dos outros, das vadias, das fúteis, das mal-amadas? Será, realmente?
Estamos conscientes da nossa responsabilidade em parte dos motivos que levam uma mulher a considerar a hipótese de um aborto?
Já nos demos conta de que o escárnio mata, tal como a dupla moral, tal como os modelos masculino e feminino socialmente aceites, tal como os modelos de consumo com os quais tão alegremente convivemos, tal como a organização do trabalho?
Vamos mudar isso, ou fica tudo como está?


6.
Penso que o problema não se resolve com a mera despenalização.
Entendo que:
- A despenalização do aborto resolve alguns problemas, e cria outros. Assusta-me que ocorra um esvaziamento do valor simbólico de uma gravidez.
- Não se pode simplificar nem banalizar: um aborto pode ser uma tragédia. É uma decisão difícil e com risco de consequências graves para a futura paz de espírito da mãe, e até dos familiares - mesmo nos casos de deficiência, risco de vida ou violação.
- A mulher em situação de conflito precisa de ajuda profissional para analisar com algum distanciamento e seriedade os motivos que a levam a dar esse passo: até que ponto está presa de condicionantes morais (ou de falsa moral), contextos de curto prazo, miragens de consumo? Há coacção de terceiros? Há solução para as dificuldades financeiras que prevê? Admite a possibilidade de levar a gravidez até ao fim e entregar a criança para adopção, ou decidir então se prefere ficar com ela?
- Se tomar a decisão de abortar, precisa de ajuda médica e precisará eventualmente (bem como outros elementos da família) de acompanhamento psicológico no futuro.

Após a despenalização, a sociedade tem de manter-se atenta para evitar mecanismos perversos.
Alguns exemplos:
- No princípio de 1989, uma jovem mulher da RDA engravidou. Como o namorado era um "Wessi", a ginecologista marcou logo uma data para o aborto. Nem lhe passou pela cabeça que a mulher quisesse ter um filho "ideologicamente impuro".
- Em 2001, na Alemanha, uma mulher que estava grávida do quarto filho fez os testes para trissomia 21. A pessoa que, ao telefone e sem a conhecer, lhe deu os resultados do teste, deu-lhe também este conselho: "minha senhora, já tem três filhos saudáveis, esqueça este."
- Em 1997, uma alemã que estava na 25ª semana de gestação descobriu que o filho tinha trissomia 21. Em menos de 24 horas foi feito o aborto, a criança foi largada no caixote do lixo. Ao fim de 10 horas ainda estava viva, e os médicos deram-lhe finalmente os cuidados de que necessitava. Escusado será dizer que hoje o problema menor dessa criança é a trissomia 21.

Não quero dizer com isto que a despenalização é o princípio de todos os desvarios.
Simplesmente, precisamos de ser inteligentes, atentos e sensíveis.